Não é possível entender qualquer problema sem se conhecerem, primeiro, todos os factos. Depois de se conhecerem os factos é preciso analisá-los, interpretá-los e compará-los com outros dados factuais recolhidos no passado para que se consigam estabelecer padrões, elaborar estatísticas e entender melhor todas as dimensões desses problemas. É assim que se tiram conclusões. É assim que se fazem estudos. E é com base nessas conclusões e nesses estudos que as autoridades, os governos, devem agir e tomar medidas que previnam a ocorrência desses problemas. E apliquem políticas que resolvam ou se aproximem da resolução desses problemas.
Isto é a forma normal de se atuar num estado de direito ocidental, progressista, primeiro-mundista. Só que esta normalidade está cada vez mais a ser posta em causa com a ditadura das palavras que tem raiz no movimento woke norte-americano que está a contaminar a Europa e já entrou em força na sociedade francesa e está a chegar aos poucos a Portugal. Nos dias que correm, o que importa são os sentimentos, não são os factos. O que importa é não ofender ninguém, não é ser livre. O que importa é encontrar lugares seguros para quem se sente frágil, não é ajudar a que todos nos tornemos mais fortes. O uso da linguagem é alvo de censura diária e permanente, sobretudo nas redes sociais, com uma ameaça subtil que paira na cabeça de quem entende que deve dizer o que pensa em vez de dizer o que esta minoria ruidosa impõe como certo ou errado.
O mais grave é que esta mentalidade woke prolifera e começa a ter consequências sérias na vida de muita gente. Em Portugal ainda não chegámos lá, mas, à velocidade a que isto corre, não tenho dúvidas de que se não se levantarem mais vozes contra esta ditadura social em breve teremos casos de pessoas despedidas por terem opiniões que vão contra o que é definido por estes wokistas, teremos pessoas que deixarão de ter possibilidade de trabalhar nas suas áreas, teremos cancelamentos e humilhações públicas de gente que apenas fez o que durante anos eu ouvi dizer que deveria fazer sempre: pensar pela minha cabeça e dizer o que penso. Sem medo.
O caso do triplo homicídio de Lisboa é um exemplo interessante para se entender a dimensão deste problema. Ao contrário do que o cantor Dino Santiago referiu no funeral do barbeiro Carlos Pina, este caso não tem sido sobre rótulos. Não tem mesmo. Eu segui o caso desde o primeiro momento até este preciso minuto, e li praticamente tudo o que se escreveu sobre este brutal assassinato. Demorei quase um dia para saber que o casal morto era brasileiro. Demorei quase um dia para saber que o autor dos disparos seria (será, não sei) de etnia cigana. Só soube este domingo, pelo próprio Dino Santiago, que o barbeiro era negro (era? pois, talvez, não sei, mas agora que ele o disse olhei com atenção para a foto, e sim, talvez seja, ou tenha raizes negras).
Em 40 ou 50 reportagens, notícias, artigos que li sobre o caso em apenas dois ou três vi essas referências. E agora podemos pensar: certo, muito bem, assim é que é correto. Talvez. Para um jornalista, pouco ou nada deve importar se a vítima é branca ou negra, o agressor branco ou negro, o polícia branco ou negro. Mas agora façamos um simples exercício contra-factual. E se este triplo homicídio fosse cometido por um cidadão branco português e as vítimas fossem três pessoas negras ou imigrantes. Como estaria a ser o tratamento mediático dado a este caso? Mesmo que as razões fossem exatamente as mesmas — um homem queria cortar o cabelo, o barbeiro recusou-se e houve um tiroteio — aparentemente sem motivações raciais, sem que em causa estivesse um ódio a imigrantes. Será que os jornais e as televisões também iriam omitir o facto de o agressor ser branco? E as vítimas negras ou imigrantes? Será que ninguém iria para as ruas manifestar-se contra a extrema-direita e assumir que este crime estaria ligado à narrativa do Chega contra os imigrantes? Será que as organizações que combatem o racismo não se iriam pronunciar?
Não há certezas, claro, mas eu tenho a minha profunda convicção de que aconteceria tudo isso. Que este caso se tornaria num prolongado e constante debate nacional sobre questões de racismo, xenofobia, e em que a cor de pele e as nacionalidades de vítimas e agressores estariam na primeira linha de discussão, como factos absolutamente relevantes. E as pessoas que encabeçariam essa luta — legítima, se em causa estivessem, de facto, questões raciais — são exatamente as mesmas que hoje contestam que se fale de etnias e tons de pele neste caso do triplo homicídio. Alguém tem dúvidas de que o Dino Santiago seria um desses manifestantes? Eu não tenho.
Só o simples facto de se escrever isto mesmo que estou a escrever aqui já é, para muita gente, motivo de insulto, crítica, razão para me rotularem seja do que for. Mas é precisamente esta a única forma que existe de se poder discutir os temas sociais relevantes: dizendo o que se pensa, apontando factos, e procurando entender se esses factos têm ou não importância, são ou não relevantes para que se encontrem soluções para os problemas.
É obviamente relevante referir num caso como este se o agressor é cigano, negro, branco, rico, pobre, se vive no bairro, quantos anos tem, se tem filhos, se tem cadastro. É preciso saber tudo sobre ele. A mesma coisa em relação às vítimas. E é preciso estudar e entender antecedentes sociais, relações pessoais entre todos, o enquadramento familiar de cada um, para se perceber por que é que isto aconteceu. E o que é que se pode fazer para que aconteça menos vezes (porque é impossível prevenir todos os crimes, naturalmente). E quando digo referir estas coisas todas não estou a falar de jornais, revistas, sites, redes sociais, estou a falar das autoridades competentes. É necessário que todos esses dados estejam lá quando se analisa um crime como este. E é também isso que o movimento woke procura contrariar. Há já uma forte pressão política para que se eliminem esses dados das ocorrências, porque quando se diz que um cidadão é de etnia cigana ou é negro está-se a discriminar. Não é verdade. Que alguém é cigano, é um facto. Que alguém tem antecedentes criminais, é um facto. Que alguém é imigrante é um facto. Que alguém está desempregado é um facto. E se não existirem factos nos relatórios não se conseguem estabelecer padrões, chegar a conclusões e trabalhar em soluções.
Mas o wokismo combate isso mesmo, os factos. O que importa são os sentimentos. Bonito, mas totalmente ineficaz. Mas o wokismo não quer que vivamos em sociedades eficazes. Quer que vivamos em permanente guerra social entre agressores e vítimas, opressores e oprimidos, os do bem (eles) e os do mal (os outros). Porque esta é a reinvenção do Comunismo, depois de perdida a guerra dos patrões patifes contra o proletariado oprimido, depois de perdida a guerra do modelo económico comunista que gerava pessoas felizes contra o modelo económico tirano do capitalismo que gerava desigualdades.
O wokismo é a nova arma da extrema-esquerda para dividir a sociedade, a única forma de manter a sua sobrevivência, depois da derrocada dos seus modelos políticos, económicos e sociais, que falharam em todo o mundo ao longo do século XX. Só que o wokismo, que tem nas suas massas miúdos da geração Y e Z, que andam entre os 16 e os 25 anos, vai encontrar a resistência dos Milenials, do Boomers, os seus paizinhos, que felizmente ainda são do tempo em que nas universidades se ensinava História, Geografia, Matemática, Física, Química e não se tiravam licenciaturas em Ciências do Género. Porque esses resistentes — onde me incluo — foram ensinados por outros paizinhos que lutaram contra a ditadura, sabem o que é viver com a boca calada, e ensinaram-nos a nunca nos resignarmos, a combatermos sempre pela nossa liberdade de opinião, pela democracia.
Mas agora é preciso que esta maioria silenciosa não tenha medo de elevar a voz contra esta minoria ruidosa. A bem desses próprios wokistas. E a bem dos filhos deles. E — agora vem o discurso de paizinho — sabemos que um dia, quando eles forem da nossa idade, vão olhar para trás e perceber: os nossos pais tinham razão.