É provável que muitos dos que estão a ler este texto não tenham ouvido, de facto, nenhuma homilia ou missa do Papa Francisco enquanto esteve em Portugal. Já não acredito que não tenham visto pelas redes sociais variadíssimas mensagens partilhadas e repartilhadas milhares de vezes com frases, excertos, desses mesmos discursos proferidos durante a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa. E porque é que essas mensagens foram partilhadas e repartilhadas milhares de vezes? Porque são ideias de amor, tolerância, proximidade, comunhão, integração, solidariedade, humanidade, tudo sentimentos que tendem a rarear no mundo por estes tempos.
As homilias de Francisco, e as palavras que tocaram o coração de milhões de pessoas em todo o mundo, chegam ao mesmo tempo que proliferam por Portugal, e pelas mesmas redes sociais, as mensagens de ódio à Igreja, alicerçadas no argumento de que esta mesma Igreja é a casa dos horrores e abusos sexuais de milhares de pessoas. Mas é aqui que a discussão ganha contornos turvos. Confundir a Igreja, no seu todo, enquanto instituição que serve milhões de pessoas, com crimes cometidos por membros dessa mesma igreja é ser-se desonesto, é querer-se usar as vítimas e o horror que elas passaram para se esconder o que verdadeiramente está por detrás desse mesmo ódio: a ideologia, quase sempre de esquerda, quase sempre vinda de ateus.
Pontos prévios:
1. Não acredito em Deus, não sou batizado, não frequento igrejas e sou um crítico eterno da forma como, durante décadas, a Igreja não soube, de forma irresponsável, adaptar o evangelho ao mundo civilizado da ciência. Como durante décadas a Igreja — e o Papa João Paulo II, em particular — defendeu a proibição do uso do preservativo, quando a SIDA se revelava como uma ameaça ao mundo. Como durante décadas a Igreja — e os seus Papas — insistiu em marginalizar os homossexuais. Como ainda hoje a Igreja não percebeu que não faz qualquer sentido não haver madres (e apenas padres) ou não se permitir o casamento aos padres.
2. Como qualquer pessoa de bem, fiquei revoltadíssimo com as atrocidades cometidas por dezenas (ou centenas) de padres portugueses que abusaram sexualmente de crianças e jovens durante décadas. Os números são impressionantes, acredito que as histórias sejam ainda mais. Conhecemos com detalhe os casos portugueses, mas todos sabemos que isto se repetiu um pouco por todo o mundo.
Agora, é profundamente manipuladora, populista, injusta e patética a ideia de que a Igreja é isto, de que a Igreja é um bando de padres pedófilos que vive para abusar de crianças e que, por isso, tem de ser exterminada, silenciada ou reduzida a uma insignificância. E foi muito isso que se quis passar sobretudo antes do início da Jornada Mundial da Juventude. Por revolta contra esses mesmos crimes? Não. Sobretudo, por questões ideológicas.
Protestar, sempre. Recordar, sempre.
Lembrar os abusos, isso, sempre. Fazer cartazes, protestar, claro. É demasiado grave para que nos calemos. Só que essa indignação, essas nossas palavras, perdem muita da força quando uma das vozes que se juntam à nossa, e se levantam acima da nossa, é a do Papa Francisco. Quando é o Sumo Pontífice o primeiro a lembrar as atrocidades da Igreja e a necessidade de pedir perdão, mudar, prevenir, pôr fim a isto de uma vez por todas. Quando é Francisco que promove a investigação até às últimas consequências, custe a quem custar, como diria António Costa (mas desta vez o interlocutor quer mesmo que seja assim). Quando é Francisco, um homem assumidamente de esquerda, o motor principal da transformação que todos entendemos ser necessária na Igreja. Quando é Francisco o reformista que veio hastear a bandeira da igualdade, abriu a porta a todos os LGBT-QI+, "todos, todos, todos", como disse.
O esquerdista Francisco usou a arma do amor para tornar mudo o ódio da sua própria Esquerda.
Por muito que eu não acredite em Deus, não vá a missas, não tenha qualquer ligação com a religião, entendo, nos dias de hoje, o papel fundamental que a Igreja ainda tem na sociedade portuguesa e na vida de centenas de milhares (ou mesmo milhões) de portugueses, crentes, católicos, mesmo que mais desligados. Não preciso sequer de ir para o lado solidário das centenas de instituições católicas que existem pelo País, que distribuem comida, roupa e dão refúgio a quem não tem grandes meios de subsistência. Como acolhem crianças órfãs, apoiam vítimas de violência nas suas comunidades, protegem quem não tem outra proteção. Acho, na essência, que o mais importante papel da igreja no mundo é o de passar uma mensagem de paz, de praticar o bem, de difundir o amor. Se conseguirmos tirar Jesus e Deus desta equação, tudo o resto, o que fica, é o que nos faz falta por estes dias: amor, empatia, cordialidade.
Vivemos dias zangados, em que não temos elogios a entregar
Vivemos dias zangados, dias de gente que se atropela nas indignações diárias, nas guerrinhas estúpidas de privilegiados do primeiro mundo. Raramente temos um elogio para entregar, uma palavra sincera de amor, de apoio, desinteressada. Isto vê-se nas redes sociais como se vê nos transportes públicos, na rua, no trânsito. Já ninguém tira os phones, cede o lugar, pergunta a alguém se está bem, se precisa de alguma coisa. Vivemos centrados nos nossos mundos, focados nos likes, nas comparações com o do lado, movidos a inveja, rancor, amargurados, indignados, azedos. É muito este o mundo que cultivamos agarrados ao iPhone, com dedos frenéticos no scroll, a saltar do Insta para o Twitter (que agora é X), e para um dos 78 grupos de WhatsApp, e depois para o mail, e outra vez para o Insta, e depois o TikTok, e mais scroll. E fomos a ver, entrámos no metro na Baixa-Chiado e estamos no Campo Grande quando acordamos da sessão hipnótica do telemóvel. E o que é que vimos? Na maioria, merda, danças, lábios de silicone, rabos esculpidos no ginásio, gordos a cair, coaches a dizer que se acreditarmos em nós conseguimos tudo (é, é). Mas pelo meio: indignação, críticas, gente que se acha, que gera inveja, frustração. E quando chegamos a Odivelas o que é que levamos na cabeça? Quase nunca é amor, quase nunca são elogios, quase nunca é esperança.
É por isto que estas mensagens do Papa que nos chegaram pelas redes sociais neste dia emocionaram tanta gente, fizeram bem a tanta gente. Estamos cansados de sermos quem somos, estamos cansados de viver como vivemos, mas também ninguém nos fale em mudar, porque isso também não queremos. Mas queremos isto, queremos que de vez em quando haja alguém que nos toque desta forma, porque já quase ninguém quer saber disso, nem de nós, no mundo egoísta que criámos.
E a Igreja é, sobretudo, isto. São missas, ao domingo, cheias, em que se fala de amor e da necessidade de passar amor. Digo isto porque, mesmo ateu, já fui a muitas.
Não se confundir a árvore dos abusos com a floresta do bem é não se colocar a ideologia à frente da racionalidade.