As alterações climáticas são um dos temas mais sérios e urgentes para toda a humanidade. É a sobrevivência da espécie, e do planeta, a longo prazo, que estão em causa. E é preciso agir e agir já para que a situação não se torne ainda mais grave, ainda mais urgente, para prejuízo, sobretudo, dos países do sul, tendencialmente mais pobres, e que sofrem muito mais com as perturbações climatéricas e os seus efeitos secundários, como os tufões, trovoadas, secas, cheias, que destroem as suas já mais fragilizadas economias. 

Mas o caminho para se chegar à tão ambicionada meta das emissões zero é muito, muito difícil, e tem de ser feito de forma faseada, concertada, com enormes investimentos públicos, alterações estruturais nos funcionamentos energéticos dos países e uma gigantesca tarefa que depende também muito dos cidadãos, e não unicamente dos governos. É preciso que as pessoas assumam a sua responsabilidade individual, que exista uma consciencialização individual do papel de cada um de nós, sobretudo na forma como gerimos a energia ao nosso dispor. Esse é um problema-chave. Se as pessoas, individualmente, não alterarem a sua forma de pensar, se não pararem de fazer aquilo que lhes é mais confortável, mais barato, mais seguro, dificilmente isso vai acontecer. Mas como é que se convence uma pessoa que tem pouco dinheiro a mudar de hábitos se isso lhe vai sair mais caro, dificultar a vida e transtornar rotinas? Isto quando, ao mesmo tempo, lhes é vendida a ideia de que o seu esforço não vale de nada porque o que é preciso é combater os capitalistas e as grandes indústrias petrolíferas.

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É muito, muito difícil sair deste ciclo, e é precisamente por isso que este impasse dura há anos. Porque é complexo. Mas o caminho tem de ser feito e é um caminho sem regresso possível, porque voltar atrás não é, não pode ser opção. Mas é também preciso que se perceba que nenhum país, nenhuma pessoa, nenhum presidente de um país, nenhum CEO deste mundo quer a destruição do planeta e da humanidade. Todos sabemos onde tem de se chegar. Mas chegar lá em cinco, dez anos é completamente impossível. O preço a pagar por isso, por cortar, sem uma estratégia, com o uso de energia gerada por combustíveis fósseis seria antecipar o problema: levaria à morte de milhões de pessoas, sobretudo os tais pobres que hoje queremos proteger, as tais vítimas dos capitalistas que — para muitos — são os causadores da destruição do planeta, em proveito próprio.

Vamos ser sérios na discussão e apoiar as nossas opiniões na ciência, nos factos, nas estatísticas. Vamos olhar para o mundo tal como ele é, com as dependências que foram criadas para que a humanidade subsista e para que, hoje, haja alimentos, medicamentos e energia, diários, para 8 mil milhões de seres humanos e para milhares de milhões de animais. 

Chegámos aqui graças ao combustível fóssil

Em primeiro lugar, é fundamental entender que a humanidade só chegou, hoje, onde chegou, porque passou a usar os combustíveis fósseis para gerar energia. Sem o carvão, o petróleo ou o gás natural, o mundo continuaria, hoje, com níveis de desenvolvimento e problemas de sobrevivência de meados século XIX. A ciência não se teria desenvolvido, continuaríamos a morrer aos 40/50 anos porque a Medicina não teria alcançado um nível para evoluir, continuaríamos a fazer as travessias entre países em carroças ou barcos, e, sobretudo, continuaríamos com fomes cíclicas que matariam milhões de pessoas todos os anos. 

O mundo só chegou onde chegou a partir do momento em que passou a usar os combustíveis fósseis para gerar energia e, com isso, progresso civilizacional. Compreende-se, por isso, que muitos dos protestantes das cimeiras climáticas sejam ligados a movimentos de extrema-esquerda que combatem não apenas a forma como o planeta está a ser destruído mas que pretendem, sobretudo, que seja destruído o modelo civilizacional ocidental, visando um poético regresso a um estado “mais puro” da humanidade, sem globalização, sem economia de mercado, sem capitais. Ambicionam e apontam a um mundo celestial, muito presente nos livros de escola dos regimes comunistas, em que vivemos todos felizes nos campos que são de todos e em que o homem não é explorado pelo homem. Poesia, portanto, já que nunca em momento algum da História este tipo de sociedade gerou consenso, felicidade, riqueza. Pelo contrário, gerou ditaduras, guerras, miséria e fome.

Ou seja, o caminho não é um, mas também não é o outro. Sobretudo, a questão das alterações climáticas é demasiado importante para que se tente fazer dela uma luta ideológica, porque não é isso que vai ajudar a resolver o problema.

Uma das consequências evidentes do progresso científico gerado pelo uso de energia à base de combustíveis fósseis foi um aumento geral da população mundial. As pessoas começaram a morrer muito mais tarde, a taxa de mortalidade infantil caiu a pique com o desenvolvimento da Medicina e da indústria farmacêutica, com o desenvolvimento de medicamentos e vacinas, e as próprias famílias começaram a tornar-se maiores.

Em 1800, em pleno período de expansão da revolução industrial (feita à base do uso de combustíveis fósseis), a população mundial era de mil milhões de pessoas. Em 1900, já com a utilização sobretudo do carvão e do petróleo na maior parte das indústrias (sobretudo alimentar), a população mundial cresceu 50%, para os 1,6 mil milhões. No ano 2000, apenas 200 anos depois, passou para 6,1 mil milhões, seis vezes mais. E como é que se conseguiu gerar comida para alimentar tanta gente? Através do uso de combustíveis fósseis na indústria alimentar. 

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A falta de energia leva a crises profundas

Basta conhecer um pouco de História para entender que as grandes crises mundiais estão quase sempre ligadas ao menor acesso a energias. Basta ver o que está a acontecer nos dias de hoje. Havendo menos acesso ao gás natural, carvão e petróleo da Rússia toda a Europa começa a ser assombrada por uma crise económica. Uma das grandes causas do 25 de abril em Portugal, daquelas muito pouco faladas e exploradas, foi a gigantesca crise económica que se abateu sobre o país como consequência da crise do petróleo de 1973, que gerou uma quebra abrupta na qualidade de vida das famílias, desemprego, e uma crescente agitação social, que ajudou a que se chegasse à revolução de Abril (não foi, naturalmente, a única razão, mas foi essencial na criação do clima de insatisfação que culminou na revolução).

Da mesma forma, uma das razões que levaram a que Portugal chegasse quase à bancarrota no início dos anos 80, levando a um pedido de ajuda do Fundo Monetário Internacional, foi a guerra entre o Irão e o Iraque (que começou em 1979), que levou a uma nova crise do petróleo. Estes são só exemplos portugueses, mas poderíamos ir para exemplos internacionais. Entre 1950 e 1973, ano da tal crise petrolífera, a produção económica da Europa triplicou. E entre 1973 e 1975, em apenas dois anos, com a crise petrolífera, caiu 90 por cento. Ou seja, o acesso à energia está intimamente ligado não só ao progresso mas à melhoria da qualidade de vida das populações, o desenvolvimento tecnológico que leva à criação de mais comida, medicamentos, desenvolvimentos científicos e criação de bens que acrescentam valor à vida das pessoas. 

É inegável que as grandes economias mundiais têm feito muito, muito pouco, e muito, muito abaixo do desejado para reduzir a dependência de energias de origem fóssil. Mas isso não tem que ver unicamente com o desejo ganancioso pelo lucro, pela globalização e enriquecimento das petrolíferas, como se tenta muitas vezes vender na tal visão populista do problema. É, de facto, muito difícil, com as infra-estruturas atuais, migrar do uso de combustíveis fósseis para outras soluções verdes, como as eólicas, hidráulicas ou solar. Isto já para não falar da diabolização criada à volta da energia nuclear, que levou a que países como a Alemanha a tivessem abandonado de vez.

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Não existem condições naturais (sol, vento, água) suficientes nem estáveis para sustentar toda uma indústria de um país de forma consistente e regular. Se assim fosse, ou se assim se tentasse que fosse, uns dias de céu coberto, sem vento e sem chuva podiam levar a grandes quebras na produção dos alimentos, o que ocasionaria um pico de inflação, trágico para os mais pobres, que levaria a fomes, conflitos sociais, no fundo, o que a História já nos mostrou. Ou seja, tem sempre de existir uma base forte de uso de energia segura, e a mais segura e mais barata continua a ser a fóssil. 

A Alemanha, por exemplo, talvez o país do mundo que mais tem trabalhado nos últimos 22 anos em soluções de energia verde, que desenvolveu as soluções solares, eólicas e hidráulicas mais avançadas do mundo, conseguiu baixar, de 2000 para 2019, a dependência de energia de origem fóssil de 84 para 78 por cento. Ou seja, continua a apenas conseguir gerar 22 por cento de energia verde para manter a sociedade a funcionar. E porquê? Porque as soluções verdes são instáveis e a Alemanha não é propriamente um país em que abunde o sol o ano inteiro. Este é um problema estrutural e difícil de combater que existe em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o norte já consegue gerar uma percentagem muito grande de energia eólica, o sul consegue gerar muita energia solar, mas as infra-estruturas de transmissão dessa energia por todo o território continuam sem ser construídas, o que faz com que exista ainda uma dependência de 80 por cento de energia fóssil. No Japão, então, a tendência é pior. Em 20 anos, a dependência de combustíveis fósseis passou de 83 para 90 por cento.

Só podemos comer, hoje, graças aos combustíveis fósseis

Vamos a outros exemplos práticos. Grande parte das necessidades alimentares das populações do planeta são suprimidas graças à importação de comida ou matérias-primas essenciais para fazer comida (como o trigo, o milho ou centeio, para o pão). E essas matérias-primas e alimentos são transportados, essencialmente, por avião. O desenvolvimento tecnológico atual não é suficiente para que se consiga fazer deslocar um avião entre dois continentes (Europa e Ásia, por exemplo) com recurso a energia elétrica. Não há baterias com carga suficiente para isso. E dificilmente elas serão criadas/inventadas nos próximos 20 anos. Ou seja, para se fazer transportar comida para alimentar as populações é obrigatório o uso de energia de origem fóssil. E continuará a ser por muito tempo. Dizer que se podem limitar as viagens de avião ou recorrer a meios de transporte alternativos é querer brincar com coisas sérias. Uma viagem de avião que é feita em 12 horas poderá não ser possível ser feita de barco. E poderá demorar 5 ou 6 dias a ser feita de comboio, com custos muito mais elevados e uma carga muito menor. Uma vez mais, isso originaria fome, miséria, crises económicas, conflitos sociais.

Também as indústrias alimentares, que produzem a comida que todos comemos diariamente, dependem, em grande medida, do uso de energia de origem fóssil, mesmo que ela muitas vezes seja invisível aos olhos de quem só olha para a superfície das coisas. É, uma vez mais, um exercício bonito de poesia defender que devemos ser todos veganos porque a indústria da carne e dos laticínios é uma das principais responsáveis pela produção de gases carbónicos (e não é mentira), mas achar-se que a indústria dos vegetais é totalmente limpa é, lá está, olhar para as coisas com um olhar ideológico e não real. 

Os combustíveis fósseis são o motor de toda a indústria agrícola mundial, em todos os países, seja qual for a orientação política ou estado de desenvolvimento. As grandes máquinas agrícolas, como as debulhadoras, as ceifeiras, os tratores, são movidas a combustíveis fósseis. Os grandes veículos que transportam a comida dos produtores para os distribuidores e depois para os locais onde são vendidos aos consumidores são movidos a combustíveis fósseis.  A construção dessas máquinas e veículos é feita em fábricas que se alimentam de energia fóssil. Os vidros e plásticos usados para cobrir as plantações e criar efeitos de estufa são feitos com recurso a combustíveis fósseis. É completamente impossível mudar tudo isto em meia-dúzia de anos, nem sequer em 10 ou 20 anos. Uma vez mais, para abandonar este modelo é preciso uma alternativa e não existe essa alternativa. É essencial, sim, trabalhar rapidamente na criação dessas alternativas, mas isso vai demorar muito tempo, daí não haver mais minutos ou horas a perder. 

Um quilo de pão obriga ao uso de 600 ml de gasóleo

No livro “Como o Mundo Realmente Funciona”, o cientista e professor universitário Vaclav Smil, um dos maiores especialistas e estudiosos mundiais de energia, faz uma análise estimada das quantidades de gasóleo que são necessárias para produzir 1 quilo de vários alimentos. E isso ajuda a entender a dependência que ainda existe dos combustíveis fósseis. Para se produzir 1 quilo de pão, por exemplo, é necessário, em média, 600ml de gasóleo. Para se criar um frango com 1 quilo podem ser necessários até 750ml de gasóleo, valores que já incluem o transporte dos produtos até ao consumidor final. No caso dos tomates de produção em estufa, um quilo pode necessitar de até 500ml de gasóleo.

Também a questão ambiental aqui importa, já que para gerar frutas e legumes em estufas que simulem temperaturas que não são as de época são necessárias enormes quantidades de plástico. No sul de Espanha, onde estão algumas das maiores plantações de tomates da Europa, é possível ver verdadeiros lençóis de plástico durante centenas de quilómetros, a cobrir os tomates. E o plástico é feito com recurso a combustível fóssil e é altamente poluente.

A discussão, neste momento, não se deveria centrar na culpabilização e na diabolização do modelo de sociedade dos responsáveis pelo estado a que isto chegou — todos sabemos que são os países desenvolvidos (40 por cento das emissões globais de gases de efeito de estufa são produzidos por 16 por cento da população), que são também os responsáveis pelo estado de desenvolvimento mundial atual  — mas sim na procura de soluções, estratégias, de um compromisso real para algo aconteça.

A auto-estrada para o Inferno

António Guterres disse na abertura da Cimeira do Clima, no Cairo, que “estamos numa auto-estrada para o inferno” e que “continuamos a carregar no acelerador”. Verdade. Mas a solução não é carregar a fundo, com os dois pés, no travão, e parar o carro. Tem de ser abrandar e procurar formas de compensar as emissões poluentes que esse carro está a fazer.

Outra das discussões sérias que é importante travar tem que ver com a tal meta da neutralidade carbónica. Para muita gente, com os manifestantes que acham super giro atirar sopa de tomate a obras de arte para se manifestarem contra as alterações climáticas, chegar às emissões zero é parar toda a indústria, encostar todos os automóveis e voltarmos a viver em paz e amor daquilo que a terra nos dá. A desinformação e falta de informação leva a que as histórias da carochinha continuem a ser passadas como verdades, de boca em boca, geração em geração, enfabuladas, criando uma ideia totalmente irreal de que é possível viver sem emissões carbónicas. Mentira. Mentira. Mentira. Uma vez mais, morreríamos todos à fome em dois ou três anos.

A neutralidade carbónica atinge-se, sim, reduzindo a emissão de gases poluentes (e aqui, sim, a indústria do gado bovino e dos laticínios tem um papel devastador, já que são produtores em massa do pior de todos os gases carbónicos, o metano), desenvolvendo filtros transformadores para a indústria, mas, sobretudo, massificando tecnologia que permite aspirar os gases carbónicos do ar, purificá-los, e devolver oxigénio limpo ao planeta. Estes sistemas já existem, mas são ainda absolutamente residuais e experimentais. O aperfeiçoamento, produção e massificação, sim, poderão permitir que até 2050 seja possível atingir a tal neutralidade carbónica — as emissões zero, que não são emissões zero, são emissões de gases carbónicos iguais ao número de extrações de gases carbónicos.

O caminho é longo, difícil, incerto, e a única certeza é a de que tem de ser feito, e tem de ser feito ontem, e já era tarde. Agora, não ajuda em nada levantar poeira (mesmo que não carbónica) para esta discussão, contaminar a opinião pública com ideias fantasiosas de soluções fáceis e insistir na narrativa ideológica dos maus (os ricos, capitalistas) contra os bons (os pobres, os que lutam pela natureza). Esse mundo não é real.