Há uns dias dei por mim a ter um banho (gelado) de realidade, ou a entrar numa realidade paralela. Ainda não percebi bem. Num jantar de trabalho, a conversa seguia amena, comentavam-se algumas celebridades até ao momento em que me pediram a opinião sobre Margarida Corceiro.
Para quem não está familiarizado com os mais recentes desenvolvimentos: Margarida Corceiro é uma jovem atriz de 19 anos. É (alegadamente) namorada do futebolista João Félix e, recentemente, foi notícia, porque terá tido uma aproximação (já desmentida... mas o que é que isso interessa?) ao jogador do Sporting Pedro Porro.
Ora, a minha opinião pessoal sobre Margarida Corceiro é nenhuma. Nunca privei com a jovem e a única vez que a entrevistei foi nos bastidores do programa da TVI "Dança com as Estrelas". Pareceu-me muito simpática, bastante tímida, incrivelmente bonita.
A minha opinião profissional sobre alguma cobertura mediática feita sobre Margarida Corceiro é outra, e fiz questão de a expressar, o que entornou o caldo de forma irreversível. Mas já lá vamos. Há uma obsessão quase doentia de uma certa comunicação social pelo que representa Margarida Corceiro: uma jovem, ainda adolescente, famosa, com relativo sucesso, que namora com outro jovem, um futebolista, esse com mais sucesso ainda. Há uma certa comunicação social que quer encaixar Margarida Corceiro na categoria "Maria Chuteira" e não consegue. Primeiro, porque os tempos são outros. Depois, porque Magui foge a esse estereótipo que, no passado, foi usado para denegrir e achincalhar outras mulheres (como se ter como objetivo de vida ser namorada de um jogador de futebol não fosse um objetivo como outro qualquer).
Para uma certa comunicação social, Margarida Corceiro tem de ser representada à moda antiga, como se representavam há 10, 15 anos mulheres como Nereida Gallardo ou Merche Romero. Para uma certa comunicação social, é aceitável colocar uma miúda de 19 anos no epicentro de uma pseudopolémica (uma alegada traição), torná-la vilã de uma história que ninguém sabe muito bem como aconteceu. E que não interessa a mais ninguém senão aos visados. E, além da comunicação social, há o machismo marialva que grassa nas redes sociais, as partilhas infinitas de imagens divulgadas sem autorização, o fetiche pelo espreitar da fechadura, a posse, ainda que imagética, de um corpo que é inacessível. É grotesco, quase.
"Não me venhas com feminismos" foi o pontapé de saída de uma troca amarga de argumentos, que culminou com um dos meus interlocutores a dar a seguinte explicação: "Há dois tipos de mulheres, as santas e as assanhadas. As santas são gajas que foram para cama para aí com uns 10 gajos. As assanhadas para aí com uns 100. E a Margarida Corceiro é uma assanhada".
Fiquei em silêncio, sem ar, perante aquela explicação. À minha volta, os restantes convivas ouviam, calados, a discussão, que estava a subir de tom. Via os olhares curiosos e um pouco constrangidos. A determinado momento, comecei a fazer contas de cabeça, para tentar perceber em que categoria é que eu me inseria. Claramente assanhada. E eu, que raramente dou o braço a torcer numa discussão, calei-me. Calei-me porque eu já tinha perdido naquela conversa. Calei-me porque havia mais mulheres à minha volta e nenhuma delas abriu a boca. Se calhar, também pensariam como o meu interlocutor, que as mulheres se dividem em duas categorias, as santas e as assanhadas. Às tantas, cheio de fúria por ter encontrado um espécime dessa turba, as "feministas", o meu interlocutor tentou, novamente, puxar o assunto Corceiro. Calmamente, respondi que já tínhamos passado à frente. "Mas quem és tu para decidir quando é que a conversa acaba?!", vociferou. Levantei-me, com as mãos a tremer, e fui à casa de banho. Agora arrependo-me de não lhe ter dado um banano.
Porque é isto, é sempre isto. Somos nós, mesmo quando temos opinião, mesmo quando temos razão, que nos temos de calar. Para acomodar os humores masculinos, para não os perturbar, para não despertar a raiva do macho (e eu, confesso, tenho muito medo de homens enraivecidos). O pós-match desse jantar, talvez o corolário, aconteceu quando um dos responsáveis (também homem) se aproximou de mim e disse, entre risos, "pois, a Raquel estava um bocado nervosa". Porque também é isto, sempre, que acontece quando nos atrevemos a contrariar a opinião de um homem. São nervos.
Nervosa, feminista e assanhada. Tantos anos de luta pela igualdade de género e é este o resumo da matéria dada.