Começo a escrever esta crónica às 7h30. Aos sábados, cumpro o ritual de ver na TV ou ouvir em podcast “Governo Sombra”. Estava eu a deglutir o meu pão com manteiga e quase me cai o queixo com o primeiro tema, o ênfase que lhe é dado e a pessoa em questão a falar acaloradamente sobre o mesmo: a entrevista do príncipe Harry e Meghan Markle a Oprah Winfrey.
Para quem não conhece a dinâmica de “Governo Sombra”, o formato inicia-se com uma ronda de temas escolhidos por cada um dos comentadores (Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares), apresentados na forma de ministérios. Desta feita, Ricardo Araújo Pereira (RAP) escolhe ser Ministro do Privilégio. O tema é a tal entrevista.
“Então bem vindo à Passadeira Vermelha”, diz jocosamente Carlos Vaz Marques e eu estou precisamente a pensar no mesmo e a não acreditar que RAP esteja a comentar um tema que é certo que tenha dominado a atualidade esta semana (mais devido a estarmos todos exauridos desta pandemia e a querermos projetar as nossas angústias em alguém, lá está, privilegiado) mas que tem, no panorama geral das coisas, uma importância muito, mas muito relativa.
Antes de continuar, deixem-me fazer aqui um parêntesis. Em 16 anos de jornalismo, nunca entrevistei Ricardo Araújo Pereira e é uma mágoa que eu tenho. É um ressabiamento, até. Não aconteceu porque calhou sempre trabalhar em publicações em relação às quais RAP nunca nutriu especial simpatia: revistas cor de rosa e de televisão. E tenho pena, não tanto do ponto de vista jornalístico (porque não me tenho em boa conta o suficiente para achar que iria inventar a roda e fazer diferente de todas as entrevistas que já lhe foram feitas) mas sim porque seria do caraças poder conversar com um dos cérebros mais fascinantes deste País.
De volta à vaca fria.
RAP refere que, na CBS, antes de a entrevista de Meghan e Harry ter sido emitida, o canal norte-americano exibiu o “60 Minutes” (programa de grande reportagem), no qual eram contadas histórias de norte-americanos que perderam casas e vivem em carros ou tendas, consequência da pandemia. E isto só me fez lembrar um dos mais hilariantes segmentos de “Keeping Up With The Kardashians” quando, numa viagem às Maldivas, Kim perde um brinco de diamante, desata a chorar que nem uma Madalena e, ao longe, sardónica, Kourtney diz: “Kim, there’s people that are dying” (Kim, há pessoas a morrer”).
Continuo de queixo caído quando Carlos Vaz Marques refere não só que a SIC comprou os direitos de transmissão da entrevista como a vai emitir este domingo, a seguir à estreia de “Hell’s Kitchen”. Isto é o que, em marketing, se chama “promoção cruzada”.
Ricardo Araújo Pereira diz que se está a “borrifar” para estes aristocratas e ainda bem. Parece também estar com muita atenção ao fenómeno, que passa a debulhar. O tema abordado na entrevista e que poderá ter algum tipo de consequências de maior, o alegado racismo, é o escolhido por RAP. E segue-se depois um exercício algo bizarro de whataboutism (termo em voga para designar uma falácia formal tu quoque, cujo objetivo é tentar desacreditar outrem, acusando-o de hipocrisia sem, no entanto, refutar o argumento).
RAP relembra os tempos em que Harry “era racista”, referindo-se a dois episódios concretos: uma festa, que aconteceu em 2005 e na qual o príncipe se vestiu de nazi (tinha 20 anos na altura) e outro episódio, em 2009, no qual foi filmado a chamar “our little Paki friend” a um colega da academia militar de Sandhurst (“Paki” é um termo pejorativo usado para designar uma pessoa oriunda do Paquistão).
"Mas isso foi há 12 anos e agora ele é vítima". E começa a escapar-me aqui qualquer coisa. É impressão minha ou, do que vi e li, Harry nunca se coloca nem na posição de vítima nem diz em algum momento que foi alvo de racismo? Fui eu que vi mal ou a conversa do tom de pele de uma criança que ainda não tinha nascido foi inicialmente abordada durante a conversa de Meghan (filha de mãe negra e pai branco) e Oprah (preciso de dizer o óbvio? Eu digo. Uma mulher negra).
Em 2003, na primeira temporada de Gato Fedorento, Ricardo Araújo Pereira e José Diogo Quintela usam “black face” para encarnar dois rappers, no sketch “O que está a dizer?”.
Em 2014, num anúncio da MEO intitulado "NATAL MEO cantado com muito soul e pouco sal", Ricardo Araújo Pereira usa “black face”. Não sei se existe um prazo de validade para uma pessoa deixar de fazer merdas passíveis de, no futuro, serem consideradas racistas, mas sete anos parece-me pouco tempo.
Como podem ver pelo exercício que fiz aqui, tudo é passível de ser whataboutizado. Mas, depois, há que ter a honestidade intelectual de perceber que há um tempo e contexto que explicam as coisas e que toda a gente tem o direito de errar, mesmo que esses erros fiquem escarrapachados na internet para toda a eternidade.
"Não sei se existe um prazo de validade para uma pessoa deixar de fazer merdas passíveis de, no futuro, serem consideradas racistas, mas sete anos parece-me pouco tempo"
E não, não alinho nessa onda acéfala da cultura do cancelamento que, volta e meia, anda por aí no Twitter, na qual meia dúzia de auto-iluminados grita religiosamente todas as semanas, após a exibição de “Isto é Gozar com quem trabalha”, ‘ah e tal o RAP devia ser cancelado, já não tem graça / é de esquerda / já não é de esquerda / está feito com o PS / está feito com o PSD’. Tenham juízo. Aliás, se não fosse o RAP, eu não tinha utilizado a expressão “ah e tal”.
Mas isto nem é o que me intriga mais nesta emissão do “Governo Sombra”.
O que me intriga mais é que, para RAP, o que importaria aqui era desvendar o mistério da identidade de quem disse o quê. Como se isso importasse ou tornasse a conversa mais ou menos racista. E se soubéssemos, o que é que iria acontecer a seguir? Eu sei. Nada. Como dizem os americanos, todos temos um tio racista mas não é por isso que vamos para a CBS nomeá-lo. Ele existe, está lá. Importa quem é? Sinceramente, não. E vindo de uma família que, ainda hoje, representa uma coisa a tresandar a mofo chamada Commonwealth, estávamos à espera de quê? De gente woke e prá frentex? Vá lá.
E nisto já vamos em 5 minutos e 40 segundos do mesmo tema e temos RAP a corrigir Carlos Vaz Marques, quando este se refere à rainha Isabel II como “sogra” de Meghan Markle. Será que o “Governo Sombra” começou uma parceria com a “Hola!” e eu não dei por nada? Que diabo.
A conversa entra em tanto detalhe, que é ainda comentado o episódio da alegada desavença entre Kate e Meghan (volta Cláudio Ramos, estás perdoado) e juro que, tivesse eu o número de RAP, lhe mandava um whatsapp a pedir o link pirata com a entrevista completa. É que, até agora, eu só vi os excertos que andam por aí e curtia não ter de esperar até domingo à noite.
Depois disto tudo, Pedro Mexia, pragmático como sempre, resume: “É uma lata desgraçada toda esta entrevista”. E eu, apesar de ávida fã de tudo o que mete realezas, príncipes e princesas, concordo.
Há um pormenor que é preciso ressalvar. Esta entrevista é entretenimento. Como as famílias reais, em 2021 (as boas, as à séria, não aquelas secantes como as da Suécia ou da Dinamarca) são puro entretenimento. Pão e circo, cristãos (neste caso, anglicanos) vestidos de Chanel e com joias de diamantes de sangue atirados aos leões sedentos, de telemóveis na mão, prontos a tuitar.
Sim, aquele casal é milionário. Sim, são privilegiados. Sim, estamos a viver uma pandemia e há pessoas a morrer. Mas nem toda a gente tem a capacidade intelectual de ir buscar salvação aos livros (que, até ver, também custam dinheiro), à cultura (que não é de borla) ou às viagens (idem). Há quem só tenha (ou só queira ter) a televisão, as redes sociais. Há quem, por força do cansaço, de uma vida que não permite mais, não consiga ultrapassar essa fronteira entre a medianidade e a elevação intelectual e só queira escapar e ver que, afinal, os ricos também têm problemas. E que talvez encontre, nestes tempos difíceis, algum consolo em ver que pessoas tão privilegiadas também têm desaguisados com a família.
Ricardo Araújo Pereira, também ele um homem branco privilegiado, com um nível de vida muito acima da média portuguesa, é inspiração para uma geração na qual me incluo. No entanto, o seu humor também é produto de um tempo e um contexto.
Considerando as devidas diferenças de idade, somos mais ou menos da mesma geração. Crescemos nos anos 80 e 90, somos de famílias de classe média, nunca se abateu sobre nós nenhum preconceito ou discriminação de maior. Isso é ser privilegiado. Depois uma pessoa cresce e decide o que quer fazer com o seu privilégio: se apontar o dedo ao privilégio dos outros se (se) contextualizar.