As declarações de Luis Rubiales, proferidas esta sexta-feira, 25, na assembleia geral da federação espanhola de futebol, são um caos assustador. Mas há uma coisa que é mais clara do que água. O ainda presidente da federação espanhola de futebol não entende que o seu ato foi errado, apesar de dizer que o seu ato foi errado (o que também acaba por contradizer, embora inicialmente peça desculpas).
Rubiales acha que isto, no fundo, é tudo uma cabala contra ele. Rubiales, ao melhor estilo conspiracionista, acha que os media, o "falso feminismo, um flagelo neste País" e uma série de inimigos invisíveis planearam tudo isto para o destruir. Pior! Justifica que, como foi um beijo "sem desejo", um beijo que daria a uma das suas filhas, está tudo bem. E o mais asqueroso é que fez este discurso à frente das filhas, que ali se encontravam (em lágrimas), expondo-as desnecessariamente. Se isto não diz tudo sobre o calculismo e falta de noção do homem, não sei o que diz.
Em suma. Ele, como homem, como superior hierárquico de Jenni Hermoso, como pessoa numa posição de poder, pode dar um beijo na boca em público a uma subordinada, desde que seja "sem desejo". Pode agarrá-la, espetar-lhe um "chocho" porque não houve desejo da parte dele. DA PARTE DELE. ELE ELE ELE. Rubiales diz que o beijo foi "consentido". Jenni Hermoso já disse que não. Rubiales diz que nem sequer foi um beijo. "Fue más un pico que un beso", em português "foi mais um chocho do que um beijo". O que é que, para Rubiales, será um beijo? Um linguadão com 2 litros de saliva? Não sabemos.
Rubiales diz que, como a jogadora o abraçou, viu ali uma porta aberta para a beijar. Que é uma coisa que a malta faz normalmente com os amigos. Dá abraços e de seguida, pimbas, desata aos chochos. O que ele quer dizer - que é o que muitos agressores dizem nas mais variadas situações - é que, como Hermoso não reagiu na altura, então consentiu.
Rubiales diz que lhe pediu "un piquito" e que ela assentiu, descreve ao detalhe toda uma conversa que deve ter-se passado a uma velocidade supersónica, tendo em conta que o encontro dos dois no pódio durou escassos segundos. E como é que alguém reage naquela situação, naquele momento, com os nervos, as emoções, as câmaras? Ia a jogadora esmurrar o presidente da federação ali no momento? Ia desatar à estalada? Não. Porque é assim, infelizmente, que nós, mulheres, reagimos tantas e tantas vezes perante estas agressões, que não são assim tão micro quanto parecem. Ficamos paralisadas pela vergonha, sem reação. "Terei sido eu a provocar? O que é que eu fiz para ele achar que podia fazer isto?". Depois vem a dúvida. "Ah, se calhar ele nem queria fazer aquilo". Depois vem a culpa. Sempre a culpa. E o medo. "E se eu fizer queixa dele? Ninguém vai acreditar em mim!".
Mas não vamos duvidar do homem. Vamos sim questionar por que raio havia ele de pedir um chocho a uma jogadora.
O que é aflitivo nas declarações de Rubiales é que só ele importa. O trabalho dele. O cargo dele. Ele é uma vítima do "falso feminismo". Da comunicação social. "Estão a tentar matar-me". Apesar de tudo, Rubiales teve o condão de revelar a hipocrisia daqueles que, em silêncio, deixaram que esta situação se arrastasse durante uma semana até que se tornasse insuportável. O que, dentro de uma federação profundamente machista e retrógrada, lhe deram apoio em privado mas não o fizeram em público. Com medo de perder o tacho, diga-se em bom português.
Mais triste (e indutor do vómito) do que Rubiales foram os machos da plateia, que batiam palmas ao seu ídolo. E os machos em casa, nas redes sociais, desculpando aquele comportamento. Falam de wokismo, do politicamente correto. São esses que levam os Rubiales em ombros, são esses medrosos, os que temem o poder das mulheres, que as querem amordaçadas, bem comportadas, dando piquitos caladas, sem estrebucharem nem dizerem 'não'. São esses que acham que tudo isto é um exagero (porque não é com as filhas deles) e que, coitado, o homem está a ser crucificado. São esses que fazem de Rubiales um santo. Um mártir.
Tudo isto teria terminado na segunda-feira passada se Rubiales fosse um gajo inteligente (ou pelo menos estivesse bem aconselhado). Bastaria ter dito: "eu errei, peço desculpa". Não é "se errei, peço desculpa". É assumir que aquele gesto, independentemente de todo um contexto que não conhecemos (ou porque não existe ou porque os protagonistas não o querem dar a conhecer) é um mau exemplo. Para os homens, para as mulheres, para as crianças, para as filhas de Rubiales. Não se beija outra pessoa, seja homem, mulher, sem consentimento. Não se expõe uma pessoa que está abaixo de nós em termos de poder e influência daquela forma.
Mas sabem o que é mais triste nesta história toda? A conquista daquele grupo de mulheres, que é também uma conquista de todo um país, e de todas as espanholas, ficou indelevelmente para segundo plano. E, mais uma vez, cá andamos nós a perder o nosso tempo a falar sobre homenzinhos medíocres.