De acordo com dados da Liga Portuguesa Contra o Cancro, estima-se que, em 2020, 7 mil mulheres tenham sido diagnosticadas com cancro da mama e que 1800 tenham morrido com esta doença — o tipo de cancro a que Helena Gouveia, médica oncologista, tem dedicado o seu trabalho, como investigadora na Fundação Champalimaud, onde trabalha desde 2018. “Sou médica de formação mas sou daqueles raros casos que nunca quis seguir Medicina. Eu queria era encontrar a cura para o cancro”, conta.
A morte de um familiar, na sequência de um cancro de pâncreas, fez com que Helena Gouveia trilhasse o seu percurso académico na direção da investigação mas, com as poucas oportunidades em Portugal, terminou o curso de Medicina “às apalpadelas”. “Até que encontrei a cadeira de Oncologia e percebi que podia aliar a clínica à investigação”. O propósito deste percurso, dedicado à investigação do cancro, começou no Instituto Português de Oncologia do Porto .
Atualmente, a médica dedica-se à investigação translacional que, como explica à MAGG, consiste em “pegar nas dúvidas que os clínicos têm à beira do doente, ir ao laboratório buscar soluções e trazê-las outra vez para a clínica”. Este tipo de investigação é apelidada de bench-to-bedside (da cadeira para a cabeceira da cama, numa tradução livre). “80% do meu horário é dedicado a tratar doentes com cancro de mama localizado, precoce e outras tantas também cancro de mama metastático ou recidiva, que infelizmente é incurável. E é para essas pessoas que a investigação pode fazer mais e melhor para aumentar não só a esperança de vida como, eventualmente, num futuro infelizmente longínquo, uma solução para o cancro de mama metastático”, explica.
O mote da conversa, o cancro de mama, foi rapidamente ultrapassado, com a médica oncologista a esclarecer dúvidas, mitos e contradições relacionadas com as doenças oncológicas, a relação da alimentação com o cancro e também os motivos que levam cada vez mais pessoas a desconfiar da ciência.
De acordo com um estudo do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica divulgado em outubro, “apenas 32% das doentes inquiridas participaram num rastreio ao cancro da mama”. A mamografia e a auto palpação foram, de acordo com o estudo, as formas mais comuns de deteção dos tumores mamários. Há falta de rastreios? As pessoas não estão sensibilizadas? O que é que está a falhar?
Tem sido a prevenção que tem melhorado os índices de sobrevivência de cancro da mama na prática clínica. Antes de o rastreio ser desenvolvido em 1970 nos Estados Unidos, todos os diagnósticos eram localmente avançados. O cancro da mama começa por ser um nódulo palpável e, quando começa a dar sintomas, como a ulceração da pele, dor mamária, já está num estado muito avançado e muitas vezes com metástases. Felizmente, através do rastreio, foi possível começar a fazer diagnósticos mais cedo. Foi assim que conseguimos grandes avanços, que tornaram o cancro de mama o mais curável em oncologia. Porque é diagnosticado mais precocemente, apesar de ser um tumor assintomático.
Mesmo assim, o rastreio, tal como é preconizado, não diagnostica todos os tipos de cancro, todos os tumores em todas as idades. O rastreio inclui doentes dos 50 aos 65 anos, a idade mais frequente nos cancros de mama. Consiste numa mamografia a cada dois anos numa população assintomática e isso deixa de fora todas as pessoas jovens que são diagnosticadas com cancro de mama. E são cada vez mais as mulheres que são diagnosticadas cada vez mais cedo.
E porque é que não se faz o rastreio mais cedo?
A mamografia não funciona para mulheres jovens. A mama é muito densa. Não podemos nem devemos aplicar mamografia às mulheres jovens porque não se vê nada. É melhor na ecografia mamária. Mas vamos fazer ecografias mamárias a todas as mulheres? Algumas mulheres não têm assim um risco tão elevado. O cancro de mama em mulheres jovens não é frequente, daí não existir um rastreio para essas idades. No entanto, quer seja uma pessoa jovem, quer seja uma pessoa dentro ou além da idade do rastreio, deve reportar a um médico de família, para poder fazer exames de diagnóstico o mais precocemente possível. Mesmo nas idades de rastreio há tumores agressivos, chamados nódulos de intervalo. Se o intervalo entre as mamografias é de dois anos, há tumores mamários que têm uma rápida proliferação e que surgem nesse intervalo. Nesses tumores agressivos, o autodiagnóstico é importante, mesmo para pessoas que tenham o rastreio em dia.
De que forma é que se pode educar a população feminina para o auto exame?
A auto palpação, infelizmente, tem sido controversa. Há estudos clínicos que não mostram um aumento de diagnóstico em pessoas que fazem regularmente palpação. Isto acontece porque as pessoas não estão motivadas e também não têm a formação médica para fazerem em si próprias um diagnóstico de alterações mamárias. Importa, no entanto, dizer que as pessoas devem estar conscientes de alterações do seu corpo, nomeadamente da forma da mama, de colorações da pele da mama. Devemos fazer todos os meses, fora da altura da menstruação, uma inspeção geral do contorno dos seios e, se possível, palpação dos vários quadrantes.
Normalmente, os nódulos mamários benignos são simétricos. Numa mulher jovem, fora da altura do período, podemos encontrar vários nódulos porque o tecido que temos é naturalmente granular. Tem nódulos pequeninos, do tamanho da ponta dos dedos. E, por isso, às vezes palpamos um quadrante, detetamos um nodulozinho e ficamos logo com medo. Mas se palparmos o outro lado, está exatamente igual. É importante falarem com o médico de família, tentarem aconselhar-se sobre novas formas de fazer palpação e, se tiverem médico ginecologista, fazer a palpação mamária regular, se tiverem confiança com o médico de família.
A investigação que está a ser feita na Fundação Champalimaud (nos laboratórios Fior e Costa-Silva) é para, em última instância, evitar que os doentes oncológicos sejam expostos a demasiada toxicidade durante os tratamentos?
O Laboratório Fior está focado nisso. Especificamente no cancro de mama metastático, há alturas da doença em não conseguimos controlar a doença. Então, numa altura em que temos muita medicina personalizada, cada vez mais surge a necessidade de percebermos se cada tumor responde melhor a esta ou àquela quimioterapia primeiro, para poder aumentar a probabilidade de sucesso. O teste que o laboratório Rita Fior está a desenvolver consiste em utilizar uma biópsia do tumor metastático, introduzir essas células num modelo vivo, que é o peixe zebra, fazer com que a célula prolifere e dê metástases só no peixe e, depois, tratar essas metástases. Este ensaio é muito rápido, demora duas semanas. Fazemos os peixinhos zebra nadar em água contendo diferentes quimioterápicos e conseguimos ver se o tumor diminui. Assim sabemos se o tumor que está naquela pessoa vai responder mais ao a, ao b e não responde ao c.
Agora, com esses dados, vamos entrar numa fase de ensaio clínico. Antes de receber qualquer quimioterapia, perguntamos ao médico quais são as opções terapêuticas que ele quer fazer. E nós vamos, com a biópsia tumoral do tumor metastático, investigar essas opções. Em duas semanas, sabemos qual a medicação que terá melhor resposta para aquele tumor em particular. É um estudo que vai contar com a colaboração de vários centros clínicos em Lisboa e no Porto e que nos vai dizer se este teste está pronto para a validação prática ou não. Vamos depois comparar com um grupo que faz o teste mas que não usa essa resposta.
Então, num mundo ideal, daqui a uns 5 ou 10 anos, existirá um teste que terá como resultado uma quimioterapia personalizada?
Exatamente.
Mas isto sempre no sentido de dar melhor qualidade de vida ao doente oncológico e não de encontrar uma cura.
Exatamente. Infelizmente, as medicações novas, diferentes das que estamos a dar neste ensaio, são necessárias e têm sido investigadas em ensaios clínicos.
"Podemos ter tumores que são herdados pela nossa genética. No entanto, esses tumores são raros"
O que é um cancro?
Para começar, qualquer cancro é uma célula nossa que ganha a capacidade de proliferar sem controlo. O nosso corpo está muito bem desenhado e as nossas células têm uma capacidade de vida a cumprir. Elas devem, a partir de certa altura, dividir-se e morrer, de uma forma muito programada. E as células vizinhas de um qualquer tecido estão alerta para quaisquer proliferações anómalas. Contudo, algumas dessas células conseguem ser eficazes, invadir o sistema imunitário e formarem-se em tumores. Só são malignos quando começam a ganhar a capacidade de invadir o tecido. Cancro, no geral, é uma proliferação anómala das nossas células porque os mecanismos de regulação da célula envelheceram ou tornaram-se defeituosos e permitiram o crescimento anómalo de uma determinada célula. E essa célula, se não for parada a tempo, tem capacidade de invadir os tecidos circundantes, ir metastizar gânglios e ir para a corrente sanguínea. E é aí que não conseguimos mais controlar a proliferação celular, que não conseguimos curar.
Contudo, cancro não é uma só doença. Um cancro da mama, da próstata, do pulmão, apesar de a lógica de divisão celular ser a mesma, os fatores de risco são diferentes, a forma de proliferação é diferente, o tempo que demoram a dar metástases é diferente e a resposta aos fármacos também.
Qual é o peso da genética vs. fatores como a alimentação, o meio ambiente? Porque existe aquela frase, muitas vezes repetida, “antigamente não havia cancros”.
A verdade é que antigamente havia cancro. Ele era conhecido como o mal, invisível, e havia muito tabu em falar de cancro em geral porque se conhecia muito pouco. Era uma doença do qual todos tinham vergonha e causava muito sofrimento silencioso. O facto de nós termos mais cancros hoje é aparente porque diagnosticamos mais cedo, estamos mais alerta, temos mais acesso a cuidados de saúde e parece-nos que toda a gente tem cancro. Principalmente um cancro tão frequente quanto o cancro da mama.
Em termos de genética. Quando uma célula tem um programa genético que lhe permite dividir-se e morrer em determinado momento, o cancro saltou essa parte. Cancro também é uma doença genética mas não é só uma doença genética. Às vezes nós podemos ter tumores que são herdados pela nossa genética. No entanto, esses tumores são raros. Constituem 5% dos tumores de mama, são ainda menos frequentes nos de pulmão, no melanoma. Os que são mais associados são, por exemplo, o cancro do ovário. Cerca de 20% podem ser genéticos. Mas esta situação é rara.
Eu reporto sempre ao caso da Angelina Jolie. Ela vem de uma família com muitos casos de cancro de mama, do ovário, cancro de mama no homem, bilateral, em idades jovens. Efetivamente identificaram nessa população, nessa família, um gene que lhes conferia risco de cancro, que é o BRCA. Perguntaram-lhe se ela queria fazer o estudo dessa mutação. Geneticamente, os pais podem passar aos filhos um gene desse género em 50%. Não quer dizer que vão ter de certeza cancro. Mas se aplicarmos medidas de vigilância adequadas, conseguimos prevenir qualquer cancro que surja. A hereditariedade existe, é rara, principalmente em cancro de mama só ocupa 5% dos fatores de risco e quando é conhecida deve ser vigiada de forma diferente da população em geral.
Outros fatores de risco muito importantes são, sem dúvida, o estilo de vida e a alimentação. No entanto, é muito difícil, através de investigação de qualidade, tentarmos perceber se uma dieta produz cancro ou não produz, se um alimento produz cancro ou não. Investigação, em termos de dieta, é o mais difícil que podemos fazer. Porque as pessoas têm uma dieta variada, não comem sempre a mesma e não conseguimos discernir se é da dieta, dos snacks… Não conseguimos dizer, de forma nenhuma, que uma dieta tem mais propensão para cancro do que outra. Mais: as células tumorais, na teoria, são células que se alimentam de açúcar. Há uma grande teoria de que a dieta sem açúcar seria a melhor para prevenir tumores. No entanto, isso não é verdade porque uma célula tumoral, se já está presente, vai alimentar-se de açúcar à mesma. Se não comermos açúcar, vai ao nosso músculo ou à nossa gordura e transforma-a em açúcar. A célula tumoral cresce porque tem de crescer.
A única dieta que conseguiu mostrar menor incidência e menor recorrência de cancro é a dieta mediterrânica. Mas a dieta mediterrânica dos nossos avós. Aquela em que eles comiam carne vermelha uma vez por semana ou no Natal, a carne branca, o peixinho sem os químicos todos que nós sabemos. Mas é muito difícil termos uma alimentação biológica. Talvez se voltássemos atrás no tempo e conseguíssemos preservar a dieta mediterrânica, que é património mundial da UNESCO, talvez conseguíssemos diminuir a parte da alimentação que influi na incidência de cancro.
O que é fator de risco para cancro é a obesidade. Nós sabemos que é uma pandemia que estamos a atravessar, em que grande parte da nossa população tem aumento do seu índice de massa corporal e isso promove que tumores como os do cólon, da mama, possam ter melhor incidência. Se nós conseguíssemos prevenir, ter melhor estilo de vida, com uma dieta mais mediterrânica e conseguíssemos controlar o excesso de peso e outros fatores de risco, conseguíamos também diminuir a incidência de cancro. Não vamos também esquecer o tabaco e a poluição. Se conseguíssemos ter leis que protegessem os não fumadores e que aumentassem a abstinência tabágica, programas que ajudam a deixar de fumar com eficácia, também conseguiríamos diminuir um grande fator de risco de cancros como o do pulmão, da bexiga, da cabeça e pescoço, que são altamente mutilantes e muito difíceis de atravessar.
"Sou a primeira a querer que uma vacina [de cura do cancro] venha e a não ter de pôr quimioterapia paliativa a ninguém com um cancro de mama metastático"
A origem da célula cancerígena é quase como a origem da Humanidade. Não há uma explicação lógica para o surgimento daquela célula.
Ela é uma célula normal que tem um instinto de sobrevivência como todas as outras mas que decide não cumprir um programa genético. E há novas vertentes de biologia celular, de investigação básica, que dizem que a união faz a força. Não é só uma célula que ganha capacidade de se dividir. Ela também consegue motivar as células à volta para a ajudarem a nutrir-se. Há um microambiente tumoral que também propícia a proliferação celular. Isso tudo afeta o primeiro evento que dá o tumor. Na verdade, são vários eventos de alteração do normal funcionamento da célula que levam a um tumor metastático, ao longo de meses, anos até.
"Nada impede uma pessoa, porque o seu tumor é incurável aos olhos da ciência tradicional, ir procurar tratamentos complementares que podem ou não ajudar a melhorar a qualidade ou a esperança de vida."
As correntes anti-ciência sempre existiram mas verificámos um crescimento durante a pandemia. Recorrentemente, vemos teorias e pessoas a dizer que recorreram a dietas ou a tratamentos alternativos, terapias complementares para “curar” o cancro, com muitas aspas. Um bom exemplo é o caso de Steve Jobs, fundador da Apple, que morreu de cancro e que recusou fazer quimioterapia, recorrendo a terapias alternativas. O que é que está a falhar —se é que está a falhar — em termos de comunicação?
A ciência é tão vasta que é impossível nós confinarmos em pequenas gavetas o conhecimento científico. Isso torna-o pouco inteligível para a população em geral. Também a forma como nós, na comunicação social, conseguimos relatar a ciência e conseguimos mostrar mostrar porque é que ela é importante para as pessoas, tem falhado nos últimos anos. As pessoas, por vezes, só leem os títulos e formam inferências acerca da ciência. Infelizmente, vai haver sempre má informação e é impossível dizermos a toda a gente que deve seguir esta linha.
O caso particular de Steve Jobs, que teve um cancro de pâncreas. Este tipo de cancro normalmente tem um ano, um ano e meio de vida assim que é metastizado. Ele viveu muito mais do que isso. E nós sabemos que foi porque ele teve um tumor raro de pâncreas, um tumor neuro endócrino. Funciona muito bem com terapias ligeiras, não faz quimioterapia porque não responde na primeira fase, responde a uma imunoterapia especial. Permite grandes sobrevivências. A partir do momento em que deixa de funcionar, passa a fazer a quimioterapia, diferente da maior parte dos tumores de pâncreas.
E para a opinião pública parece que ele fez tratamentos alternativos, quando não fez. Ele fez a terapêutica adequada para o seu subtipo de tumor. Depois passou por uma fase de progressão rápida, para a qual fez quimioterapia. E nada impede uma pessoa, porque o seu tumor é incurável aos olhos da ciência tradicional, ir procurar tratamentos complementares que podem ou não ajudar a melhorar a qualidade ou a esperança de vida. A medicina chinesa tem alguns tratamentos que eram usados para tumores há mais de 5 milénios que depois são reaproveitados para melhorar a qualidade de vida, em complemento com a medicina tradicional de hoje em dia. É muito difícil generalizarmos um caso de cancro. A oncologia tem-se tornado tão individualizada e tão difícil de explicar ao público comum que parece que estamos a esconder algo. Parece que não estamos a fazer o nosso melhor para aumentar a sobrevivência, para encontrar a cura para o cancro. Eu sou a primeira a querer que uma vacina [de cura do cancro] venha e não ter de por quimioterapia paliativa a ninguém com um cancro de mama metastático.
A minha visão pessoal é que não devemos dizer ‘não’ a tudo o que é estranho e para o qual ainda não temos evidência. Mas se há noção de que possa fazer mal, devemos recusar. Por exemplo, toda a gente sabe dos benefícios do aloe vera para a pele. E muitas vezes pensam: ‘se calhar vou tomar aloe vera para o intestino’. Aloe vera é altamente tóxico para o intestino. Provoca diarreias e úlceras. Muitas vezes tenho doentes com a toxicidade da quimioterapia, vou a ver e estavam a ingerir aloe vera durante a quimioterpia. Uma coisa tão inofensiva com o chá de hibisco, que é doce, floral, e que algumas pessoas gostam de tomar porque também é diurético. Vai-se a ver e o hibisco contrapõe os efeitos da imunoterapia que damos para evitar recidivas. Isto é tão vasto e há tanta literatura sobre isto que é muito difícil explicar todos os perigos que a população corre. Temos de individualizar em consulta para que o doente não ter medo de dizer abertamente aquilo que toma para podermos personalizar os cuidados para aquela pessoa.