Janeiro seco, sem álcool ou "dry january". O movimento de passar o primeiro mês do ano sem consumir bebidas alcóolicas já existe há vários anos, e sempre foi associado a uma espécie de detox depois dos excessos de dezembro, em que o consumo de álcool é mais exagerado dadas as várias celebrações.

Mas será que é assim tão benéfico para a nossa saúde ou que o único propósito é tentar dar descanso ao nosso organismo depois de um final de ano com mais abusos? "É verdade que, após uma fase de excesso, passar um mês sem beber pode ser encarado como uma fase de compensação e claro que é positivo do ponto de vista do organismo", esclarece Arsénio Santos, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF) à MAGG.

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O também especialista em Medicina Interna e subespecialista em Doenças do Fígado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra chama a atenção que o janeiro seco pode funcionar neste esquema de compensação para o organismo na mesma lógica que o consumo pontual, sem excessos. "Se uma pessoa, desde que sem doenças de fígado associadas ou fatores de risco, beber álcool com moderação durante o fim de semana e depois passar cinco dias sem beber, claro que isso também compensa o organismo."

Arsénio Santos
Arsénio Santos, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF)

No entanto, Arsénio Santos vai mais longe e relata aqueles que são os dois grande pilares desta campanha do Janeiro Sem Álcool, que além de levada a cabo pela APEF, se replica em muitos outros países.

"Há dois valores fundamentais. Primeiro, o valor simbólico deste movimento, que é chamar a atenção para o consumo de álcool. Temos um grande problema com o consumo excessivo de álcool em Portugal, e embora as gerações mais jovens tenham um padrão diferente das mais velhas, dado que bebem mais pontualmente, continuam a cometer excessos. O alcoolismo continua a existir, existem vários relatórios do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências] com números elucidativos, e é importante aproveitarmos estas datas para chamar a atenção para isso."

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Para além do valor simbólico do Janeiro Sem Álcool, o presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado refere outro ponto fundamental: perceber se pode estar a desenvolver uma dependência.

"O movimento também pode ser útil do ponto de vista de desafiar as pessoas com hábitos de consumo permanente a fazer uma quebra nesse mesmo consumo e perceberem como se sentem. Existem muitas pessoas que já estão com um grau de dependência e não têm consciência disso", explica Arsénio Santos.

Entre os principais sinais de que pode estar a ter problemas com a cessação do consumo de bebidas alcóolicas está o "não se sentir bem de uma forma geral, ansiedade e instabilidade emocional", refere o especialista, que acrescenta que esse é um grande alerta para "procurar ajuda profissional".

"O álcool não é inócuo", avisa especialista

É verdade que Portugal é um País onde o consumo de álcool está enraizado. "É cultural, faz parte de muitas franjas da nossa sociedade e começa desde cedo", refere Arsénio Santos. No entanto, há que ter noção que mesmo que este consumo seja visto como corriqueiro e até normal, o especialista avisa que mesmo o dito normal tem perigos.

"Existem muitas pessoas que já estão com um grau de dependência e não têm consciência disso"

"Há vários anos, as organizações tentaram estabelecer o que seria um limite seguro para o consumo destas bebidas. E se há algum tempo se considerava que um consumo de 50 a 60 gramas de álcool por dia era seguro, o que correspondia a cinco a seis copos, chegou-se depois à conclusão que era prejudicial. Mais recentemente, esses limites foram reduzidos para 30 a 20 gramas, o que em média corresponde a três bebidas para homens e duas para mulheres. Mas, mais uma vez, mesmo estes limites dito seguros, podem ser prejudiciais para algumas pessoas.O álcool não é inócuo."

Arsénio Santos recorda que "a maioria das pessoas não tem problemas com consumos em doses mais baixas, mas mesmo essas quantidades mais reduzidas podem ser perigosas para indivíduos mais sensíveis, com doenças do fígado ou outras patologias". "Cada caso é um caso, e com doenças associadas, deve existir um aconselhamento médico", diz o especialista.

"O consumo excessivo de álcool causa danos cumulativos no fígado, levando à inflamação e a lesões degenerativas. Neste processo degenerativo, as células hepáticas saudáveis são substituídas por tecido cicatricial, a chamada fibrose, prejudicando o normal funcionamento do fígado. A progressão da fibrose leva à cirrose hepática, uma condição dificilmente reversível, o que enfatiza a importância de ser prevenida", alerta.

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O especialista acrescenta que existem "outras condições, como as hepatites virais, a esteatose hepática de causa metabólica, também conhecida como fígado gordo, e as doenças autoimunes, que também contribuem para a sua ocorrência", mas garante que o "consumo abusivo de álcool é a causa mais comum".

"Para evitar a cirrose hepática e manter a saúde do fígado é importante ter alguns cuidados, nomeadamente começar por adotar um padrão de consumo mais seguro. Deve lembrar-se que é essencial estabelecer limites, mesmo quando o contexto onde estamos inseridos incita a comportamentos de risco."

Se tem dificuldade em não beber no socialmente "pode, por exemplo, optar pelas versões sem álcool das bebidas alcoólicas", sugere Arsénio Santos, que conclui que o equilíbrio, caso não existam comportamentos aditivos e doenças associadas, é a chave. "Qualquer coisa em excesso, mesmo a mais saudável, acaba sempre por ser prejudicial. É tudo uma questão de equilíbrio."