Esta terça-feira, 7 de julho, o Ministério Público (MP), através do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da Amadora, acusou uma mulher de cometer um crime de mutilação genital à própria filha, de apenas 3 anos. A mulher encontra-se em liberdade, a aguardar julgamento.

Foi nos primeiros meses do ano passado, em 2019, que a mãe da criança "cortou a região vulvar da menor, sabendo que com tal conduta mutilava a menor nos seus genitais, provocando-lhe dores, lesões e sequelas permanentes e aptas a afetar a fruição [ato de desfrutar de algo] sexual", pode ler-se na nota publicada no site da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

A mutilação genital feminina (MGF), condenada pela lei portuguesa, consiste na remoção da vulva e clitóris do corpo da mulher, muitas vezes sem qualquer cuidado higiénico. "As meninas sofrem consequências graves, quer ao nível psicológico, quer físico. Muitas vezes, o procedimento é feito usando lâminas e outros instrumentos de corte que podem causar infeções graves nas suas genitálias", conta a sexóloga Vânia Beliz à MAGG. E acrescenta: "As infeções causadas podem causar esterilidade e até a morte, e as cicatrizes vão comprometer o prazer e a satisfação sexual na vida adulta".

Apesar de a remoção dos órgãos genitais externos não trazer alterações hormonais, Fernando Cirurgião, ginecologista, acrescenta que esta prática pode conduzir a outras complicações, como o "agravamento das dores menstruais, surgimento de pequenos quistos ou até alterações na uretra e intestinos". "Também podem dificultar o parto e, após o nascimento, tentamos reconstruir a vulva da mulher para que tenha mais elasticidade", salienta o especialista.

Mas porque é que esta prática continua a acontecer? A aceitação social, religião, desinformação sobre higiene, e encarar a mutilação como um modo de preservar a virgindade, entre outras, são algumas das razões apontadas, tal como indica o site da Organização das Nações Unidas.

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O que se passa em Portugal

A mutilação genital feminina nunca se manifestou com grande expressão em Portugal até 2019. A prática é mais comum em países do continente africano e em regiões do Médio Oriente, mas os dados do ano passado vieram alterar as estatísticas: foram registados 129 casos, que representam uma subida de 101 por cento em relação aos 64 assinalados em 2018, de acordo com os dados do projeto "Práticas Saudáveis - Fim à Mutilação Genital Feminina", coordenado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).

A prática é punida por lei no nosso País, com o artigo 144º do Código Penal a prever que "quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas é punido com pena de prisão de dois a 10 anos".

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Até 2030, prevê-se que cerca de 15 milhões de mulheres e crianças sejam vítimas deste crime

O caso da criança de 3 anos da Amadora é apenas um entre muitos que já ocorreram. Mais: estima-se que 4,1 milhões de mulheres em todo o mundo estejam em risco de serem submetidas à circuncisão feminina em 2020. E até 2030, prevê-se que cerca de 15 milhões de mulheres e meninas sejam vítimas deste crime, de acordo com os dados da Organização das Nações Unidas.

Apesar de ser uma violação dos direitos humanos, a circuncisão feminina já afetou mais de 200 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo, tanto nos países desenvolvidos, como em países em desenvolvimento. Para já, encontram-se ativos alguns projetos e organizações que pretendem erradicar esta prática hedionda na sociedade.

"Não há uma resposta para erradicar a MGF do mundo, mas não se pode dar atenção a este tema só em altura de campanhas. É preciso que seja um trabalho constante", salienta Alice Frade, antropóloga. "Tem de existir mais acompanhamento individual e a educação nas escolas é fundamental, ainda há muitas pessoas que não sabem que já existe legislação que criminaliza a MGF", acrescenta a também associada da P&D Factor, uma associação que se preocupa com a saúde sexual, igualdade de género, entre outros temas.

Enquanto não se consegue erradicar por completo esta prática, o que estas instituições fazem é prevenir o crime através da veiculação de informação, seja em escolas ou em conferências. O Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital feminina celebra-se a 6 de fevereiro, mas é um fardo carregado por milhões de crianças e mulheres todos os dias do ano.