Interrompa-nos se isto lhe parecer familiar. Neste tipo de filmes, os protagonistas são quase sempre pessoas totalmente independentes, com um traço característico e uma profissão cool que não só pisca o olho aos millennials desta vida, como os distingue dos cidadãos ditos "comuns". Geralmente são escritores, romancistas, músicos ou têm uma qualquer outra ocupação que lhes esgota o intelecto e os faz ter objetivos concretos e específicos de superação.
Embora haja dramas, o mais comum é ver-se este tipo de produções a materializarem-se em comédias românticas, com atores poucos conhecidos, histórias (muito) pouco inclusivas e cujo desfecho é sempre feliz e otimista. Nunca trágico.
Nestas histórias nunca, ou quase nunca, há um mimetismo da realidade política e os conflitos criados nunca são maiores do que aqueles que as personagens arranjam devido às suas escolhas. É uma espécie de mundo cor de rosa cujos cenários vão mudando de tom e de cor à medida que as estações do ano vão alternando. Por isso, é frequente ver-se, ao longo do ano, as personagens destes filmes a movimentarem-se por festas de Natal, de Halloween, do Dia dos Namorados, de Passagem de Ano. A lista podia continuar.
Ainda que possam ser filmes diferentes no que toca ao tipo de história que querem contar, seguem a mesma fórmula, o mesmo tom (aqui, nunca nada acaba mal) e até podem repetir atores entre projetos.
Assim são os telefilmes que, em Portugal, passam na Fox Life e que tendem a ser a companhia perfeita para uma tarde de domingo em frente à televisão. Não são o tipo de produções que surpreendam a crítica especializada ou que promovam qualquer tipo de discussão intelectual sobre o estado atual do mundo. Mas entretém e, às vezes, só isso basta.
Nos Estados Unidos, este tipo de histórias têm lugar no Hallmark Channel cuja programação tem as famílias como seu público alvo. Só em 2019, por exemplo, o canal produziu 103 filmes originais, em que desses pelo menos 40 passavam-se no Natal.
Em Portugal, a tendência foi replicada pela Fox Life que adquiriu muitos desses filmes que começaram a ser exibidos logo a 1 de dezembro de 2019. No total, foram 40 os filmes que, todas as tardes, faziam parte da grelha do canal. Foi precisamente nessa altura que, nos Estados Unidos, o Hallmark Channel se tornou no canal mais visto entre mulheres com idades compreendidas entre os 25 e 54 anos — especialmente nos horários de prime time.
A América de Hallmark é cor de rosa, heterossexual e geralmente cristã
A explicação, uma de muitas, está na forma como representa uma sociedade — e especialmente uma América, uma vez que o canal é americano — inócua. "Nos filmes da Hallmark, as figuras de uma determinada comunidade preocupam-se umas com as outras, têm à sua responsabilidade negócios viáveis e legítimos e participam em concurso para o melhor bolo de gengibre do país", escreve a revista "New Yorker".
E esse é talvez o argumento fundamental que explica a subida de audiências juntamente com canais como a Fox News ou a MSNBC, numa altura em a presidência de Donald Trump se tem revelando caótica e nefasta. "[As produções da Hallmark] retratam uma América cor de rosa, sem armas, sem chapéus MAGA [o chapéu vermelho com o slogan 'Make America Great Again', popularizado por Trump], sem violência."
Esse é, aliás, um dos requisitos que qualquer filme Hallmark tem de respeitar. "[O canal] é o lugar onde os espectadores vão para escaparem às questões políticas e a todos os aspetos negativos da vida de cada um que possam ser negativos e problemáticos. É o lugar onde se sente que há pessoas boas e que nos fazem sentir bem por pertencermos à humanidade", explica Bill Abbott, CEO da Crown Media, a empresa que detém a Hallmark, à mesma publicação. Mas a América de Hallmark é também "heterossexual, geralmente cristã e, até há bem pouco tempo, muito branca", escreve a revista.
Há, nestes filmes da Hallmark, um compromisso entre a realidade da sociedade contemporânea do século XXI e uma fantasia idealizada. "O paradoxo está entre a plasticidade do seu conteúdo ao oferecer prazeres previsíveis, como o de um quase beijo interrompido por um telefone a tocar, que é encenado através de trabalhos de representação muito realistas em que, embora não haja a noção de arco [da evolução de uma personagem do início ao fim], há sempre uma viagem de descoberta interior dos envolvidos", continua a "New Yorker".
Isso justifica que, em muitas das histórias destes filmes, cada vez menos haja mulheres em risco de vida a precisar de um homem e se aposte em histórias mais modernas e contextualizadas com o que deve ser o papel da mulher emancipada.
"Não queremos que as nossas protagonistas femininas sejam donzelas em perigo. As mulheres apaixonam-se porque veem bondade na outra pessoa, muitas vezes devido a um ato bondoso que faz com que ela se olhe a si própria. Um bocadinho à semelhança do que acontece com os seres humanos que, quando alguma coisa lhes toca, sente algum efeito a produzir mudanças interiores", defende a argumentista Julie Sherman Wolfe à revista.
É isso que leva Ron Oliver, um dos realizadores mais habituados a trabalhar com produções da Hallmark, diz que estas personagens se comportam com uma maior maturidade do que outras no cinema. "Quando se escreve uma personagem a ser inserida no mundo da Hallmark, estas têm de se comportar tal como os adultos", daí que os protagonistas surjam, na maior parte das vezes, motivados tanto pelos seus objetivos — sejam eles pessoais ou profissionais — como por amor."
O mesmo é válido para os vilões que "tal como os heróis, têm os olhos postos nos objetivos mas não nas pessoas que os rodeiam."
Mas para que a história não fique confusa e arrisque perder a atenção do espectador, há um requisito: "O conflito nunca pode ir para lá do que é aceitável ao ponto de levar as pessoas a achar que não tem resolução possível."