Vidas que não pararam, mas que se reduziram; que se tornaram de bolha e "de práticas repetidas em quase todas as famílias". É assim que a jornalista Rita Marrafa de Carvalho descreve aquilo que se poderá ver no seu mais recente documentário, "Um Dia Num Ano de Pandemia", realizado em parceria com o também jornalista Miguel Teixeira, e que põe as pessoas no papel de protagonista.

Espalhadas por todo o País, são pessoas que, continuando ou não a fazer os seus trabalhos, permanecem confinadas e à espera de que tudo passe. Enquanto não passa, readaptam-se.

Prova disso é o facto de a recolha das imagens ter começado a 16 de fevereiro, no Carnaval. "A 15 de fevereiro, pedimos às pessoas, através das nossas redes sociais, que filmassem as rotinas do dia seguinte, mesmo que as achassem desinteressante", até porque, continua, "a vida não tem de ser sempre interessante". Num dos vídeos, via o paradigma dessa readaptação: crianças que não deixaram de festejar o Carnaval, mas em casa.

A SIDA em Portugal. "Havia uma forte culpabilização interna e uma vergonha castradora"
A SIDA em Portugal. "Havia uma forte culpabilização interna e uma vergonha castradora"
Ver artigo

No mesmo apelo, pediu que nada fosse encenado para que o resultado fosse o mais "fiel possível". "Quando há uma câmara intrusiva e um ser externo, com um jornalista ou um documentarista, a realidade que transparece para o ecrã é sempre filtrada. Quando as pessoas se filmam a elas próprias e aos seus, há um relaxamento. São mais naturais e mais descomprometidas", explica à MAGG.

Essa naturalidade, que assemelha à da vida, era a que lhe interessava captar.

"Recebemos mais de 630 vídeos vindos de pessoas do Norte ao Sul do País, homens, mulheres, jovens, velhos, empregados, desempregados, pessoas que trabalham na agricultura, em cafés, que estão em teletrabalho, músicos... Passámos a ter uma parafernália daquilo que era a vida chata e confinada, através de pessoas que representam vários quadrantes da sociedade portuguesa", refere.

Do resultado final fazem parte 50 minutos cronológicos em que, diz, a linha narrativa é a vida das pessoas, "que por vezes desabafavam para as câmaras e noutras vezes fazem a sua rotina enquanto se filmam."

O novo documentário de Rita Marrafa de Carvalho sobre a vida em suspenso durante o confinamento

Nesse exercício cíclico, há lugares comuns que vão surgindo uma e outra vez, como as janelas de casa e que, com os olhos postos no horizonte das ruas que se mesclam e se cruzam entre si, permitem à imaginação a viagem possível de que ficámos impossibilitados de fazer.

Mas há também relatos das vicissitudes que a vida em pandemia fez imperar, como o testemunho de uma mulher, responsável por um café em Estremoz, que explica que o consumo de café em casa aumentou de tal maneira que deixou de haver o suficiente para abastecer os minimercados.

"Não nos lembramos destas coisas, que não são dramáticas, mas que representam as pequenas mudanças de quotidiano e de práticas devido a um segundo confinamento", que só esta segunda-feira, 15, começou a ser aligeirado.

"As pessoas estão a precisar de se sentir representadas quando olham para a televisão"

"Um Dia Num Ano de Pandemia", diz Rita Marrafa de Carvalho, é um documentário que aborda a pandemia sem que o foco esteja naqueles que a combatem na linha da frente, nem nos doentes que vivem o drama de sentir no corpo uma doença que, sabemos bem, faz estragos. "É uma representação de quem está à espera", reforça, resultando num "exercício sociologicamente curioso porque nos mostra o quão somos bichos de hábitos."

A estreia do documentário está marcada para as 23h45 da próxima terça-feira, 16 de março, na RTP1. E a escolha da data também não foi ao acaso.

Miguel Teixeira
Miguel Teixeira

O propósito, conta, sempre foi que o documentário fosse para o ar na altura em que "nos recordamos de que, há um ano, se lamentava a primeira morte por COVID-19" no País e, com isso, dar aos espectadores aquilo que sente ter vindo a faltar à televisão nacional desde o início da pandemia: identificação.

"As pessoas estão a precisar de se rever e de se sentirem representadas quando olham para a televisão e veem réplicas da realidade. E esse é um lado que tem faltado: o de quem está longe no combate na área da saúde, mas cuja vida, à semelhança de tantos outros, também foi profundamente alterada."