"Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu". Nos minutos finais do último "Prós e Contras", Fátima Campos Ferreira citou para a câmara "O Mostrengo", poema de Fernando Pessoa que faz parte da obra "Mensagem". A jornalista de 62 anos conduziu, ao longo de 18 anos, o mais longevo programa de debate da televisão portuguesa com espírito de missão.
"Dei o corpo às balas", repetiu várias vezes durante a emissão desta segunda-feira, 29 de setembro. Foi a derradeira emissão, após 18 anos em que tudo mudou e em que, ironicamente, nos vemos numa situação semelhante à de 2002: numa crise mundial (o vírus da pandemia sucede ao do terrorismo), numa financeira e com a iminente ameaça de uma crise política (tal como em 2002, ano em que o recém-eleito primeiro-ministro Durão Barroso dizia que Portugal estava "de tanga").
Para findar como manda a tradição, o último "Prós e Contras" foi transmitido em direto do Teatro Amando Cortez, em Lisboa, de onde foram feitas a maioria das emissões. E, nos bastidores, antes do início do direto, a presença de duas mulheres muito especiais: Marina Cruz e Cristina Gomes. A cabeleireira e a maquilhadora, decanas nas respetivas áreas, foram as responsáveis pela imagem de Fátima Campos Ferreira ao longo de vários anos e, para assinalar o fim de um ciclo, voltaram. Uma última vez.
Não fosse a COVID-19, a plateia do Teatro Armando Cortez estaria a abarrotar. Ainda assim, e coisa rara de se concretizar hoje em dia, estiveram na mesma sala nomes de peso de todos os quadrantes da sociedade portuguesa, da religião à política, da economia à cultura, passando pela ciência.
Uma sala onde, num mundo cada vez mais cheio de ódios, se pôde ver, de forma descontraída e casual, um líder da Igreja Católica (Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa) e um líder da comunidade islâmica (Sheik David Munir, líder da Mesquita Islâmica Central de Lisboa), darem um toque de ombro e sentarem-se lado a lado à conversa.
Uma sala onde, na primeira fila, estava uma mulher que também foi presença assídua ao longo da história do "Prós e Contras": a antiga primeira-dama, Manuela Eanes. E foi aliás, para a mulher do general Ramalho Eanes e também para Isabel Soares (filha de Mário Soares e Maria Barroso) que Fátima Campos Ferreira dedicou as palavras mais emocionadas, descrevendo as duas antigas primeiras-damas como fontes de inspiração.
Ao longo de quase três horas, recordaram-se temas, rostos, locais por onde o programa de debate passou, sempre num esforço de promover a descentralização. Uma retrospetiva avassaladora, do Minho a Macau, de Reguengos de Monsaraz ao Rio de Janeiro, caras que fizeram a História de Portugal, muitas que já cá não estão, como Mário Soares, Eusébio, Miguel Portas.
"Eu dei o corpo às balas, com critérios de pluralidade e diversidade"
O futuro do País, o tema de debate do último "Prós e Contras", contou com a presença em palco de Maria Lúcia Amaral, provedora da Justiça, António Costa e Silva, o gestor que é o mentor do célebre documento "Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030", o maestro Martim Sousa Tavares (sim, filho de Miguel Sousa Tavares) e Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud.
Debateu-se a pobreza, a falta de horizontes dos portugueses, entre o pessimismo e a apreensão de uns e o otimismo de outros, como caso de Carlos Moedas (ex-Comissário Europeu e que fez parte do governo de Passos Coelho, durante o infame período da Troika). Falou-se do futuro, do que será deste País quando já cá não estivermos.
Pode gostar-se ou não do estilo por vezes truculento de Fátima Campos Ferreira. Pode gostar-se ou não deste tipo de programa que, pela sua duração, cada vez menos capta a atenção de um público com cada vez mais estímulos, espicaçados por redes sociais e uma infinita oferta televisiva. Mas que não haja dúvidas que, tal como Pacheco Pereira escreveu, Portugal passou pelo "Prós e Contras". Ali se debateram temas que eram tabu e que hoje já não são (legalização da interrupção voluntária da gravidez, coadoção) e outros que são ainda motivo de discórdia (eutanásia, touradas, praxes).
"Eu dei o corpo às balas, com critérios de pluralidade e diversidade", fez questão de frisar Fátima Campos Ferreira, perante uma plateia onde estava, por exemplo, Nuno Morais Sarmento que, no ano em que arrancou "Prós e Contras", era o ministro com a tutela da comunicação social.
E, numa noite em que a moderadora acabou por ser homenageada por todos os intervenientes, uma presença muito especial na plateia: Assunção Cristas, ex-líder do CDS-PP, de quem Fátima Campos Ferreira foi, digamos assim, o Júlio Isidro. Resumidamente, depois de ter participado no programa da RTP1, num debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, a então professora da Universidade Nova de Lisboa foi convidada por Paulo Portas para integrar o partido. O resto, é história.
À medida que o público vai abandonando, por uma última vez, a plateia do "Prós e Contras", é inevitável uma dupla sensação de vazio. Um vazio de uma figura feminina forte no jornalismo televisivo, capaz de conduzir entrevistas duras e debates acalorados (Margarida Marante deixou-nos há muitos anos e Judite Sousa, infelizmente, está afastada da televisão) e um vazio de um espaço que trazia todas as semanas à TV o ruído da discussão que se faz cara a cara, sem máscaras de teclados, tweets, bots e perfis falsos.
É o fim de uma era? É. Haverá novos programas de debate? Sim. Mas conseguirão fazer o que "Prós e Contras" fez? Logo se vê. Mas, tal como assinalou com preocupação Fátima Campos Ferreira, "o espaço de pensamento é vital em horário nobre, e isso não está a existir". E, tal como assinalou Luís Marques, em 2002 administrador da RTP e "o pai disto tudo", "o Prós e Contras fez 18 anos, fez-se homem e agora vai à sua vida".
E a vida, para Fátima Campos Ferreira, também segue dentro de instantes, na RTP, com um programa quinzenal de entrevistas que se estreia a 12 de outubro. Nos últimos segundos de "Prós e Contras", e depois de ter recebido um ramo de rosas vermelhas de Gonçalo Reis, presidente do Conselho de Administração da RTP e de António José Teixeira, diretor de informação, Fátima Campos Ferreira despediu-se como só ela o podia fazer: enfática, teatral até, nunca se despegando do seu sotaque (que tantos da TV, infelizmente, teimam em largar, acanhados por essa coisa triste e parola que é achar que existe só uma forma correta de falar), com um "Viva Portugal!".