O mundo pós-século XXI foi dizimado por um vírus raro que, sem explicação, cegou e reduziu a população mundial para cerca de dois milhões de habitantes. Não se sabe exatamente o que causou a catástrofe ou por que motivo só terá afetado humanos, mas a verdade é que o evento mudou para sempre este novo mundo no qual, vários séculos depois, a possibilidade de ver é considerada heresia e um mito.
É esta a sinopse possível para entender a história que "See", a nova série exclusiva do serviço de streaming da Apple, parece querer contar. Por ser escrita por Steven Knight, o mesmo que criou "Peaky Blinders", e ser protagonizada por Jason Momoa ("A Guerra dos Tronos"), as expectativas eram elevadas.
No entanto, os três primeiros episódios disponíveis em catálogo não convenceram a crítica internacional que, regra geral, tem atribuído nota negativa à série.
A revista "USA Today", por exemplo, escreve que "See" oferece uma "experiência social fascinante em que se teoriza como poderia funcionar uma sociedade totalmente cega", embora a "história não tenha sido capaz de acompanhar a produção estética dos primeiros episódios."
A revista "Vox" partilha da mesma opinião e diz que um orçamento de luxo juntamente com a presença de Jason Momoa não foram suficientes para garantir o sucesso da série.
"É verdade que 'A Guerra dos Tronos' nunca foi perfeita, mas ver 'See' depois dessa serve como um lembrete importante: um orçamento milionário e forma como Jason Momoa se apresenta não fazem da série um produto envolvente."
A MAGG também já teve oportunidade de ver os três episódios disponíveis em catálogo e não ficou convencida. Aliás, temos várias questões às quais a série não parece interessada em responder.
1. Em primeiro lugar, como é que esta série foi aprovada?
Como é que é possível que, na altura de aprovar o argumento de "See", não tenha havido ninguém capaz de apontar as falhas básicas que existem na série e que são evidentes logo no primeiro episódio? Pior, como é que deixaram que Steven Knight desse nome a isto?
O episódio piloto introduz este conceito interessante de que o mundo, tal como o conhecemos, já não existe e que agora é povoado por pessoas que não conseguem ver. Mas já lá vamos. É que a civilização atual organiza-se em tribos que têm rituais, costumes e até línguas mortas em conjunto com o inglês. A prestação dos atores e a entrega aos papéis é muito fraca e nem mesmo Jason Momoa, que nunca foi incrível nas produções que fez, salva "See" das críticas desastrosas que tem recebido.
2. Se o mundo é o contemporâneo, onde estão os objetos modernos?
Embora "See" faça questão de reforçar que a história se passa pós-século XXI, o mundo parece pertencer à antiguidade. Este universo é composto por florestas, cavernas e muitos espaços verdes. Mas se o desastre dizimou a civilização moderna, onde estão os edifícios em ruínas, os carros, as televisões, as latas de conserva, os gadgets estragados, os restaurantes franchisados e os logótipos das marcas mais conhecidas?
Porque é que não há nenhum indício de que tenha existido vida humana nos séculos anteriores? Não há estradas e todo o universo de "See" parece rudimentar, primitivo e vazio. Também não existem postes de eletricidade mesmo que, no primeiro episódio, seja mostrado um leitor de discos de vinil a funcionar e a reproduzir um disco de música. Como? Não se sabe e não parece que seja suposto perceber-se.
3. A população cega é frágil e debilitada — exceto quando tem de lutar
A ideia da série parece ser mostrar como é possível uma civilização que viva com um handicap ser capaz de sobreviver às condições adversas a que é sujeita. E a verdade é que, por habitarem num local rochoso e de solo irregular, o facto de não conseguirem ver é um obstáculo enorme que ultrapassam através do olfato e do tato.
No geral, as pessoas que compõem esta nova civilização são frágeis e inseguras. Mas quando se veem obrigadas a lutar contra outros grupos, transformam-se nos guerreiros mais capazes e sangrentos — como se, afinal, até conseguissem ver.
Os momentos de luta são inverosímeis desde o primeiro instante, precisamente porque os atores que os protagonizam não são cegos. É nessa tentativa de emular uma cegueira que não existe, que acabam por criar sequências completamente mecanizadas, pouco credíveis e típicas de um qualquer videojogo de última geração.
4. Durante as lutas, como é que os guerreiros cegos sabem quem estão a atacar?
É logo no primeiro episódio que, enquanto espectadores, assistimos ao confronto violento (a série tem muito sangue para tentar compensar o resto) entre duas fações rivais. Como é que, no meio de todo aquele caos que opõe duas tribos de cegos, os guerreiros sabem quem estão a atacar se não conseguem ver?
"Ah e tal, é através do cheiro", poderão dizer. É possível. Aliás, em qualquer obra de ficção não é necessário que se copie a realidade tal como a entendemos, mas é importante que haja credibilidade e que o espectador acredite naquilo que está a ver.
E embora sejam apresentadas personagens que conseguem identificar odores, não é claro que sejam capazes de associar uma pessoa a um cheiro específico. Principalmente durante as batalhas, onde ficam sempre na retaguarda, em segundo plano. "Ah e tal, mas os membros da tribo podem conhecer o cheiro dos seus companheiros", poderão responder.
Um contra-argumento possível é que, durante aquela luta intensa, todos lutam no meio da lama e da terra — que camufla o cheiro natural de cada um. É inverosímil, portanto, e não há nenhuma explicação plausível para justificar a eficiência dos guerreiros que em nenhum momento atacam um dos seus.
Também é verdade que cada membro da tribo tem cicatrizes específicas na cara que, de certa forma, os podem ajudar na identificação. Porém, isso não é explicado em nenhum ponto da batalha e o foco da câmara nunca é nas cicatrizes ou a tentativa de uma personagem passar as mãos pelo rosto de alguém antes de o matar.
5. Porque é que nesta nova civilização se reza aos deuses através da masturbação?
Se dúvidas houvesse de que "See" era uma série estranha, o final do primeiro episódio não deixa margem para dúvidas. A rainha Kane (Sylvia Hoeks), que acredita que a visão é um pecado e que lidera uma das tribos inimigas, surge no seu castelo num ato que tem tanto de hilariante como de esquisito.
É que, enquanto reza a um dos deuses (que não sabemos quais são), Kane masturba-se ao som de um dos discos da banda Velvet Underground. É uma forma de chegar ao nirvana e ao divino? O episódio não explica e o argumento da série também não.
Os três episódios de "See" já estão disponíveis na Apple TV+ e espera-se que o quarto chegue à plataforma na próxima sexta-feira, 8 de novembro. Só resta saber se vai responder a alguma destas questões ou levantar mais dúvidas.