O nome "Mafalda Matos" esteve na boca do mundo — e não pelas melhores razões. A atriz de 33 anos entrou para o "Big Brother Famosos" a 27 de fevereiro. Logo na primeira noite, organizou uma dinâmica de grupo, algo que continuou a fazer nos dias seguintes.

Além de estar ligada à representação e de ser grande adepta de meditação, espiritualidade e yoga, Mafalda descreve-se como oradora e mentora holística. Esta área trata o melhoramento do indivíduo e a busca da espiritualidade e do equilíbrio emocional. É com recurso a uma pequena tocha de sálvia, que queima e cujo fumo espalha pela casa, a exercícios de respiração e a posições corporais que tem tentado ajudar os colegas.

Porém, de boas intenções está o inferno cheio e os espectadores e comentadores do programa acreditam que Mafalda está a causar mais danos do que realmente a prestar auxílio. Também vários profissionais de saúde se manifestaram contra a conduta da artista, reforçando os perigos associados.

Uns afirmam que Mafalda não tem formação para o que está a tentar fazer, outros explicam que as práticas não estão a ser bem conduzidas, alguns dizem que não é o local certo para estas iniciativas e outros alertam para as possíveis consequências tanto para os concorrentes como para os espectadores.

Qual é a formação de Mafalda Matos na área do coaching holístico?

Foi em 2013 que Mafalda Matos se tornou mentora holística graças à Certificação Internacional de Coaching pela WeCreate, uma empresa de desenvolvimento pessoal portuguesa. Está em causa um curso de 60 horas onde 30 são passadas em sala, com formação intensiva, 12 são através de vídeos e recursos online e as restantes 18 de TPC's e sessões, como se pode ler no plano desta formação, cujo custo está entre os 348 e os 498€.

Assim, os conhecimentos de Mafalda derivam da formação que realizou nesta empresa "especializada e certificada em áreas como Coaching, PNL, Liderança, Psicologia, Criatividade, Motivação, Vendas, Teambuilding e Transformação Pessoal e Organizacional".

A atriz procura "ajudar seres humanos maravilhosos a serem bem sucedidos nas suas vidas através de ferramentas alternativas: respiração e trabalho corporal, meditação, reprogramação de um novo mindset, nutrição e abordagens xamâs", de acordo com o que está no site que a ela pertence. É possível perceber também que se disponibiliza a dar sessões individuais por todo o mundo pela plataforma ZOOM.

Face às críticas dirigidas a Mafalda Matos graças às iniciativas espirituais que tem dinamizado com os restantes famosos (apelidadas de "namastreta"), nas quais se esforça por os aconselhar e os incentiva a partilhar mais sobre aquilo que os magoa, foi publicado um comunicado no Instagram da terapeuta holística.

"A Mafalda respeita todas as profissões e tenta, sempre que possível, construir pontes entre os vários saberes", esclarece a publicação, salvaguardando que a intenção da atriz "não é levantar questões pessoais ou fazer terapia, mas sim mostrar novas formas de nos relacionarmos". No comunicado em questão, perspetivam o coaching holístico enquanto uma "forma de estar na vida" e apelam ao "respeito pelo próximo e pelas suas opiniões e/ou crenças".

Onde começa o Coaching e termina a Psicologia?

Em 2016, a Ordem dos Psicólogos Portugueses emitiu um parecer sobre coaching, no qual o considera "um 'negócio' não regulado, pautado por muitas pseudo-qualificações, acreditações sem significado e 'grandes nomes' auto-reconhecidos como 'líderes' na matéria, que usam a denominação Coaching para se promoverem".

De acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, "qualquer pessoa se pode autodenominar 'Coach Certificado'", embora sejam necessários e aconselháveis certos "requisitos éticos e profissionais considerados essenciais para realizar e credibilizar a prática do Coaching".

Conforme escreve a associação representativa dos profissionais em psicologia, "o Coaching situa-se na interseção da Psicologia Clínica, do Desporto, Organizacional e da Saúde", pelo que "qualquer uma destas formações de base prepara o psicólogo para trabalhar com os clientes, recorrendo a técnicas científicas válidas para os ajudar a atingir os seus objetivos pessoais e profissionais".

No entanto, a Ordem acredita que "um Coach não Psicólogo reduz o Coaching a uma técnica, menosprezando o seu verdadeiro potencial e benefício para o cliente" — e Mafalda Matos não tem qualquer formação em Psicologia. Assim, "só compreendendo os princípios psicológicos que subjazem ao desempenho humano (e que estão na base do coaching) o Coaching será eficaz". Caso contrário, estes coaches "não conseguirão atingir os resultados pretendidos".

O que pensam os profissionais de saúde sobre este assunto?

A MAGG falou com uma psicóloga que é simultaneamente coach holística e que acompanha o "Big Brother Famosos", bem como com uma psicóloga que nenhuma ligação tem à terapia holística e que não é espectadora assídua do reality show da TVI, visando entender as perspetivas destas profissionais quanto à questão de Mafalda Matos.

Filipa Maló Franco é psicóloga clínica e da saúde e, como muitos outros profissionais da área, soube do sucedido através das redes sociais. Apesar de não acompanhar "a 100%, ao ponto de conseguir perceber tudo aquilo que acontece", tem testemunhado momentos que lhe têm parecido "perigosos".

"No sentido em que, quando nós fazemos uma dinâmica de grupo que explore as emoções do outro, nós temos de ter muito cuidado, porque nós não sabemos o que é que vamos encontrar", alerta, chamando ainda a atenção para a distinção entre "o que é um ato psicológico e o que é que não o é".

Para a psicóloga, tanto dentro da casa como fora, "as pessoas assumem este papel de 'não faz mal falarmos das emoções e tocarmos nas emoções dos outros'", com a premissa de que " quando falamos do que sentimos, estamos a libertar". No entanto, "isto é um terreno muito perigoso, porque nós não sabemos com que fantasmas e monstros no armário é que estamos a lidar".

"Não lhe compete fazer esse tipo de intervenções. Para isso existe a área da psicologia e da psiquiatria"

Embora reconheça que, por vezes, possa ser "libertador", teme não o resultado imediato, mas o resultado a longo prazo destas práticas, já que, neste caso os concorrentes, mas, no geral, as pessoas, podem não saber lidar com o que é exposto, levando a "manifestações mais graves como crises de ansiedade, sintomas depressivos, que precisam de apoio psicológico urgente".

"As pessoas podem achar que falar sobre aquilo que sentem, e a tal catarse, que isso é terapêutico, mas não é", sublinha. Para a psicóloga, o "verdadeiramente terapêutico" é a atribuição de significado. "Não é simplesmente a pessoa falar sobre o que sente e ser deixada, no fundo, sozinha, a lidar com aquilo tudo. Há pessoas que aguentam e há outros que não aguentam".

Filipa Maló Franco defende que existe "falta de rigor no que toca à saúde mental". A psicóloga relembra que "qualquer tema relacionado com gestão de stress, de conflito, de relacionamentos interpessoais ou com o próprio, como controlo emocional e relações, são atos psicológicos, portanto fazem parte das competências de um psicólogo".

"Pelo que sei da profissão da Mafalda, não lhe compete fazer esse tipo de intervenções. Para isso existe a área da psicologia e da psiquiatria", considera, comparando: "Nós, quando estamos doentes fisicamente, vamos a um médico, não vamos ao nosso amigo".

"É importante as pessoas serem rigorosas, minuciosas, terem respeito pelo que é a saúde mental, e um respeito pela profissão que está habilitada a lidar com estas questões", que "não podem ser vistas e trabalhadas de forma leviana ou por quem não tem competências para tal".

A psicóloga e escritora de 30 anos utiliza as próprias redes sociais na tentativa de "diferenciar as áreas", já que "existe, de facto, muita confusão". "Não só por parte de quem procura informação, como também por parte de quem a dá, que, se calhar por ignorância, às vezes ultrapassa um pouco os limites".

"Todos os temas que a Mafalda traz são temas válidos, mas é preciso saber tratá-los para que não caia no ridículo"

Já Nádia Bila, que se descreve como sendo psicóloga, coach e mentora, defende uma perspetiva diferente, uma vez que concilia ambas as áreas. "A psicologia é a base da pizza, é aquilo que nos dá a orientação, o método de trabalho e algumas ferramentas, mas existem outras orientações que nos podem ajudar e complementar o nosso trabalho terapêutico", disse-nos.

"Há momentos em que podemos utilizar estas ferramentas do coaching também num contexto terapêutico", assegura. De acordo com o que explicou à MAGG, "o coach é uma ferramenta mais prática, que não está muito preocupado com o passado e a história de vida da pessoa. Estamos focados no presente e no futuro, em arranjar soluções para ajudar a pessoa a atingir determinado objetivo".

Por sua vez, "a psicologia já tem em conta toda a história da pessoa, tudo o que está para trás. E tentamos resolver feridas que estejam lá atrás, ganhar uma nova perspetiva sobre o que aconteceu e o que é que eu quero fazer com isso daqui para a frente", distinguiu.

Licenciada em Psicologia Clínica, Nádia Bila tem também certificações internacionais de coaching e em meditação e mindfulness. Em 2016, começou a desenvolver "um trabalho com mulheres de uma forma mais holística", recorrendo a "outras terapias energéticas".

Enquanto espectadora do "Big Brother Famosos", ganhou ainda mais interesse em assistir ao programa por ter "alguém lá dentro da minha área". Quando se apercebeu do que se passava com Mafalda Matos e a área da terapia holística, assumiu uma posição: "não me identifico". "Vi toda a gente muito fragilizada, com os sentimentos muito à flor da pele".

"Todos os temas que a Mafalda traz são temas válidos, mas é preciso saber tratá-los para que não caia no ridículo", explicou. "Enquanto profissionais, temos de saber o porquê de estarmos a fazer o que estamos a fazer, sendo que o fim será sempre ajudar alguém a ultrapassar as suas dores, a conseguir gerir, a nível emocional, aquilo que se está a passar dentro de si".

"E há um fio condutor num trabalho terapêutico. Há um princípio, um meio e um fim. Nunca se deixa que a pessoa saia de uma sessão com a ferida aberta", alerta, indo ao encontro da perspetiva de Filipa Maló Franco. Para Nádia, falta "sensibilidade, tato e empatia" à estratégia de Mafalda Matos.

"As reuniões são sempre propostas por parte da Mafalda. Ela sabe como conduzir as pessoas a falarem das coisas de uma forma mais profunda", explica, acrescentando que, normalmente, é o paciente que procura o profissional, e não o contrário, como se verifica. "Ali, a pessoa é induzida a fazer" esse exercício.

"Quando uma pessoa vem à procura de ajuda para alterar algum padrão de pensamento ou sarar alguma situação da sua vida, ela está disposta a um processo terapêutico. Não é uma coisa que se faça numa reunião. As coisas levam o seu tempo", relembra, criticando o contexto em que este género de acompanhamento tem sido feito.

"Sinto que é difícil fazê-lo naquele caldeirão de sentimentos. Deve ser feito de uma forma reservada, íntima, e não de exposição", afirma a psicóloga e coach holística de 43 anos. "A Mafalda, enquanto terapeuta, podia ter essa perceção e essa sensibilidade. Há sítios e contextos onde, se calhar, o que ela faz faz sentido, mas ali, em que ela também está como jogadora, é preciso um pouco mais de cuidado".

Embora reconheça que parte dos participantes em reality shows entrem com o objetivo de se exporem e mostrarem as suas competências, alerta: "há profissões e profissões". "Uma coisa é sermos cantores e irmos para ali cantar, outra coisa é trabalharmos com pessoas desta forma tão íntima e utilizarmos essas pessoas para mostrarmos aquilo que fazemos".

"Não está correto, porque acabam por ficar fragilizadas. Não sabem o que estão a fazer. Todo o contexto é muito delicado", considera. Mais do que pensar nos colegas, Nádia Bila acha que Mafalda "está numa posição de pensar muito nela e de mostrar aquilo que faz a qualquer custo", sem que haja o respeito necessário para com o íntimo e o interior das pessoas.

Ambas as psicólogas com que a MAGG falou alertam para o quanto as práticas conduzidas por Mafalda Matos (e de outros que as façam da mesma forma) poderem denegrir a imagem dos verdadeiros profissionais de saúde e, acima de tudo, confundir as massas quanto aos limites de cada área. "Os terapeutas holísticos ficam todos no mesmo saco. É preciso sensibilidade", apela Nádia Bila.