Um mês de Tailândia depois, aterrei em Hanói com o meu namorado, Nuno. Esta é a capital do Vietname e a segunda maior cidade do país, a seguir a Ho Chi Minh. Cheguei num sábado à noite e o clima era de festa. As ruas cheias de gente, música alto e bom som, rodas de dança com protagonistas de todas as idades, balões de hélio à venda por todo o lado, miúdos e graúdos a saltar à corda, bolas de sabão pelos ares. A boa energia contagiava-se pelas gargalhadas que se ouviam em cada esquina, neste que eu pensei ser um dia especial. Só que deparei-me com o mesmo cenário no domingo de manhã e, após falar com locais, fiquei a saber que, ao fim de semana, é sempre este o contexto da cidade. Imperdível testemunhar esta forma única e vibrante de agarrar a vida.
Gostei tanto da capital do Vietname, que comecei por pensar em escrever sobre os melhores locais a visitar aqui. Contudo, ao colocar no motor de busca “o que fazer em Hanói”, confrontei-me com um sem número de sugestões de roteiros, e isso fez-me desistir da ideia. Foi assim que decidi que a protagonista deste artigo será Duyen Phan Thị, uma chef vietnamita que marcou a minha passagem por aqui.
Chef Duyen é como gosta que lhe chamem. Dá workshops de cozinha local e faz também tours privadas e em grupo pelos mercados que abastecem a cidade, ao longo dos quais é possível provar especialidades desta zona do país. A comida tem um papel fundamental na compreensão de todas as culturas, mas no Vietname este aspeto é ainda mais gritante, porque as especificidades da gastronomia variam muito de cidade para cidade. Foi isso que despertou em mim curiosidade nesta experiência autêntica, que promete um mergulho na mais profunda essência de Hanói.
Vamos a uma viagem pelos mercados de flores e de bens alimentares da cidade? Estes são dos principais pontos de partida de tudo o que está à venda na capital do Vietname, o que significa que tudo o que aqui é vendido, é depois revendido a outros mercados e/ou estabelecimentos, mais à mão da generalidade dos cidadãos.
O tour teve início às 4h da manhã, quando Duyen chegou ao nosso hotel. Por causa da pandemia, nesta altura são ainda poucos os turistas a viajar por aqui, por isso tivemos acesso a esta experiência em exclusivo. O facto de estarmos só os dois com a guia, tornou esta aventura ainda mais rica, intensa e única, porque a disponibilidade para conversarmos e esclarecermos dúvidas foi sempre total.
Era noite cerrada e chovia muito quando demos início a esta viagem pelo universo oculto de Hanói. Digo oculto, porque trata-se de uma realidade que existe apenas de madrugada, enquanto a cidade dorme. Começámos pelo mercado de flores. É imensa a variedade e são todas muito bonitas, mas o que surpreende é a quantidade de pessoas que aqui trabalham, sob condições muito duras. A realidade abalou-me neste mercado, mas no de bens alimentares impressionou-me mais ainda.
Aqui a confusão é total e, embora eu tenha visto muita gente a sorrir e cantar enquanto trabalha, também senti pressão. As tarefas são feitas em cadeia, num ritmo frenético, entre gritos e buzinas, que orientam os trabalhos. Nos cargos de chefia, só os homens têm lugar. Mulheres de todas as idades carregam às costas mercadoria pesada num passo acelerado, ora porque faz parte da função que desempenham, ora para escapar às motas que por aqui passam, desenfreadas, segundo a segundo. Não há caixotes do lixo, por isso o que não interessa é deitado ao chão e, mais tarde, virá um camião recolher. O cenário é imundo e o cheiro é pesado. Os trabalhadores são tantos, que é inevitável haver atropelos, empurrões e tropeços. O rebuliço é total, mas o espírito de equipa evidencia-se, tornando tudo mais leve.
Enquanto caminhamos pelas inúmeras bancas dos mercados, a guia revela-nos histórias e particularidades deste lado da cidade. Duyen conhece grande parte dos trabalhadores do mercado, o que tornou a experiência ainda mais autêntica, já que permitiu que trocássemos impressões com estes locais, que nos deram a provar algumas especiarias e especialidades vietnamitas.
À medida que o sol vai nascendo, os feirantes vão desfazendo as suas bancas, já que o trabalho está praticamente feito. Muitas são desfeitas ainda de madrugada, outras tantas pelas 8h30. Com o espaço do mercado vazio, esta zona fica irreconhecível. Sem pessoas, sem barulho, sem alvoroço. Chega a parecer que tudo o que vi não passou de um sonho.
Cinco horas após termos iniciado este tour, parámos numa esplanada onde provámos o famoso café de ovo, muito típico no Vietname. Quando dei por mim, tinha passado mais de uma hora de conversa com Miss Duyen, e a explicação está na sua história de vida, que partilhou comigo sem rodeios.
Duyen nasceu numa pequena vila do Norte do Vietname, situada na província de Hai Duong. Na altura da sua adolescência, era mal visto as raparigas deixarem a vila para virem para a cidade. Aos 16/ 17 anos, esperava-as um casamento arranjado pelos pais e uma vida focada nos cuidados do lar e da família. Contudo, a mãe de Duyen adoeceu, e isso fez com que, aos 16 anos, a filha tivesse que vir até Hanói durante o verão, de forma a trabalhar e trazer dinheiro para casa.
“Quem és tu e porque és tão diferente de mim? Foi em Hanói que, pela primeira vez na vida, vi estrangeiros. Foi um grande choque para mim, mas as pessoas eram amigáveis e eu comecei a sentir necessidade de perceber o que me diziam”, conta Duyen, que na altura só falava vietnamita.
Terminado o verão, Duyen voltou para a vila, que já não viu com os mesmos olhos. Explicou à mãe que não queria casar tão nova, nem continuar a estudar e que, portanto, voltaria para Hanói, para dar início a uma nova vida, com um trabalho efetivo e não temporário. Descontentes com as intenções da filha, os pais trataram de arranjar um casamento, ou seja, a família de Duyen prometeu-a ao filho de uma família amiga. Duyen explicou desde logo ao noivo que a sua vontade era assentar em Hanói. Tanto insistiu na ideia, que cessaram as conversações sobre o casamento, que o próprio noivo cancelou.
“Eu não quero casar com uma mulher como tu, que vai para a cidade”, disse-lhe. Segundo Duyen, as mulheres que abandonam a vila para ir para a cidade são vistas como prostitutas, por isso os homens rejeitam-nas.
“Foi uma vergonha para a minha família, mas eu não quis saber, fiquei mesmo muito feliz”, conta. Regressou então a Hanói. O objetivo era voltar ao local onde trabalhou no verão, mas perdeu-se e, após dez horas à procura, acabou por desistir. Sem sítio para dormir e sem trabalho, não teve outra opção se não arriscar. Dirigiu-se ao restaurante de uma família e ofereceu-se para trabalhar na cozinha, sem quaisquer exigências a nível salarial.
“Eu aceito qualquer coisa, só preciso de um sítio para dormir, porque não sei para onde ir”. Foi isto que Duyen disse ao dono do restaurante, que estranhou o facto de ser tão nova e estar sozinha. Ainda assim, confiou e acolheu-a. Duyen é a terceira de sete filhos e assumiu desde cedo as rédeas da cozinha na casa onde sempre viveram, por isso estava habituada a cozinhar para muita gente. Assim, foi fácil brilhar na cozinha deste restaurante, onde começou por descascar vegetais.
Num instante tornou-se indispensável, mas viria a despedir-se poucos meses depois, quando surgiu a oportunidade de trabalhar no mercado de flores, onde agora faz a tour de que falei no início do artigo. Nesta altura, fazia o horário das 19h às 7h, e recebia aproximadamente 20 euros por mês. Neste trabalho o desgaste era grande e o retorno ficava aquém das expectativas, por isso a insatisfação não demorou a instalar-se, e trouxe consigo o desejo de profissionalizar os seus conhecimentos de cozinha. Assim sendo, Duyen matriculou-se no Centro de Cozinha Vietnamita de Hanói. Durante a madrugada/ noite trabalhava no mercado, e durante o dia estudava cozinha.
Após dois anos neste registo, Duyen deixou o trabalho no mercado com o intuito de focar-se a 100% na cozinha, mas rapidamente acrescentou à sua agenda aulas de inglês e trabalhos de limpeza em casa de estrangeiros. Nesta última função, não só fazia bom dinheiro, com o qual pagava os estudos, como aproveitava para treinar inglês. O domínio desta língua deu o mote para uma das maiores oportunidades da sua carreira: trabalhar para o Centro de Cozinha Vietnamita de Hanói, onde estudou e adquiriu o título de chef.
Duyen trabalhou aqui entre 2008 e 2017, não só a dar aulas de cozinha local, mas também a fazer tours pelos mercados durante o dia. Ao longo destes quase 10 anos de experiência, a maior parte dos seus clientes eram turistas, o que fez com que Duyen acabasse por tornar-se fluente em inglês. Além disso, percebeu que as perguntas feitas pelos clientes no âmbito destes tours eram quase sempre as mesmas, e sobretudo focadas nos hábitos e cultura local.
“Concluí que, ao proporcionar uma experiência local durante o dia, ficava em falta uma parte muito relevante da verdadeira essência da cidade, que também interessava aos meus clientes. Percebi também que, com o que vivi no início da minha carreira, tinha as ferramentas necessárias para avançar com um tour que mostrasse a realidade nua e crua da vida nos mercados noturnos que abastecem a cidade e arredores.” Assim, em 2017, surgiu o negócio próprio da chef Duyen, que atua em três frentes: workshops de cozinha vietnamita, tours pelos mercados de rua durante o dia e tours pelos mercados de abastecimento local durante a madrugada. No site oficial do projeto, Duyen disponibiliza toda a informação sobre cada uma das opções.
A pandemia prejudicou e muito o seu negócio, mas aos poucos a dinâmica da cidade vai voltando ao normal e, assim, vai sendo possível recuperar o fôlego. Se há coisa que ficou bem evidente ao longo das cinco horas que tive o prazer de privar com a chef Duyen é que a sua força não acaba, tal como a capacidade de reinventar-se. Esta mulher sabe bem o que quer e jamais põe como hipótese baixar os braços.
“Hoje, se voltar à vila, não tenho amigos. É o preço a pagar por ter vindo para a cidade, mas não me arrependo. Quero aprender mais sobre internet, levar o meu negócio mais longe e a minha cultura a mais gente. Apostar no meu negócio é também apoiar outros locais, porque não trabalho sozinha.”
Hoje com 40 anos, Duyen tem dois filhos do primeiro casamento, um rapaz com 9 e outro com 11 anos. Sempre sonhou viver em Hanói e é aqui mesmo que vive, com os filhos e com o atual marido, um norte-americano com quem casou em 2020. Duyen é uma mulher feliz e cheia de garra, sempre disposta a superar-se e orientada para ver o lado bom, mesmo quando é o lado mau a impor-se. Não tenho dúvidas de que irá tão longe quanto desejar, porque ficou claro para mim que não pára até ver cumprida a missão a que se propõe.
Caso tenha alguma dúvida ou sugestão, não hesite a contactar-me por e-mail ou mesmo pelo Instagram, onde estou também a partilhar sobre esta minha aventura.