Para muitos portugueses, Bruno Pereira é o rosto da luta sindical das forças da autoridade. Ao longo do último ano, o comissário subintendente da Polícia de Segurança Pública, que é também presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia, surgiu no pequeno ecrã, sendo a voz das reclamações dos homens e mulheres que protegem o País por uma carreira mais digna.
Nas redes sociais e também nas livrarias, Bruno Pereira é poeta. Começou a escrever em 2021, quando a COVID-19 o confinou a um quarto de hotel durante 10 dias em Espanha. Lançou o livro "Fragmentos da Madrugada", o mesmo da conta de Instagram onde partilha os seus poemas.
Em entrevista à MAGG, o comissário da PSP de 39 anos, natural da Covilhã, conta como o sonho gorado de uma carreira na Medicina o conduziu até à polícia e também à poesia.
Leia a entrevista
O que nasceu primeiro: a vontade de ser agente da autoridade ou a de ser poeta?
Indiscutivelmente, a vontade de ser polícia. Ainda que, na génese, isso fosse uma ideia remota. Eu sempre pretendi ingressar em Medicina. Não entrei por muito pouco e, à data, o meu irmão já era polícia. Nunca tinha ponderado ingressar na Escola Superior de Polícia e o meu irmão chateou-me a cabeça para fazer isso. Inicialmente achei que não tinha nada que ver comigo, mas depois ele explicou-me as condições, que era uma escola para funções de comandante, que era uma carreira promissora. Na altura, pareceu-me uma área que não tinha muito que ver comigo, até algo árida mas, depois, com alguma persuasão, lá fui com ele e com o meu pai enviar a candidatura.
O meu pai ainda me tentou levar à embaixada de Espanha para ir estudar Medicina para Salamanca mas, como sou um gajo obstinado, disse logo que não. Que, se entrasse, entraria em Portugal. Lá ingressei na Escola Superior de Polícia. As duas primeiras semanas foram muito estranhas ao ponto de ligar ao meu irmão a dizer que aquilo não era para mim: fardas, pistolas, Direito… A dada altura há ali um volte-face e eu começo a integrar-me bastante bem, a gostar das matérias, do ambiente, das pessoas…
O seu irmão tinha uma visão que o Bruno não tinha.
Ele sempre achou que eu tinha uma predisposição para a área da liderança. Hoje em dia brinco e digo que talvez não fosse tão bom médico quanto eu acho que sou oficial de polícia. Hoje sinto-me alegre, já sou pós-graduado em Direito, sou formador na área de Ciências Jurídicas, sinto-me perfeitamente bem com aquilo que foi o meu caminho. Entretanto passaram-se quase 17 anos a trabalhar, sempre na linha da frente, na área operacional, a lidar de forma direta em termos de ação de comando, com a gestão e comando dos quadros, enquanto subcomissário e, agora, como comissário subintendente, com funções de estrutura de comando da divisão.
Não estou na linha direta com os problemas, mas tenho a possibilidade de influenciar positivamente 300, 400 polícias de uma vez só. É uma responsabilidade grande, sobretudo quando lidamos com pessoas. O bem estar das pessoas nesta atividade é essencial para que elas possam sentir-se bem a fazer o que fazem e dar uma dignidade que esta profissão sempre teve e que, num tempo mais recente, tem vindo a perder-se. Por isso é que também leva-me a todo o compromisso sindical no qual me envolvi de alguns anos a esta parte.
Essa é a sua faceta mais pública e visível.
Eu já tinha interação pública institucional. A visibilidade pública da luta institucional passou a fazer parte da minha vida porque eu considerei que era um dever da minha parte. Ser dirigente sindical no Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia não é a mesma coisa do que nos demais sindicatos. Acarreta um compromisso suplementar. Não é minha ideia eternizar-me no sindicato porque, em primeiro lugar, está o trabalho. Tira-nos muitas horas de vida. Fi-lo porque achei que tinha o dever de contribuir ativamente para ela.
Ingressei primeiro como vice-presidente e, mais recentemente, candidatei-me a presidente e, desde há um ano que o sou. E ainda por cima tive que lidar com um dos maiores embates da história em termos de luta sindical. Foi particularmente prazeroso fazê-lo, e exigente, mas acredito que conseguimos trazer uma mudança substancial na forma como as pessoas viam os polícias, as estruturas sindicais da polícia. Acho que consegui trazer uma voz mais higienizada, mais próxima das pessoas e talvez alguma propriedade suplementar a uma discussão que era muito redonda e feita com pouca elevação e propriedade.
E no meio disso tudo…
Consegui encontrar algo que eu não sabia que eu tinha. Sempre tive gosto em escrever, já tinha escrito coisas esparsas para pessoas concretas. Entretanto, há três anos, estava em Espanha a dar formação e, nessa semana, antes de vir para Portugal, testei positivo à COVID-19. Ainda por cima era na semana em que a minha namorada fazia anos. Fui para o quarto de quarentena, 10 dias. Estava no computador, a preparar aulas online e encontro um texto com um título em inglês que me saltou à vista. E era um poema que eu tinha escrito em inglês, na sequência de algo que, profissionalmente, me deixou triste. Olhei para aquilo e vi ali um desafio. 'Vou desafiar-me e tentar escrever um poema todos os dias'. Durante os 10 dias escrevi um poema até ser libertado daquela prisão solitária e poder voltar a Portugal. E foi depois de uma partilha com o meu círculo chegado de amigos que o retorno foi bastante positivo. Eu costumo dizer que toda a gente tem o dom para escrever coisas lindíssimas. E, como em tudo na vida, em todos os ofícios, podemos ser fantásticos se nos comprometermos. Comecei a ver na poesia uma amiga, uma necessidade, quase uma adição.
Mas como é que passa de escrever para criar a página de Instagram?
Surge depois da edição do livro. Inicialmente estava escrever aleatoriamente. A minha namorada e o meu melhor amigo começaram a chatear-me a cabeça porque eu não tinha a intenção de publicar. Eu gosto de escrever.
A poesia, em princípio, é uma escrita mais íntima do que a prosa. Acho graça ao facto de o Bruno mostrar a sua poesia tranquilamente às pessoas que o conhecem, mesmo antes de mostrar ao mundo. Não tinha vergonha de ver as reações?
Não, de modo algum! Eu até sou uma pessoa que vive bem com a exposição.
Mas uma coisa é a exposição profissional, outra é a exposição de algo que nos deixa vulneráveis.
Sim, é verdade. Mas nunca consegui separar totalmente as duas. Eu sempre vivi muito bem com a exposição.
"Nós só vivemos uma vida e ninguém a vai viver por nós. Para quê escondermo-nos do mundo?"
É sempre mais fácil compreendermos alguém que não conhecemos encaixando a pessoa num estereótipo, independentemente de as pessoas dizerem que não. No seu caso, é o polícia, dirigente sindical que, por outro lado, também escreve poesia. Poderia haver pessoas que não estivessem confortáveis com a exposição pública desses dois lados. O Bruno podia escrever sob anonimato e nunca o fez.
Primeiro, não gosto de me esconder. Nunca me escondi na minha vida e não o vou fazer em algo tão puro como é escrever. Por muito que eu me esteja a expor no que é a minha forma de encarar o mundo, acho que não me devia resguardar nem tenho necessidade disso. E tenho de viver com a crítica, que existem em outros planos da minha vida. E não deixa de ser algo que eu deixo no mundo. Nós só vivemos uma vida e ninguém a vai viver por nós. Para quê escondermo-nos do mundo? Quando decidi publicar o livro, assumi que seria uma partilha minha para o mundo. E está tudo bem.
Só depois de lançar o livro é que cria a página de Instagram?
Sim, também para poder não só falar sobre o livro, mas sobre outros conteúdos que eu entretanto vou escrevendo e que possam integrar outro livro. Também tenho intenção, quando tiver mais algum tempo, de tentar escrever prosa.
Qual é a a reação dos seguidores à sua poesia?
Sinto que existe uma grande aceitação, que as pessoas se revêem. Acho piada porque a intenção com que eu escrevi nunca será a forma como os leitores irão percepcionar a mensagem. Por isso é que a poesia é tão bonita e tão rica. O retorno costuma ser amplamente positivo. Só tive uma pessoa que me mandou uma mensagem privada e, que, de supetão, chamou de "poesia bacoca" àquilo que eu escrevi. Houve até uma baixeza e alguma falta de nível. Foi acintosa, foi tóxica. Eu até disse: 'não nos conhecemos, aceito de bom grado toda e qualquer crítica, é isso que nos faz refletir, reinterpretar. Você terá direito à sua interpretação, mas há formas mais elevadas de nos dirigirmos a pessoas que não conhecemos'. Ela apagou a mensagem, não sei se havia motivações pessoais ou instrumentalizadas. Dei-lhe o valor que merecia - nenhum - , mas foi a única pessoa que se dirigiu a mim nesses termos. Claro que há pessoas que hiperbolizam os comentários, sobretudo as pessoas que estão à nossa volta.
E os seus colegas, como reagem? Ouve bocas, elogios?
Muitos elogios. Fazem piadas, no sentido de acharem estanho como é que se harmoniza esta veste profissional mais dura, mais sóbria, com uma dimensão emocional. Eu diria que é natural que assim aconteça porque não há pessoas mais emocionais do que os polícias. Os polícias estão sujeitos à carga emocional mais negativa - e também mais positiva - que podemos imaginar. Quando são obrigados a ter que responder aos cenários mais hediondos que alguma vez alguém viu. Crianças violadas, pessoas trucidadas...o pior da natureza humana. Como é que o polícia não é emocional? Claro que é emocional! Tem é que ter uma capacidade de autorregulação maior para que toda aquela carga de emoção negativa não influa sobre o seu bem estar. Naturalmente que os polícias têm uma dimensão emocional mais purificada, até. Parece-me sim que são cenários que se compatibilizam perfeitamente.
Faz falta na profissão um maior trabalho dessa gestão emocional?
Isso seria fundamental. Não quer dizer que estejamos muito além no plano do que é a preocupação que temos diariamente com a estabilidade psicológica dos polícias. Somos muitos, nem sempre conseguimos chegar da mesma forma que gostaríamos. E fazer a ressalva que é o facto de a taxa de suicídios na polícia é o dobro da média nacional. Isso não é por acaso. Existe uma estrutura de acompanhamento psicológico, quer por parte de uma divisão de Psicologia, para quem é feita uma ligação imediata sempre que detectamos ou sinalizamos polícias que possam estar numa situação emocionalmente frágil. Temos elementos de ligação à psicologia em cada subunidade, exatamente para que sejam a ponte direta entre as subunidade operacionais e a divisão de psicologia.
Temos a preocupação de fazer entrevista psicológicas com alguma periocidade. Somos muitos e não conseguimos chegar a todos mas, por exemplo, na minha divisão somos 300 e, a cada an0, 30, 40 são reavaliados. Eu diria que o ponto essencial é: a monitorização e o acompanhamento que os pares fazem diariamente, para perceber se há indicadores, comportamentos estranhos, que possam fazer pelo menos perguntar "está tudo bem contigo?". É esta preocupação diária porque eles são a nossa família. Há polícias que passam mais tempo com os camaradas de trabalho do que com a família. É graças a eles que não temos um maior número de situações trágicas.
Está a pensar lançar um próximo livro?
Sim e já o terei todo escrito. Nem tenho noção do número de poemas, mas serão certamente mais do dobro do anterior. Achei que devia dar tempo para que o "Fragmentos da Madrugada" pudesse crescer e só quando eu achar que está devidamente emancipado é que poderei pensar no segundo.
Inspira-se em pessoas ou situações ou é uma escrita mais metódica?
Pode surgir no momento uma ideia, e posso escrever sobre ela. Há pouco tempo estava na minha terra, estava a treinar na casa da minha tia, que está em França, e estava a olhar para um tanque que ela lá tem, e que tem um terreno enorme atrás. Um terreno onde eu trabalhei imenso, onde eu vi o meu tio a ter um AVC à minha frente, um sítio onde tenho memórias muito boas e outras menos boas. Estava a saltar à corda e veio-me à cabeça escrever sobre a diferença que faz o nosso berço. Escrevi no telemóvel, algo que não costumo fazer, e escrevi um poema sobre a minha terra, o meu berço, o meu mundo. Quando tenho uma ideia, registo-a no telemóvel para não me esquecer e vou, dentro da minha vontade, escolhendo uma temática sobre a qual quero escrever.
"O tema da segurança nunca deve ser usado como arma de arremesso do ponto de vista político"
É comentador regular do "TVI - Em Cima da Hora", formato dedicado à atualidade judicial apresentado por Conceição Queiroz.
Toda esta mentoria, esta ideia, sempre foi do Miguel Fernandes [jornalista da TVI]. Isto sempre me entrou muito bem.
Nunca houve tantas horas dedicadas a temas de crime como atualmente na TV portuguesa.
Talvez não seja bom.
Dê-me a sua opinião sobre isso. Se olharmos para as estatísticas, somos um dos países mais seguros do mundo. Mas se olharmos para os canais generalistas a partir do meio-dia até às 4 da tarde, parece que Portugal é a Guatemala.
Isto permite dar uma amplificação muito maior. É fácil chegarmos a casa de toda a gente. Se falarmos recorrentemente sobre estes assuntos...Eu não digo que não seja importante para uma certa consciencialização cívica, para as pessoas perceberem exatamente que cuidados podem ter, o que se passa, para que não sejam as próximas vitimas. A parte pedagógica associada a tudo isto é importante. Depois há o outro lado da moeda. Mais do que o crime, é pior o medo do crime.
O medo do crime tem uma capacidade enorme de penetrar na cabeça das pessoas, gerando intranquilidade, insegurança e receio. É preciso encontrar um equilíbrio entre não falar demais e não deixar de falar. Eu sei que isto traz muita audiência, eu sei que as televisões funcionam com base nas audiências. Não é que não haja um dever de informar, que há, mas tem de haver alguma ponderação. Temos que ter muito cuidado, sobretudo quem tem funções públicas e políticas, como os autarcas, em não alimentar determinado tipo de ideias que possam empolar indevidamente percepções que são erradas.
Acha que neste momento, e tendo em conta que Portugal é um país seguro, existem alguns elementos com visibilidade pública, como autarcas, políticos, a usarem a sua voz pública para passarem uma percepção de insegurança que, vocês que estão no terreno, nem sempre verificam?
O tema da segurança nunca deve ser usado como arma de arremesso do ponto de vista político. Isso é muito errado porque é muito perverso. Podemos, no limite, criar condições ótimas par que se transformem zonas, locais, em guetos. As pessoas dizem 'é pá, para ali não vou porque as pessoas estão a dizer que aquilo é um problema'. E se calhar não há problema nenhum! O [Carlos] Moedas disse recentemente que houve um aumento da criminalidade na Avenida da Liberdade. E eu perguntei-lhe: 'um aumento onde?'. Porque temos de analisar com algum rigor que crimes aconteceram, pelo menos os que foram registados - porque eu não posso discutir o que não conheço - e perceber o que é verdadeiramente é grave e não é grave, o que é que contamina o sentimento de segurança.
Um carro que teve um retrovisor partido não é a mesma coisa que uma cambada de vândalos partirem as montras de cinco lojas na Avenida, ou roubarem ou violarem uma pessoa. Temos de ter algum cuidado em não trazer esta discussão e fazê-la de forma superficial. Ela tem de ser feita por quem a conhece e quem pode explicá-la a quem acha que tem o direito de falar sobre ela para que possam falar sobre ela com propriedade.