Fábio Guerra, o agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) que foi espancado até à morte por um grupo de três jovens à porta da discoteca MOME, em Lisboa, morreu a 21 de março, depois de não resistir às lesões graves provocadas por repetidos pontapés na cabeça. O caso já chegou à justiça portuguesa, e mesmo sem que ninguém tenha sido ainda declarado culpado, o incidente já está a ter repercussões além dos tribunais nacionais. Entres elas, a exoneração de Licínio Luís, capelão na Marinha há 25 anos.
72 horas depois das agressões brutais que resultaram na morte do agente de 26 anos, a Polícia Judiciária deteve três suspeitos do crime: dois fuzileiros e um civil, com idades compreendidas entre os 21 e os 24 anos.
No seguimento da detenção, o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e Melo, acusou Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, os dois fuzileiros detidos, de "mancharem" a farda por se verem envolvidos no espancamento do polícia.
"O senhor almirante nunca foi para a noite? Nunca bebeu uns copos?"
Face ao discurso do almirante, o capelão da Marinha insurgiu-se nas redes sociais no sentido de defender os fuzileiros, dirigindo-se diretamente a Gouveia e Melo e pedindo, por duas vezes, que este tivesse "juízo".
"Não te deixes levar pelas primeiras impressões", escreveu Licínio Luís na página pessoal do Facebook, que conta com milhares de seguidores. "O senhor almirante que aguarde pela justiça. Julgar sem saber não corre nada bem", escreveu.
Na mesma publicação, citada pelo jornal "Expresso", que já terá sido entretanto apagada, o capelão insinua que os fuzileiros foram "provocados" e avança em defesa dos jovens que, segundo diz, se estavam apenas "a divertir". "Os jovens têm direito a ser respeitados, os jovens da PSP estavam no mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos".
"O senhor almirante nunca foi para a noite? Nunca bebeu uns copos? Juízo com os nossos julgamentos", rematou Licínio Luís, missionário passionista e marinheiro desde que foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório, em 1996.
Publicação no Facebook levou à exoneração do capelão
Na sequência da partilha na rede social Facebook, a Marinha confirmou à CNN Portugal que o capelão Licínio Luís foi exonerado de funções depois de se ter reunido com o almirante Gouveia e Melo, esta segunda-feira, 29 de março. "[A Marinha] confirma que o Sr. Capelão Licínio teve uma audiência com o Sr. Almirante CEMA" e que "à data de hoje, 29 de março, o Sr. capelão encontra-se exonerado", lê-se.
Depois da exoneração, o capelão recorreu à mesma rede social para se manifestar novamente sobre o caso, desta vez, através de um pedido de desculpa. "É muito importante reconhecer perante vós e perante a Marinha, enquanto militar, que errei ao dirigir-me de forma incorreta, inapropriada, interpretativa e pública ao almirante CEMA", escreveu.
"Não tenho dúvidas, agora mais a frio, que tomou a única posição possível e ética ao traçar para toda a Marinha uma linha vermelha de comportamento", acrescentou. No entanto, a decisão de exoneração não foi bem recebida pelos fuzileiros, inclusive antigos, que esta segunda-feira, 29, se mobilizavam nas redes sociais no sentido de convocar um protesto no próximo dia 10 de abril, na cerimónia dos 400 anos dos Fuzileiros, previamente marcada para junto do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
"Juntos com as nossas boinas iremos mostrar a nossa força, o nosso espírito e alma de guerreiro, que não abandona o camarada ferido em circunstância alguma", lê-se na convocatória posta a circular. "Como tal e face ao desrespeito e desconsideração demonstrado por este Corpo de Tropas Especiais, nomeadamente com a destituição do nosso capelão, gritaremos mais uma vez 'presente'", avança o mesmo texto, que propõe ainda que, durante a alocução de Gouveia e Melo às forças em parada, os militares, civis e na reserva lhe virem as costas.
Até à data, o almirante Gouveia e Melo ainda não comentou a publicação relativa ao possível protesto dos fuzileiros. Sabe-se apenas, ao que o jornal "I" conseguiu apurar, que o pedido de desculpa público era uma das condições para Gouveia e Melo ponderar uma readmissão de Licínio Luís.
No entanto, em cima da mesa está ainda um outro cenário: o de um outro capelão militar poder vir a suceder ao padre, que está ao serviço da Marinha desde 1996.
Família do fuzileiro Cláudio Coimbra tece acusações à PSP
Apesar dos contornos que o caso está a tomar fora das paredes dos tribunais nacionais, o fuzileiro Cláudio Coimbra (à semelhança de Vadym Hrynko) continua preso preventivamente, na sequência da rixa que levou à morte de Fábio Guerra. Trata-se de uma ação de caráter preventivo, enquanto a investigação da Polícia Judiciária (PJ) decorre. No entanto a família do jovem já se manifestou e acusa a PSP de violar o princípio de presunção de inocência para proteger os seus agentes.
No comunicado à imprensa, citado pela CNN Portugal, a família de Cláudio Coimbra questiona "que justiça poderá ser feita por quem, ainda antes de investigar, já tomou partido" e avança que cabe às autoridades judiciárias competentes apurar os factos, criticando "toda a sorte de aproveitamentos políticos que a todos deveria envergonhar", lê-se.
No mesmo texto, a família equipara vários comunicados previamente divulgados pela PSP, que diz terem contribuído para a criação de uma "narrativa comunicacional" para proteger os agentes envolvidos. A nota recorda que o primeiro comunicado, de 19 de março, refere que "no local encontravam-se quatro policias, fora de serviço, que imediatamente intervieram, como era sua obrigação legal, para tentaram colocar termo às agressões em curso"; sendo que um segundo comunicado, já de 21 de março, refere que as agressões de que Fábio Guerra foi vítima aconteceram "em ação policial".
Segundo o comunicado, "já é grave, antes do necessário e legal esclarecimento dos factos, que um OPC [órgão de polícia criminal], no caso a PSP, viole, entre outros, o princípio da presunção de inocência, fundamental para um processo penal justo e equitativo, digno de um Estado de Direito Democrático, como é o caso da República Portuguesa".
"Sabe-se agora, que não eram quatro [agentes da PSP], mas sim seis, e que, ao contrário do que se possa inclusive pensar, não estavam fardados, não estavam em nenhuma missão de serviço, mas sim, numa saída à noite, perfeitamente habitual em jovens com idades ligeiramente mais velhas do que o nosso filho Cláudio, que tem 22 anos", lê-se.
Até à data, Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko continuam em prisão preventiva, apesar de na passada quarta-feira, 24 de março, terem acusado diretamente o amigo civil pela morte do agente Fábio Guerra.
Jovens fuzileiros culpam o amigo civil pela morte de Fábio Guerra
De acordo com o "Correio da Manhã", os fuzileiros admitiram terem dado "socos" ao polícia Fábio Guerra, às 6h19 de sábado, à saída da discoteca Mome, mas imputam as agressões que dizem ter sido mais graves, como pontapés na cabeça, a Clóvis Abreu, um amigo civil que no dia da última audiência em tribunal, 24, continuava a ser procurado pela Polícia Judiciária.
Ainda assim, e perante provas apresentadas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público (MP), o juiz terá decidido manter os dois jovens, indicados por homicídio qualificado (contra Fábio Guerra) e três de ofensas à integridade física qualificada (ferimentos aos colegas da vítima que também intervieram), em prisão preventiva.
Ao que se sabe, o jovem civil terá dirigido uma série de ameaças aos agentes agredidos depois de perceber que estes eram polícias. "Quem pensam que são? Anda cá que te rebento todo", gritou, segundo imagens a que a CMTV teve acesso.
As mesmas filmagens confirmam ainda que Clóvis Abreu se terá afastado no fim das agressões aos agentes da PSP, enquanto dizia que era o "rei do Montijo". Até à data, o suspeito continua em fuga, mas já está a ser procurado em Espanha, onde residem familiares próximos.
À data das agressões, 19 de março, os quatro agentes da PSP foram imediatamente levados para o hospital e a primeira notícia do conflito já reportava Fábio Guerra em coma. O agente não resistiu aos ferimentos graves, mas os outros três agentes já tiveram alta hospitalar e foram entretanto ouvidos pela Polícia Judiciária.