Os terramotos que atingiram a Turquia e a Síria já causaram mais de 21 mil mortos e 58 mil feridos, de acordo com o "Diário de Notícias". Temos testemunhado imagens e vídeos chocantes de uma realidade que, apesar de estar longe, também pode acontecer em Portugal, afirmam os especialistas. Mas de que forma devemos lidar com esse conhecimento?

O engenheiro civil Eduardo Cansado Carvalho avançou à "CNN" que "por um lado, a situação sismológica e de sismicidade da Turquia não se compara com a de Lisboa, é muito superior". "Por outro lado, embora a nossa qualidade construtiva peque por defeito em muitos casos, também é claramente superior ao que se viu nas imagens da Turquia."

E quanto a questões psicológicas? De que forma devem as pessoas olhar para estas situações sem entrarem em pânico com a possibilidade de viverem uma situação semelhante? De acordo com a psicóloga clínica e docente do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA), Ana Carina Valente, a preparação deve ser feita no sentido de diminuir estas emoções que surgem do pensamento de algo que ainda não aconteceu.

 Ana Carina Valente é licenciada em Psicologia, e é ainda mestre em Psicologia Criminal e do Comportamento Desviante pela Universidade Lusófona.
Ana Carina Valente é licenciada em Psicologia, e é ainda mestre em Psicologia Criminal e do Comportamento Desviante pela Universidade Lusófona. créditos: LPM Comunicação SA

Prevenção, a chave para a segurança emocional

Deve ser realizado um trabalho preventivo, no sentido de informar as pessoas. "Quando temos a sensação de que temos informação, de que temos mecanismos para lidar com uma série de aspetos, sentimo-nos automaticamente mais preparados, e sob o ponto de vista psicológico, isto é importante", refere a especialista à MAGG.

Transmitindo informação e ferramentas adequadas, as pessoas, que algum dia se virem nesta situação, sabem como agir. "Como é que se podem manter em segurança, como podem organizar o grupo, como podem ajudar o outro, tudo isto é fundamental para que, perante um evento em que as pessoas sintam que estão a colocar a sua vida em risco, saberem o que fazer", explica a psicóloga.

Estes mecanismos de estratégia internos resultam em autoeficácia e permitem conquistar algum alento emocional, que por sua vez se traduz numa sensação de controlo, afirma Ana Carina Valente.

"Devemos explicar às crianças o que é que está a acontecer no mundo"

Quando uma criança é confrontada com uma situação destas, na televisão, por exemplo, como é que um pai ou uma mãe explicam de forma a não despertar o medo? Em relação aos mais novos, a psicóloga defende que "quando nós as podemos proteger, devemos protegê-las".

"Mas se elas estão no meio da catástrofe, não conseguimos protegê-las como gostaríamos, e quando falo desta proteção, falo da proteção das imagens que temos visto, que são muito violentas. As crianças devem ser protegidas disto, mas proteger não é transformar isto num tema tabu. Devemos explicar às crianças o que é que está a acontecer no mundo."

A psicóloga sublinha ainda a importância de transmitir uma imagem de esperança, dando exemplos de outros cenários de catástrofes ou guerras, e de como os povos que habitam essas regiões se conseguiram reerguer.

"A melhor forma de falar com uma criança sobre um tema difícil, seja ele qual for, é ouvir primeiro"

Sempre através de uma linguagem muito próxima e adequada à faixa etária, de modo a acolher as crianças, é necessário evidenciar que os adultos também sentem medo, que também têm preocupações nestes aspetos, mas que têm consciência de que, mesmo que algo aconteça, há comunidades no mundo que já passaram por estes eventos e que foram capazes de se restabelecer.

"A melhor forma de falar com uma criança sobre um tema difícil, seja ele qual for, é ouvir primeiro. Ouvir o que ela já sabe, ouvir o que ela sente, ouvir o que ela pensa, quais são os seus medos, e no fundo fazer a conversa a partir daí, e nunca mentir, mesmo que o assunto seja difícil, até para os pais", sublinha Ana Valente.

Campo da prevenção vs. campo da intervenção

Perante o confronto com uma situação traumática, como uma catástrofe natural, o cenário muda, e passamos do campo preventivo para o interventivo. Do ponto de vista emocional, face a um evento potencialmente traumático, "somos confrontados com uma sensação de perda de controlo da situação à nossa volta, e que inclusive pode pôr em risco a nossa vida", refere a especialista, que acrescenta que "é esta falta de controlo sobre a nossa proteção e a vida em geral, ou a dos que nos são próximos, que provoca um desajustamento emocional".

"20 a 30% das pessoas que passam por um evento traumático vão precisar de um acompanhamento psicológico regular, e muitas vezes até psiquiátrico, porque acabam por desenvolver problemas ligados à ansiedade, à depressão, à dificuldade em gerir o stresse, o pânico, o medo, as fobias, que vão agravando quando não há uma intervenção."

No âmbito da psicologia de emergência, existem protocolos de intervenção que constituem os primeiro socorros psicológicos. Se existir a oportunidade de as pessoas terem uma intervenção neste âmbito, e se os mesmos forem aplicados imediatamente após um evento traumático, "é diminuída a probabilidade de as vítimas desenvolverem doenças do foro psicológico no futuro, para além de lhes serem transmitidas ferramentas no sentido das estratégias de coping, de lidar com o stresse, da sua autoeficácia, e na da sua comunidade, trazendo esperança para o futuro".

A especialista acrescenta ainda que "não são apenas os psicólogos que podem aplicar esta ferramenta da psicologia de emergência, qualquer pessoa na comunidade que seja capacitada e formada pode fazer este trabalho".

Turquia e Síria. Crianças resgatadas com vida do meio da destruição (vídeos)
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Os sismos na Síria e na Turquia, constituem situações onde não existe controlo, e que por isso, é necessário fazer "um levantamento de informação" para que "as pessoas sejam capazes de voltar a sentir alguma segurança". Especialmente no que toca a indivíduos em situação vulnerável, como crianças, ou pessoas com doenças físicas ou crónicas, "perante uma situação de catástrofe, as primeiras coisas necessárias a fazer são ver e ouvir, no sentido de perceber quais são as necessidades do outro", salienta Ana Valente.

De acordo com a psicóloga e docente, os primeiros três meses após um evento traumático constituem a fase aguda, e tudo o que as pessoas possam sentir, quer seja a insónia ou o medo, são mecanismos que vão permitir fazer um ajustamento relativamente ao que aconteceu.

Assim, numa primeira fase, esta reatividade é natural, e muitas vezes contribui para que as pessoas, após a fase aguda, consigam fazer um ajustamento emocional. Contudo, é necessário que haja um acompanhamento durante e após o evento traumático, pois é um "embate emocional que deixa marcas, mas com o devido acompanhamento e com uma intervenção psicoterapêutica nos casos necessários, as pessoas conseguem ultrapassar".

"Tem de vir a tristeza, tem de vir a perda, tem de vir a vivência do luto, de uma forma muito objetiva, tem mesmo de doer, para que depois se consiga seguir em frente"

Em Portugal, não há registos de um terramoto de grandes dimensões desde 1755, que destruiu Lisboa, mas já existiram fenómenos naturais que fizeram com que as pessoas perdessem bens materiais que, por si só, constituem um símbolo da sua vida.

"Do ponto de vista simbólico são sempre perdas, há uma componente efetiva no viver a minha vida que está na minha casa, há uma construção, há uma realização pessoal, e muitas vezes estas pessoas sentem-se completamente sozinhas e desamparadas. É aqui que nós, enquanto sociedade, enquanto técnicos, enquanto governo e enquanto País, temos de dar o suporte a estas pessoas", explica a psicóloga. Quando assim é possível, após uma situação traumática, devem ser criadas medidas de resposta para que as pessoas voltem, o quanto antes, à sua normalidade.

Nos casos em que as situações traumáticas, como uma guerra ou as catástrofes naturais resultam na perda de um familiar ou de um ente querido, existe uma necessidade de monitorizar as pessoas. A psicóloga sublinha a relevância de "perceber como é que as mesmas estão a viver o seu luto".

"Tem de vir a tristeza, tem de vir a perda, tem de vir a vivência do luto, de uma forma muito objetiva, tem mesmo de doer, para que depois se consiga seguir em frente. Mas há muitas situações em que as pessoas desenvolvem aquilo que se chama um luto prolongado, e nessas situações precisam de apoio psicológico para conseguirem ultrapassar essa situação de perda."

Após o evento traumático, há gatilhos que tendem a remeter para a catástrofe. Torna-se, por isso, necessário trazer à memória da pessoa que sofre a forma como ultrapassou a situação, mas relembrar que, hoje em dia, há formas de verificar se determinados sinais apontam ou não para uma situação de alerta. "Trazer de volta a experiência que teve, quer seja criança ou adulto, e a forma como a ultrapassou. Apesar de ter tido consequências a pessoa está ali, a viver a sua vida", conclui Ana Valente.

É necessário que os indivíduos identifiquem o seu estado emocional, para que depois, com um técnico, de uma forma interventiva, consigam encontrar mecanismos para ultrapassar aquele trauma, e para que o mesmo não se desenvolva em outras patologias, destacando também a importância de técnicas de respiração, de relaxamento, e de mindfulness.