Tinha tudo para ser apenas mais uma noite de Óscares marcada por prémios e muito glamour e brilho a passar pela passadeira vermelha. Isto se um acontecimento inesperado não se tivesse tornado no assunto mais comentado da 94.ª edição dos Óscares, que se realizou na madrugada desta segunda-feira, 28 de março.
Falamos da agressão de Will Smith a Chris Rock sobre a qual, no momento, não houve qualquer tipo de consequência. Estaremos perante uma normalização da violência? É aceitável que alguém se defenda de uma piada recorrendo à violência? Falámos com duas psicólogas para tentar responder a estas questões, mas antes vamos tentar perceber o que aconteceu.
Quando se preparava para o anúncio do Óscar de Melhor Documentário, o humorista Chris Rock fez uma piada sobre o cabelo de Jada Pinkett Smith, mulher de Will Smith. O ator norte-americano, que acabaria por vencer na categoria de Melhor Ator, não gostou, levantou-se do seu lugar nas filas da frente, subiu ao palco e agrediu Chris Rock com uma chapada no rosto.
Jada Pinkett Smith, que já revelou publicamente sofrer de alopécia, condição que a levou à decisão de rapar o cabelo, foi alvo de uma piada de Chris Rock, que disse que mal podia esperar por ver Jada em "G.I. Jane 2", uma alusão ao filme em que a personagem principal, interpretada por Demi Moore, rapa a cabeça.
Após a chapada a Chris Rock, por momentos, a plateia e o público que assistia em direto à cerimónia ficaram sem perceber se se tratava de uma encenação ou de uma agressão real, mas as palavras que Will Smith disse ao regressar ao seu lugar parecem ter confirmado a veracidade das imagens.
"Mantém o nome da minha mulher fora da tua boca" ("keep my wife’s name out of your fucking mouth", na versão original), disse Will Smith já sentado no seu lugar. A atitude do ator começou, de imediato, a ser alvo de vários comentários nas redes sociais.
Janai Nelson, presidente da LDF, uma organização de direitos civis norte-americana, foi uma das figuras que de imediato se pronunciou sobre o assunto, condenando a normalização da violência. "Sei que ainda estamos todos a processar, mas a forma como a violência casual foi normalizada esta noite perante uma audiência nacional coletiva terá consequências que nem sequer podemos imaginar no momento", escreveu na rede social Twitter.
Outro comentário, publicado por Ty Ross, alerta ainda para o facto de o ator nem sequer ter sido "escoltado pela segurança". "É um lembrete de dois Estados Unidos: que se alguém é rico e famoso, as regras são diferentes. O facto de se ter sentado no seu lugar prova que Will também sabe isso", lê-se no tweet.
Contudo, há quem justifique a chapada de Will Smith a Chris Rock como uma forma de defender a família. A atriz Tiffany Haddish, por exemplo, defendeu, em entrevista à revista "People", após a cerimónia, que a atitude de Smith foi "a coisa mais bonita" que já viu porque a fez acreditar que "ainda há homens que se preocupam com as suas esposas".
"A chapada do Will Smith não se chama "proteger a família", chama-se masculinidade tóxica. Recomendo os documentários 'O Silêncio dos Homens' e 'The Mask You Live In', e o livro 'A Revolução do Homem' (Philip Barker). Podem também seguir as páginas Papo de Homem e Men Talks, para começar", defendeu o ativista e humorista português Diogo Faro.
Psicólogas falam numa possível instabilidade emocional de Will Smith e condenam falta de chamada de atenção
Para Catarina Graça, psicíologa, a situação de violência perece ter sido provocada por alguma instabilidade psicológica e emocional devido à doença que afeta Jada Pinkett Smith. "Percebe-se que ele não gostou daquela piada. Mas se isto é uma forma de reação? Não é. Obviamente que a atitude é condenável e o tentar disfarçar a situação é reprovável", frisa a psicóloga à MAGG, realçando que esta é uma situação que vai acabar por marcar a carreira do ator.
Na opinião da especialista, houve uma tentativa por parte da transmissão do programa de "passar por cima da situação sem lhe dar muito ênfase". "Mas as coisas não são assim", frisa. "Quando [Will Smith] se levantou e subiu ao palco teve tempo de perceber o que estava a fazer e se se ia arrepender daquilo, mas não parou em momento nenhum. Falando numa possível questão de masculinidade tóxica, acho que uma mulher tem, sim, uma forma diferente de reagir às coisas", continua.
Filipa Jardim da Silva, também psicóloga, defende, contudo, que este tema não deve ser levado para questões de "géneros, idades, raças, etnias ou contextos" pois, segundo a especialista, isso é estarmo-nos a "desviar do essencial".
"Estamos aqui perante um exemplo de alguém que se sentiu profundamente ferido e magoado com uma situação e essa experiência ativou um conjunto de emoções muito intensas que nós, habitualmente, enquanto adultos, e também crianças e adolescentes, procuramos controlar. Viver em sociedade é precisamente saber que, mesmo em situações extremas, em que nos possamos sentir muitíssimo magoados e ofendidos, há uma barreira que não devemos ultrapassar que é a barreira do respeito pelo outro e da integridade física — e quando isso acontece, o que se nota é a falta de controlo de impulsos, é uma agressividade que não foi contida e uma regulação emocional que não foi bem sucedida", explica a psicóloga.
Quanto ao facto de a cerimónia ter prosseguido como se nada tivesse acontecido, Filipa Jardim da Silva não podia estar mais em desacordo, principalmente, como diz, por se tratar de um evento com tantas audiências e muita visibilidade.
"A partir do momento em que estamos a chegar a muitas pessoas, precisamos de compreender que mensagens é que estamos a passar e, na minha perspetiva, parece-me que não ter existido qualquer tipo de limite colocado nesta situação — não ter existido alguém da organização que vem fazer um comentário, que não haja ninguém que no momento tenha promovido um diálogo mais amigável ou um pedido de desculpas mediado — é corrermos o risco de ser vista aqui uma banalização e normalização da agressividade e, sobretudo, da agressividade perante uma atuação de alguém que está no papel de humorista", continua a especialista.
"Isto não corrobora a favor de querermos que se respeite a cultura e se perceba o que é o humor e o que não é", defende psicóloga
O acontecimento que marca a atualidade trouxe ainda a público a questão de haver limites para o humor, mas que em nada devem justificar atos de violência. Nuno Markl, humorista português, foi uma das caras conhecidas que fez questão de comentar a atitude de Will Smith.
Apesar de defender que o ator pode ter o "direito de ficar irritado com a piada", o humorista reforça que "onde a coisa abre um precedente tramado é na violência". "O que o Will Smith fez foi, para muita gente, validar a ideia de que não gostar de uma piada pode ser respondido e punido com violência. Se isto agora é aceitável, perdemos absolutamente como civilização", defendeu numa publicação partilhada na rede social Instagram.
Para Filipa Jardim da Silva, o facto de não ter havido qualquer repreensão à atitude de Will Smith faz com que se possa abrir o precedente de que é aceitável partir para agressão quando uma piada nos fere a suscetibilidade. "Isto não corrobora a favor de querermos que se respeite a cultura e se perceba o que é humor e o que não é", defende ainda a especialista.
Recordando os atos de violência cada vez mais presentes no dia a dia, a psicóloga frisa que "qualquer comportamento de agressividade não pode ser banalizado". "Na minha perspetiva, devia haver aqui alguma delimitação deste tipo de comportamentos no imediato e, sobretudo, uma consequência negativa para quem o faz. Esta pessoa devia ter sido convidada a sair do evento quer para se autorregular, quer para perder um privilégio considerando a sua conduta", afirma.
"Há cada vez mais jovens e adultos a acederem a conteúdos que fomentam essa agressividade e depois temos exemplos públicos, como este, em que de uma forma banal há um ato de agressividade em que nada acontece. Isto são apenas alguns fatores que acabam por gerar fenómenos sociais mais gravosos", remata a especialista.