
Em março, o País ficou em choque com a notícia de um trio de rapazes, entre 17 e 19 anos, que foi detido pela PJ por serem suspeitos de violar uma rapariga de 16, em Loures, e de terem gravado essa violação, publicando-a, de seguida, nas redes sociais.
"Estes jovens tinham, em termos daquilo que são as redes, as plataformas sociais, uma atividade muitíssimo relevante. Poderão ser considerados influencers e, portanto, têm um público já muito significativo", disse o responsável pela diretoria da PJ de Lisboa e Vale do Tejo, João Oliveira, ao "Diário de Notícias".
Nos últimos tempos, tem-se verificado um aumento na normalização da masculinidade tóxica. São divulgados mais comentários depreciativos sobre a mulher, bem como incentivados comportamentos inaceitáveis por parte de homens com uma plataforma, tais como o criador de conteúdos João Barbosa (Numeiro), que recentemente afirmou, para os mais de 700 mil seguidores que possui, que mulheres comprometidas não deviam sair à noite.
Falámos com Inês Marinho, fundadora da Associação Não Partilhes, de modo não só a tentar entender esta crescente banalização da violência como a perceber como podem as vítimas proteger-se. O projeto, que surgiu de uma experiência pessoal, começou por ser um movimento em 2020 e, no ano seguinte, tornou-se associação.
"A lei tem muitas falhas no sentido de ser clara, objetiva e específica"
"Na altura percebi, juntamente de outras sobreviventes, que não havia retaguarda quase nenhuma, apoio, empatia ou recursos para preencher esse fosso", esclarece à MAGG. Com a Não Partilhes, Inês Marinho dá apoio emocional às vítimas, quase como uma amiga, e tenta "organizar a confusão que se passa na cabeça dos sobreviventes". "Tento que as pessoas tenham algum guia neste processo que, na maior parte das vezes, é extremamente complicado", adianta.
A Não Partilhes conta com uma equipa jurídica que dá apoio jurídico pré-queixa. "Muitas vítimas não sabem que é um crime ou que crime é. A lei tem muitas falhas no sentido de ser clara, objetiva e específica. Fazemos essa preparação e damos algum apoio burocrático se necessário, além da consciencialização, com entrevistas e presenças escolares", esclarece, acrescentando que vão abordando os temas da atualidade e que disponibilizam "conteúdo online para encaminhar, para procurar ajuda e para ajudar a lidar com alguém que tenha sido vítima".
Inês Marinho teve as suas imagens íntimas divulgadas online sem o seu consentimento, o que motivou à criação desta associação. "Confiei muito numa pessoa que me era muito próxima, e ela partilhou um vídeo íntimo para me expor, onde não me identificava, mas tinha o meu nome em cima, porque era uma captura de ecrã. Tive o vídeo partilhado em sites pornográficos, Twitter, Reddit, Telegram. Foi daí que surgiu a ideia de criar a Não Partilhes."
"Se confio para fazer sexo, porque não poderia confiar para enviar uma foto íntima?"
"Quando digo 'Não Partilhes', não digo 'não sejas livre sexualmente e não confies em ninguém'. Digo 'Não Partilhes contra o consentimento das pessoas'", esclarece, frisando a importância da liberdade sexual, "desde que seja consentido e que não seja um crime". "Entre quatro paredes, é normal confiarmos nas pessoas. Mais íntimo ainda que do partilhar [imagens de cariz sexual] é fazer sexo, e fazemos. Se confio para fazer sexo, porque não poderia confiar para enviar uma foto íntima?", reflete.
"Eu enviei nudes, eu envio nudes e eu vou continuar a enviar nudes, porque o corpo é meu, eu faço o que quero com o meu corpo, desde que não incomode ninguém, e não tenho qualquer medo de que alguma coisa seja exposta, porque tenho até ao fim da vida a razão do meu lado, porque não fiz nada de mal, não cometi nenhum crime, apenas confiei em alguém que não merecia a minha confiança. Foi a pessoa que agiu mal", atira.
O que leva Inês Marinho a partilhar imagens sexualmente explícitas, mesmo depois de o ter feito e ter corrido mal? "Há vários motivos para eu o fazer: ora porque me estou a sentir bem com o meu corpo, porque está incrível, e mando uma foto ao meu namorado; às vezes estou com saudades, já não o vejo há algum tempo; às vezes, por fantasia; porque me apeteceu; porque quis; porque naquele momento achei que era o melhor...", enumera.
"Alguém expor o meu corpo a tentar descredibilizar-me diz muito mais sobre a pessoa do que sobre mim. Porque haveria de achar que mostrar o corpo de alguém nu tira o respeito por ela mesma? Ou que a palavra deixa de valer tanto?", questiona, rebatendo: "Não tenho qualquer receio de que tentem usar a minha sexualidade contra mim. Tenho mamas, vagina, rabo. Se querem pegar e usar contra mim, são sempre livres de o fazer. Não me sinto pressionada de nenhuma maneira", conclui.
"Estão a incentivar os jovens à violência, a serem controladores, machistas e castradores"
Quanto à crescente normalização da violência no namoro (e não só), Inês Marinho acha "vergonhoso todo o comportamento destes influencers". "A maneira como falam de mulheres, a vida que eles incentivam, que envolve casinos ilegais, esquemas de pirâmide ilegais, tudo o que promovem é muito preocupante, não só porque são muito novos, mas também porque o público deles é muito jovem", alerta, sobre estas "atitudes predatórias" com um sentimento de impunidade.
"Violência no namoro não é só agredir, chamar nomes e bater. Também é alguém proibir-nos de usarmos certa roupa, de termos amigos, de irmos a certa festa para nos divertirmos. Estão a incentivar os jovens à violência, a serem controladores, machistas e castradores. Há vários homens a propagarem este tipo de ideias. É bastante perigoso e devia haver alguma medida legal para controlar que tipo de comunicação estamos a apresentar aos nossos jovens", crê.
Ainda assim, Inês Marinho acha que existe uma maior vontade de estar informado na sociedade, que "está em grande mudança, a perceber o impacto e a gravidade do problema". Mas "vai sempre haver gente contra e a culpabilizar as vítimas", alegando que se meteram a jeito.
"Acontece a todas e nenhuma se mete a jeito. Meter-se a jeito é existir e ser uma mulher", afirma, reforçando que mesmo alguém que escolha não enviar imagens íntimas ao namorado pode ser visada. "Posso ser fotografada contra o meu conhecimento, podem ser feitas montagens comigo toda nua. Mesmo que não confiemos em ninguém, podemos ser vítimas destes tipo de crime."
Agora, Inês Marinho quer ficar desempregada. "Porque quero que as pessoas parem de fazer isto, quero parar de ter de trabalhar, que isto seja uma coisa esporádica, residual, e não quase comum, de atualidade. Que haja mais proteção legal. Vamos começar a tentar chamar a atenção de o crime não ser público e continuar a consciencializar toda a sociedade, principalmente os jovens, o maior alvo destes criminosos e mais vulneráveis a este tipo de propaganda", termina.
Conselhos práticos da Não Partilhes
- "Não partilhar nenhum conteúdo íntimo com estranhos, incluindo morada";
- "Mesmo numa relação próxima, ter atenção ao tipo de discurso da pessoa. Se já tinham tendências muito machistas e sexistas, se já havia comentários a dizer que as namoradas eram porcas e que se expunham, não é muito boa ideia confiar nele esse tipo de intimidade, que pode ser usada contra nós";
- "Não mostrar a cara, piercings, colares, tatuagens, quadros ou posteres específicos com que tira sempre fotos";
- "Colocar uma marca de água com o nome da pessoa na foto";
- "Colocar emojis na pessoa".