A série “Todo Dia a Mesma Noite” estreou na quinta-feira, 25 de janeiro, na Netflix e foi inspirada no livro “Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss”, de Daniela Arbex. A obra conta a história verídica de um incêndio em que 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas na discoteca Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, bem como o luto dos pais das vítimas e a luta por justiça.

Novo documentário analisa o principal suspeito do caso Maddie — e chega já esta semana à HBO Max
Novo documentário analisa o principal suspeito do caso Maddie — e chega já esta semana à HBO Max
Ver artigo

A série criada por Gustavo Lipsztein com Thelmo Fernandes, Paulo Gorgulho e Biana Byington estreou dois dias antes da tragédia completar dez anos, uma vez que o incêndio ocorreu a 27 de janeiro de 2013. Com cerca de 40 minutos cada, os episódios mostram os detalhes da investigação, a história das vítimas, a recuperação dos sobreviventes e o julgamento, conforma avança o "Diário".

Mas um grupo de pais das vítimas do incêndio pretende processar a Netflix pela série. Segundo Eriton Luiz Tonetto Lopes, coordenador do grupo e pai de Évelin Costa Lopes, uma das vítimas com 19 anos, o sentimento é de indignação e de injustiça, de acordo com o jornal “GZH”.

“Fomos apanhados de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está a lucrar com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos. Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos. Há pais a passar mal por causa da série. O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja usado para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós”, disse Eriton Lopes.

Por outro lado, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria publicou nas redes sociais que se sente “representada” pela série produzida pela Netflix e pelo livro de Daniela Arbex, e revela que os familiares estavam “cientes que a produção estava a ser realizada com base nas personagens do livro”, revela o “GZH”.

Acrescentam ainda que acreditam “no potencial das produções na luta por justiça e a luta por memória” e que tragédias como a que vivenciaram “precisam de ser contadas de todas as formas”, para que a morte das vítimas “não tenha sido em vão”.

O que aconteceu na tragédia da discoteca Kiss

Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, deflagrou um incêndio na discoteca Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, que fez 242 mortos e 636 feridos.

Nessa noite, de acordo com o "g1", decorria uma festa na discoteca organizada pelos alunos da Universidade Federal de Santa Maria chamada “Agromerados”, onde ia atuar o grupo Pimenta e seus Comparsas e a banda Gurizada Fandangueira. Por volta das 2h30, durante a música “Amor de chocolate” do cantor Naldo, a banda utilizou dispositivos pirotécnicos que atingiram a espuma acústica que revestia o teto da discoteca, provocando o incêndio, como é possível ver no vídeo.

As centenas de pessoas que estavam no estabelecimento começaram a correr para a saída e, segundo testemunhas na altura, os seguranças tentaram impedir a sua saída até se aperceberem do fumo. Além disso, estava uma grade à porta da discoteca que foi usada para organizar a fila de entrada, que também dificultou a saída da discoteca, uma vez que fez muita gente cair no chão e ser pisada.

Os bombeiros contaram que muitas vítimas tentaram fugir pela casa de banho da discoteca e acabaram por morrer, porque como estava escuro, a falta de sinalização fez com que essas pessoas achassem que ali era uma saída. O Corpo de Bombeiros chegou à discoteca entre três a cinco minutos depois do alerta e muitas pessoas que conseguiram sair ainda ajudaram a socorrer as vítimas, partindo paredes para facilitar a saída de pessoas e o resgate de corpos. 

No domingo seguinte à tragédia, as famílias foram reconhecer os corpos das vítimas no Centro Desportivo Municipal e, no mesmo dia, realizou-se um velório coletivo num ginásio de Santa Maria.

Jéssica conseguiu sobreviver. Bruno, o namorado, morreu a tentar salvá-la

Jéssica Duarte, uma sobrevivente do incêndio, respondeu a algumas perguntas sobre a tragédia na sua conta de Instagram. Na altura, Jéssica tinha apenas 20 anos e “não queria ir para a Kiss”, mas foi com o namorado que gostava da banda que ia atuar. Acabou com 40% do corpo queimado e ficou 25 dias internada na unidade de cuidados intensivos.

A sobrevivente contou que foi salva por outro sobrevivente, que a retirou inconsciente da discoteca. Quando o rapaz estava a correr em direção à porta, sentiu o corpo de Jéssica, já inconsciente, a tocar no seu pé. O rapaz fez-lhe respiração boca a boca e massagem cardíaca até que acordou.

Jéssica não sabia onde estava Bruno, o seu namorado da altura, e acabou por descobrir que “ele conseguiu sair consciente” da discoteca, mas que voltou várias vezes para a tentar resgatar. Nessas tentativas, inalou muito fumo e “ficou num estado pulmonar muito grave”, acabando por morrer. “Durante anos, eu tive na cabeça que, se eu tivesse conseguido sair com ele, ele não precisava de ter saído e voltado tantas vezes e isto não teria acontecido”, revelou a sobrevivente.

Jéssica define-se como uma pessoa com muitos traumas e que a tragédia a mudou completamente, revela o jornal “Estado de Minas”. “A minha vida são dois períodos: um antes e um depois do incêndio. E quem me conhecia antes sabe que são duas pessoas completamente diferentes”, contou. Além disso, Jéssica não acredita que leve uma vida normal, mesmo já tendo passado dez anos da tragédia, ter mudado de cidade e constituído uma nova trajetória pessoal e profissional. “O meu grande trauma foi perder uma pessoa que eu amava muito, tudo o resto ficou pequeno diante disso”, contou a sobrevivente, que ainda mantém contacto com a família de Bruno.

Jéssica também comentou a série da Netflix “Todo dia a mesma noite”, dizendo que “o público está bem dividido, tanto por sobreviventes, pais, familiares, amigos, como por pessoas aleatórias que não viveram isso”. “Eu, Jéssica, acho que deveria existir. Quanto mais se falar, menos probabilidade existe de acontecer novamente”, acrescentou.