Anne Hamilton-Byrne. Este é um nome que muitos australianos ainda não conseguiram esquecer: entre os anos 60 e 80, foi ela a mentora de uma seita que se tornou conhecida na Austrália e no mundo. Durante mais de 20 anos, "A Família", como se intitulavam, reuniu mais de 500 seguidores que juravam fidelidade à mulher que dizia ser a reencarnação de Jesus Cristo.
Não podiam estar mais longe da verdade. Na realidade, a seita roubava e drogava crianças, tudo com o intuito de criar uma raça "superior" que salvaria o mundo após a sua destruição. A mulher que idealizou tudo isto, Anne Hamilton-Byrne, morreu a 14 de junho numa unidade de cuidados paliativos de um lar de idosos em Melbourne. Tinha 98 anos e sofria de demência há quase duas décadas.
Mas vamos recuar ao momento em que tudo começou. Antes de adotar o nome Anne Hamilton-Byrne, a líder da seita nasceu a 30 de dezembro de 1921 como Evelyn Grace Victoria Edwards. A mais velha de sete crianças, desde cedo que lidou com situações de pobreza e carência.
Quando tinha 20 anos, a mãe foi diagnosticada com esquizofrenia. Desde 1941, esteve hospitalizada em quatro clínicas de saúde mental diferentes, todas em Melbourne. Assim que conseguiu libertar-se da família, Anne saiu de casa, mudou de nome e não voltou a olhar para trás.
Em 1961, Hamilton-Byrne era professora de ioga. Já com a crença de que era a reencarnação de Jesus Cristo disfarçado de mulher, foi nesta altura que conheceu o médico Raynor Johnson. Juntos decidiram começar a Great White Brotherhood, também intitulada Santiniketan Park Association ou A Família.
Tudo começou com pequenos grupos de discussão, de foro religioso e filosófico, na casa de Raynor Johnson nos arredores de Melbourne. Rapidamente, porém, conseguiram juntar dinheiro suficiente para adquirirem a propriedade ao lado. Deram-lhe o nome Santiniketan Park e começaram a construir um espaço de convívio a que chamaram Santiniketan Lodge.
O que é que Anne tinha de tão especial? De acordo com os antigos seguidores, os olhos acinzentados. "Nos tempos antigos, ouvíamos falar de feiticeiras que conseguiam escravizar as pessoas com um simples olhar", recordou ao "The Guardian" o ex-acólito Fran Parker. "Ela tinha uns olhos que conseguiam ver através da nossa alma".
Nesta altura, o grupo era composto sobretudo por profissionais de classe média, em particular enfermeiros e psiquiatras. Encontravam-se no lodge várias vezes por semana, sempre com o intuito de conversar e discutir as chamadas ideias da Nova Era.
Tudo mudou no dia em que Hamilton-Byrne tomou LSD e teve uma visão.
LSD, violência e fome. A triste história de 28 crianças
No dia em que Anne Hamilton-Byrne tomou LSD, o seu propósito no mundo tornou-se claro: ela deveria adotar uma dezena de crianças, de modo a salvá-las do apocalipse que se aproximava. E assim foi. Entre 1968 e 1975, Anne, juntamente com o segundo marido, um homem de negócios chamado Bill Byrne, adotaram 15 bebés e crianças. Como se não bastasse, também incentivaram os membros do grupo a darem-lhes os seus filhos.
A seita pregava uma mistura de cristianismo, misticismo oriental e profecia apocalíptica. A partir do momento em que as crianças e adultos se juntavam ao grupo, todos os aspetos da sua vida passavam a ser controlados por Hamilton-Byrne.
"Havia apenas uma regra: fazer absolutamente tudo o que ela dizia", contou ao "The Guardian" David Whitaker, um ex-filho de A Família. "Isso incluía o que pensar, o que vestir, o que comer, com quem casar ou não casar. Obediência total".
Para controlar ainda mais as crianças, a seita criou uma escola numa propriedade junto ao lago australiano Eildon Dam. Os miúdos andavam todos com o mesmo uniforme, tinham o cabelo pintado de loiro platinado e recebiam novos nomes. Todos eles acreditavam ser filhos biológicos de Anne. Viviam segundo um único lema: "Invisível, desconhecido, inédito".
Ao longo dos anos, as crianças — que chegaram a um total de 28 —, foram abusadas física e mentalmente pelos líderes do culto a que davam o nome de "tias". As tias cumpriam ordens de Anne, a líder, e aplicavam os castigos que esta achava justos.
Passar fome ou ser agredido fazia parte do dia a dia dos miúdos. Ben Shenton, uma das crianças que nasceu nesta seita, recordou ao "The Northern Star" um castigo que consistia em mergulhar a cabeça num balde cheio de água até desmaiar.
Além disso, seguiam uma dieta vegetariana restrita, faziam ioga e exercício e acreditavam genuinamente que um dia herdariam o mundo, quando este se desmoronasse. Também eram obrigadas a consumir LSD, entre outras substâncias perigosas.
"O LSD estava a ser testado pelo governo australiano para ajudar em problemas mentais, e permitiu a certos psiquiatras usá-lo", contou Ben Shenton, que foi deixado pela mãe com apenas 18 meses, ao "The Northern Star".
"Foi usado por alguns membros do culto de Anne, que eram psiquiatras. O LSD deu às pessoas uma experiência espiritual que Anne aproveitou".
Anne atraiu muitas mulheres de classe média, educadas, com filhos e dinheiro. Também foi um apoio para mães solteiras que precisavam de ajuda ou simplesmente de uma família. "Ela era um anjo de luz e parecia ser boa", continuou Shenton, hoje com 45 anos. "Só com o tempo é que te começas a aperceber das consequências da ideologia".
Ben Shenton não tem a menor dúvida de que Anne sofria de problemas mentais. Como as restantes crianças de A Família, continua a lutar com as sequelas que a seita lhe deixou. Até porque, de certa forma, ainda faz parte da sua vida: "A minha mãe ainda está viva e mora em Inglaterra. Ela ainda acha que a Anne é maravilhosa".
Como uma adolescente rebelde acabou com o culto
Depois de mais de 20 anos de seita, o fim estava próximo. Tudo graças a uma adolescente chamada Sarah Hamilton-Byrne, que cresceu na seita. Em 1987, a adolescente foi expulsa do grupo por discutir e agir de forma rebelde.
Com a ajuda de Sarah, a polícia conseguiu entrar no local, desmantelar a seita e salvar as crianças. Hamilton-Byrne e Bill conseguiram fugir, abandonando o país e mantendo-se em fuga durante seis anos. Em junho de 1993, as autoridades australianas, britânicas e até norte-americanas conseguiram encontrá-los na cidade de Hurleyville, a norte do estado de Nova Iorque.
O casal foi preso e extraditado novamente para a Austrália. Acusados de conspiração e de cometer perjúrio ao registar falsamente o nascimento de três crianças, a sentença ditou que eles eram culpados. Mas a pena limitou-se ao pagamento de uma multa no valor de cinco mil dólares (4.430€). De acordo com o site "The Age", só a sua propriedade poderia valer quase nove milhões de euros.
No início dos anos 2000, Anne foi diagnosticada com demência. Perante a descoberta da doença, a australiana tornou-se inimputável, isto é, já não podia ser levada a tribunal devido aos crimes cometidos com a seita.
Em 2017 a doença piorou, e a mulher foi transferida para uma unidade de cuidados paliativos num lar de terceira idosa. A 14 de junho, veio o anúncio da sua morte.
Conforme cita o jornal britânico "Mirror", o ex-detetive da Polícia de Victoria, Lex De Man, que liderou as investigações sobre o culto, disse que Hamilton-Byrne deixou "uma trilha de vidas arruinadas".
"A reação normal quando recebe a notícia da morte de alguém é tristeza. Para mim é exatamente ao contrário. Perante as vidas que ela afetou e as suas más ações, não derramei nenhuma lágrima. Nem uma gota".
Anne nunca admitiu em tribunal os crimes que cometeu. Na esfera privada, há quem garanta que ela nunca se arrependeu do império de destruição que criou.