Bastou um tweet para que Lea Michele, a protagonista da série "Glee", fosse acusada de racismo e conduta imprópria por antigos colegas com quem partilhou estúdios de gravação. As consequências traduziram-se num "linchamento" público nas redes sociais, que culminou com a perda de uma parceria com uma das marcas que a patrocinava. A publicação em questão foi feita a 29 de maio, depois de George Floyd, um homem negro, ter sido assassinado por um polícia branco nos Estados Unidos.

"George Floyd não merecia isto. Isto não foi um incidente isolado e tem de acabar de uma vez", lê-se na publicação original que a atriz, de 33 anos, fez questão de finalizar com a inclusão da hashtag #BlackLivesMatter em demonstração de apoio à comunidade negra. À primeira vista, tratava-se de um comentário neutro. Só que quem trabalhou com Lea Michele ao longo dos anos sentiu que aquela tomada de posição não se coadunava com aquelas que tinham, alegadamente, sido as suas atitudes durante as gravações dos projetos em que esteve envolvida.

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A primeira a reagir foi Samantha Ware, a atriz negra com quem Lea Michele contracenou na sexta temporada de "Glee", em 2015. "Lembras-te de quando tornaste o meu primeiro trabalho em televisão num verdadeiro inferno? Nunca me vou esquecer. Se bem me recordo, disseste a toda a gente que, se tivesses oportunidade, cagavas na minha peruca [uma referência ao seu cabelo], entre outras microagressões traumáticas que me fizeram questionar uma carreira em Hollywood", escreveu Ware em resposta.

O estrago estava feito. Os comentários à publicação de Samantha Ware, alguns vindos de atrizes e outros de produtores ou profissionais de vídeo, revelaram o que para sempre foi óbvio para as pessoas com que Lea foi trabalhando, mas que não estava à vista do público. A sua conduta nos bastidores estava longe de ser perfeita e, por isso, aquela tomada de posição contra o racismo e a intolerância não era coerente.

No início de junho, Lea Michele foi obrigada a reagir através de um longo comunicado oficial publicado na sua página de Instagram. Era necessário gerir o dano, uma vez que uma das marcas com quem trabalhava tinha decidido que, devido às acusações de racismo e de conduta imprópria, não queria estar mais associada a ela.

"Peço desculpa pelo meu comportamento e por todo o sofrimento que causei. Uma das mais importantes lições que aprendi nestas últimas semanas, foi que temos de ter tempo para ouvir e entender a perspetiva das outras pessoas, e perceber de que forma é que podemos trabalhar para ajudar aqueles que se viram a braços com várias injustiças", começou por defender-se.

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Referindo-se à acusação de Samantha Ware, no entanto, Lea Michele diz não se lembrar de alguma vez ter feito um comentário desses. "Embora não me recorde de alguma vez ter feito um comentário desses e de nunca ter julgado ninguém devido ao seu background ou à cor da pele, o ponto fundamental não é esse. O que importa é que agi de uma determinada forma que causou sofrimento a outras pessoas."

Apesar do comunicado, as acusações não pararam de chegar, vindas de atores que trabalharam com a norte-americana em séries como "Glee", "The Mayor", "Scream Queens" ou no espetáculo "Spring Awakening", da Broadway. Uma delas foi a atriz Amber Riley, que teve uma participação regular ao longo de todas as seis temporadas de "Glee".

"Não vou dizer que a Lea Michele é racista. Mas foi essa a assunção que se fez, muito devido ao que está a acontecer no mundo devido à morte de uma pessoa negra [referindo-se à morte de George Floyd que espoletou manifestações um pouco por todo o mundo, inclusive em Portugal]. Além disso, ela está gravida e acho que as pessoas têm de se acalmar. No entanto, tenho a minha caixa de mensagens cheia de atores negros a contarem-me as suas histórias, de como foram aterrorizados nos bastidores por mulheres brancas que eram as protagonistas da série", revelou a atriz numa entrevista exclusiva a Danielle Young, ativista negra, no Instagram.

Também Heather Morris, de "Glee", corroborou a ideia de que trabalhar com Lea Michele foi desagradável. "Deixem-me ser o mais clara que conseguir: o ódio na América é uma doença que estamos a tentar curar. Dito isto, foi desagradável trabalhar com ela? Bastante, sim. Pela forma desrespeitosa como Lea tratou os outros, e durante tanto tempo, merecia ser denunciada. E sim, a culpa é nossa, que permitimos que este tipo de comportamentos se arrastasse sem dizermos nada", escreveu na sua página de Twitter.

Gerard Canonico, que trabalhou com a atriz no espetáculo da Broadway "Spring Awakening", recorda a experiência como um "pesadelo" partilhado por todos os atores do elenco com quem Lea Michele teve de contracenar.

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"Não foste nada a não ser um pesadelo para mim e para os meus colegas. Fizeste-nos sentir como se não tivéssemos o direito de estar ali. Tentei, durante anos, ser simpático para ti, mas não serviu de nada. Sugiro que peças desculpa em vez de tentar culpar a forma como os outros olham para ti", escreveu o ator em resposta ao comunicado oficial da atriz na sua página de Instagram.

As acusações, que deambulam entre o racismo, a intolerância e a ostracização de restantes colegas, foram reforçadas pelo ator Dabir Snell, também de "Glee", que recordou, na sua página de Twitter, as vezes que se viu impedido de se sentar na mesma mesa que Michele e os restantes membros do elenco. "Miúda, tu nunca me deixaste sentar à mesa contigo e com os meus colegas por achares que eu não pertencia ali", escreveu o ator em resposta à atriz.

Apesar do primeiro comunicado oficial e das novas acusações terem surgido em público, Lea Michele escolheu o silêncio e, até à data de publicação deste artigo, nunca mais voltou a pronunciar-se sobre as acusações de racismo, de intolerância e de conduta imprópria nos bastidores.