Um traje colorido, leve e suscetível à escolha individual. É este o traje tradicional que Zarifa Ghafari reconhece como símbolo da cultura do seu país. Em 1996, a obrigatoriedade do uso de burqa conservadora foi decretado pelos talibãs. Mais de 20 anos depois, a sua utilização volta a ser imposta às mulheres do Afeganistão, contra a sua própria vontade.
No final dos anos 1990, quando os talibãs assumiram pela primeira vez o poder, as mulheres e as raparigas não tiveram acesso à educação e foram excluídas da vida pública.
Em agosto de 2021, depois de tomar o Afeganistão, o grupo fundamentalista diz-se mais moderado em relação ao que era antes da invasão dos Estados Unidos pós-11 de setembro. No entanto, o uso da burqa conservadora voltou a ser obrigatório e, à data da tomada de Cabul, a venda de burqas disparou.
"Não representa a minha tradição"
"A burqa devia representar uma escolha. Gostas de usar burqa? Então usa. Se não gostas, não uses. Deve ser um símbolo de liberdade", avança Zarifa Ghafari. "É assim que deve funcionar".
"Forçar a utilização da burqa já não representa a minha tradição ou a minha religião. E é o que está a acontecer, neste momento, no Afeganistão. Temos de o impedir e, acima de tudo, temos de lutar para que mude", comenta a ativista de 29 anos, que se viu obrigada a abandonar o próprio país, na sequência de três tentativas de homicídio.
"Mataram o meu pai para me travar. Enquanto for viva, não me calo", frisou, durante a sua passagem por Portugal, no passado dia 29 de setembro, à margem do evento promovido pela associação Corações com Coroa.
"O que mais me fascina em relação à minha religião é o facto de ter mais direitos para as mulheres [do que para os homens]", conta Zarifa Ghafari, acrescentando que a situação atual do Afeganistão, no que aos direitos das mulheres diz respeito, se deve, essencialmente, à má interpretação da religião e, ainda, à guerra enquanto negócio.
"Nenhuma mulher se vestiu assim na história do Afeganistão"
À medida que o grupo fundamentalista foi tomando posse da cidade de Cabul, surgiram inúmeros relatos de como a venda de burqas (e o respetivo valor) disparou nas lojas da cidade afegã. "No ano passado, estas burqas custavam 200 afeganes [1,92€]. Atualmente, estão a tentar vendê-las por 2.000 ou 3.000 afeganes [19€ a 28€]", avança Aref, uma comerciante, em declarações ao jornal "The Guardian", a 15 de agosto, à data da tomada de posse do regime talibã.
Dia após dia, o medo aumenta e a compra em massa faz com que as vendas disparem. "Antes, muitos dos nossos clientes eram das províncias. Agora são as mulheres da cidade que as compram", acrescenta Aref.
No entanto, há quem resista. E, acima de tudo, há quem lute por ver representada (com legitimidade) a religião pela qual se rege. O movimento #DontTouchMyClothes (que, em português, significa "não toques nas minhas roupas") arrancou no passado dia 12 de setembro, com o principal intuito de resistir ao regresso da imposição da burqa conservadora.
A premissa é simples e passa pela publicação da hashtag acompanhada de uma fotografia relativa ao tradicional traje afegão, que em nada tem que ver com a burqa imposta pelos talibãs.
Apesar de o protesto online, até ao momento, continuar a decorrer, o arranque do movimento remete para setembro deste ano, na sequência da decisão, por parte do regime talibã, de que estudantes do sexo feminino, professoras, jornalistas e outras mulheres à frente de cargos públicos teriam de usar uma burqa dentro das salas de aula ou durante o horário laboral.
Como forma de protesto contra a burqa conservadora, que cobre por completo o corpo da mulher, da cabeça aos pés, várias mulheres afegãs (e não só) têm aderido ao movimento e, consequentemente, partilhado fotografias com as tradicionais roupas afegãs, coloridas e menos cobertas.
Roxana Bahar Jalali, historiadora afegã, motivou o arranque da companha #DontTouchMyClothes. "Nenhuma mulher se vestiu assim na história do Afeganistão. É totalmente estranho à cultura afegã. Publiquei uma foto minha com o traje tradicional afegão para informar, educar e dissipar a desinformação que está a ser partilhada pelos talibã", declarou Roxana Bahar Jalali ao jornal "India Times", a propósito da burqa imposta pelos talibãs.
"Uma das maiores preocupações é a identidade e soberania do Afeganistão, que, neste momento, estão sob ataque", disse, em declarações à BBC.
"Esta é a cultura afegã. Este é o meu vestido tradicional" escreveu Peymana Assad, a primeira mulher afegã eleita para um cargo público no Afeganistão, na rede social Twitter.
"O nosso traje cultural não são as roupas de Dementor [vilão da saga 'Harry Porter'] que os talibãs querem que as mulheres usem", acrescentou a propósito do movimento #DontTouchMyClothes.
"Esta é o verdadeiro traje afegão. As mulheres afegãs usam trajes coloridos e modestos. A burqa preta nunca fez parte da cultura afegã", escreveu Spozhmay Massed, ativista de direitos humanos, que reside, atualmente, nos Estados Unidos.
Relatos de mulheres falam em vidas completamente destruídas
A 23 de setembro, a organização Human Rights Watch e a Universidade Estadual de San José denunciaram graves violações dos direitos humanos contra as mulheres, raparigas e crianças em Herat, no oeste do Afeganistão, alegando que, desde 12 de agosto, os talibãs estão a negar às mulheres a liberdade de movimento fora das suas casas, a impor códigos de vestuário restritos e, ainda, a restringir o acesso a emprego ou a educação, avança a agência Lusa, citada pela TVI24.
Dias depois de os talibãs assumirem o controlo da cidade de Herat, um grupo de mulheres afegãs pediu para se reunir com os líderes locais dos talibãs, com o intuito de discutir os seus direitos.
Vários dias depois, encontraram-se com um representante do grupo fundamentalista, que disse para pararem de insistir na questão dos direitos e que, se apoiassem o regime talibã, poderiam ser recompensadas.
À organização Human Rights Watch, relatos de mulheres falam em vidas completamente destruídas desde a chegada dos talibãs ao poder.
À imprensa, Zarifa Ghafari deixa claro que, mais do que ajudar mulheres afegãs a sair do Afeganistão, sonha em regressar ao seu país e lutar por uma realidade diferente, no que aos direitos humanos diz respeito. "O meu país é a minha casa".
Atualmente, é possível participar na luta de Zarifa Ghafari através da assinatura da petição em zarifaghafari.com e, ainda, do fundo "#JuntosAcolhemos", criado em conjunto pela associação Corações com Coroa, da qual Catarina Furtado é fundadora, e pela Cruz Vermelha.