À medida que o regime talibã começa a decidir medidas repressivas contra as mulheres em algumas regiões do Afeganistão e muitos cidadãos tentam fugir do país, a ativista Mahbooba Seraj decidiu ficar com o objetivo de dar apoio e proteger as mulheres que veem agora os seus direitos, liberdades e garantias novamente em risco.
Enquanto fundadora da Afghan Women's Network, a organização não-governamental criada em 1996 quando o grupo fundamentalista tomou o controlo do país e que visa defender os direitos das mulheres, Seraj descreve um clima de incerteza enquanto tem, à sua guarda, inúmeras mulheres que não fazem ideia de como será o seu futuro sob um novo regime talibã.
"Não consigo dizer-lhe o que está ou vai acontecer. Se vamos estar vivas amanhã ou não. Não temos ideia absolutamente nenhuma do que está a acontecer lá fora", conta Mahbooba Seraj em entrevista à NPR para o podcast "Up First". Sobre o contexto atual, fala de "um vazio no governo, na segurança e em tudo o lado", que potencia a sensação de perigo iminente.
Seraj tem à sua responsabilidade inúmeras mulheres e é isso que a impede de sair do país como tantos cidadãos afegãos têm tentado fazer. "Elas têm estado sob a minha proteção há muito tempo e continuo aqui para elas porque não sei o que fazer. Não as posso pôr na rua. Tenho de assumir o compromisso e ficar junto delas, tentar manter alguma ordem e rezar para que nada de horrível aconteça", desabafa.
"Sou responsável por um grupo de mulheres e crianças no Afeganistão pertencentes a uma categoria de mulheres que passaram as suas vidas inteiras a ser violentadas e abusadas. Faço isto [referindo-se ao trabalho junto da organização não-governamental que fundou] há 20 anos. É isto que faço. Este é o nosso trabalho: cuidamos das nossas crianças, ensinamos as pessoas a terem cuidado com a sua saúde", explica.
Às mulheres com quem lida diariamente, a ativista tenta transmitir-lhes mensagens de tranquilidade mesmo que assuma ser incapaz de prever o que pode acontecer.
"Digo-lhes para terem calma, para não fazerem barulho e para respirarem. Para se manterem minimamente ocupadas. Mas não lhes vou dizer o que pode acontecer nem especular porque eu própria não sei o que está no horizonte", lamenta.
"A forma como nos deixaram foi errada"
Na mesma entrevista, Seraj diz sentir-se abandonada pelos EUA depois de Joe Biden ter feito saber que não iria fazer com que o conflito no Afeganistão passasse a ser problema de um quinto presidente (depois de ter marcado as presidências de George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump).
"Estou muito transtornada com a forma como a saída dos EUA do país foi feita. Não estou a dizer que as forças militares deveriam ter ficado connosco para sempre para nos dar a mão, mas a forma como nos deixaram foi errada." É como, continua Seraj, o povo afegão se assemelhasse "a uma batata quente" que os EUA decidiram passar a outro. "Mas deixaram-nos cair, abandonaram-nos e agora somos obrigados a lutar por nós próprios", diz.
Sobre esta ideia de que os talibã de 2021 são diferentes (e mais moderados, portanto) do que os de 2001, antes de serem expulsos do Afeganistão pelos EUA pós-11 de setembro, a ativista diz que precisa de ver para crer.
"Eles têm dito isso [que são mais moderados] frequentemente, mas queremos que eles mostrem de que forma é que vão lidar connosco. Precisamos de saber o que é que eles nos vão deixar fazer, se as nossas meninas podem ir à escola, se as nossas mulheres podem trabalhar. Têm de nos deixar fazer isso. Assim que vir isso a acontecer, passarei a acreditar nessa ideia moderada", conclui.
Ainda que, para já, não haja governo formado nem leis anunciadas, o regime talibã já está a implementar algumas medidas em várias regiões do Afeganistão. Na província de Ghazni, por exemplo, as mulheres passam a estar proibidas de fazer rádio ou de ocupar qualquer cargo na emissora da região. Além disso, todas as rádios vão passar a estar impossibilitadas de transmitir música, diz a agência noticiosa Pajhwok, citada pelo jornal "Público".
Foi também publicada uma nova diretriz para a província de Harat, que proíbe homens e mulheres de estudarem em conjunto em quaisquer estabelecimentos de ensino da região.
Para justificar a decisão, o responsável pelo Departamento de Educação do Emirado Islâmico do Afeganistão (EIA), o nome que o regime também adotou entre 1996 e 2001, fez saber que a educação conjunta está na base dos males que prejudicam a sociedade, escreve a mesma publicação.