No início do século XX viviam na Europa cerca de nove milhões de judeus. Entre 1939 e 1945, tempo em que decorreu a Segunda Guerra Mundial, estima-se que cerca de seis milhões tenham sido executados. O campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, construído em 1940 no sul da Polónia sob o controlo Heinrich Himmler, foi o local onde grande parte deste genocídio teve lugar. Afinal, tinha sido edificado para isso mesmo: nasceu para fazer cumprir a Solução Final, plano que visava o extermínio deste povo. Milhares morreram em câmaras de gás e muitos outros foram vítimas mortais da fome e de doenças.

É difícil imaginar alguém que se tenha voluntariado para ir para estes campos de extermínio. Mas a realidade é que houve, pelo menos, um homem que, secretamente, o fez: o polaco Witold Pilecki fez-se capturar e transformou-se no prisioneiro número 4859. Tinha uma missão: sabotar o campo de concentração e, através de redes de resistência polacas, contar ao mundo as atrocidades que ali se cometiam.

Não foi em vão, ainda que tenham sido necessárias décadas para que a sua história se tornasse conhecida. Pilecki sobreviveu e conseguiu fugir de Auschwitz-Birkenau depois de quase três anos a comandar uma resistência que ali montou. Viveu para saber que o campo havia sido libertado pelas forças aliadas, mas isso não lhe bastou para que tentasse regressar ao normal do quotidiano. É que, depois de uma ocupação, veio outra: o polaco não aceitou a chegada do regime soviético e instauração do comunismo no seu país, tendo sido capturado, julgado e executado pelas forças de Estaline.

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A sua história manteve-se escondida nos 80 anos seguintes, mas o silêncio acaba de ser quebrado, com a publicação da biografia escrita pelo jornalista Jack Fairweather, “The Volunteer: The True Story of the Resistance Hero Who Infiltrated Auschwitz", uma narrativa recheada de pormenores não só sobre a miséria dos campos, mas também sobre as forças revolucionárias que por lá nasciam e que contrariavam o objetivo nazi: despir este prisioneiros de qualquer réstia de humanidade.

Como é que o autor chegou a esta história? “Em 2011 encontrei-me com um amigo repórter, Matt McAlester. Nós cobrimos as guerras do Médio Oriente juntos e estávamos a tentar entender aquilo que tínhamos testemunhado”, conta o autor à revista “Time”.

É em conversa com McAlester que o jornalista dá de caras com a história do homem que lutou, por dentro do regime nazi, contra ele. “Ele [Matt McAlester] viajou para Auschwitz e ouviu falar sobre uma célula de resistência do campo. Fiquei muito surpreendido ao saber que havia pessoas em Auschwitz a roubarem rádios para transmitirem mensagens, a sabotar instalações, a copiarem e a contrabandearem registos.”

Morreu o último sobrevivente dos primeiros transportes para Auschwitz
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Depois da investigação que culminou com a publicação deste livro, o autor mudou a sua forma de ver este local. “Via os campos como um símbolo de sofrimento, mas Pilecki ofereceu-me toda uma nova maneira de pensar sobre eles, através dos olhos de alguém que estava empenhado em derrubar o regime.”

Mas o que é que levou este homem, que vivia uma vida tranquila como agricultor e pai de família no leste da Polónia, a arriscar a sua vida, numa missão em cuja morte seria um resultado quase certo? Houve duas forças fundamentais: o amor ao seu país e a consequente obrigação em fazer frente à terrível ditadura de Adolf Hitler. “Pilecki era um patriota católico devoto e a sua fé ajudou-o a sobreviver ao campo”, diz o jornalista inglês, na mesma conversa.

O autor Jack Fairweather

A missão deste polaco era revolucionária e deu a outros prisioneiros um motivo por que lutar — e sobreviver. “Os nazis tentavam dividir as pessoas, desumanizá-las e despi-las dos seus traços comuns. Em Auschwitz, os prisioneiros estavam a ser mortos à fome, espancados, abusados", diz.

Pilecki conseguiu, em 1943, fugir do campo de concentração. O jornalista fez então por recriar os passos do prisioneiro 4859 nesta fuga, história e pormenores desconhecidos à data da publicação do livro, quase 100 anos depois. “Ele cruzou 100 milhas [160 quilómetros] de território nazi ocupado em pouco mais de uma semana”, conta o jornalista, que fala num “profundo apreço” pela “resiliência física” deste homem.

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“Uma das coisas que descobri nesta investigação foi que várias pessoas que conheceram Pilecki continuavam vivas. Muitas nunca tinham partilhado as suas memórias — ou porque nunca ousaram, ou simplesmente porque ninguém lhes perguntou sobre elas”, disse Fairweather.

O jornalista contactou, então, algumas das famílias que deram abrigo a este fugitivo. “Lembravam-se [as famílias] de trechos de diálogo daquela época. Deu-me arrepios ouvir as palavras dele a serem repetidas 80 anos depois.”

Sobre a sua morte, Jack Fairweather conta que “depois da guerra, a Polónia foi ocupada pelas forças soviéticas”, que instauraram neste país um regime comunista. “Pilecki insistiu em lutar contra esta segunda ocupação, mas foi capturado, levado a julgamento e executado, tendo todos os vestígios do seu registo de guerra sido destruídos ou trancados em cofres.”

A própria família do polaco só soube dos feitos deste homem na década de 90. “Desde então, a sua história começou a descobrir-se lentamente.”