Mariana Gomes foi pela primeira vez este ano aos Santos Populares em Lisboa. A jovem de 20 anos e quatro amigos escolheram a zona da Graça para passar a noite. Terminada a festa, por volta das 4 horas da manhã, tentaram regressar a casa, numa das noites mais congestionadas do ano. Em vez disso, acabaram no hospital.

Na madrugada de 13 de junho, Dia de Santo António, as quatro raparigas e o rapaz dirigiram-se para uma paragem de autocarros perto da Graça, já que os "Ubers estavam completamente cheios e as ruas cortadas", explica-nos Mariana. Durante o caminho, aperceberam-se de pessoas a dirigirem-se a eles verbalmente, sem decifrarem o conteúdo do que era dito, devido ao barulho.

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Ao chegarem à paragem, os dois rapazes que os perseguiam colocaram-se ,"conscientemente e deliberadamente", a cerca de um metro do grupo, continuando a proferir as mesmas frases, dirigidas às raparigas: "Fodia-te toda", "Olha lá para isto", "És toda boa", "Olha-me este rabo".

O que começou como assédio sexual, que chegava em violência verbal, disfarçada dos clássicos "piropos", culminou em agressões físicas e numa situação de desespero em que a busca por auxílio foi tudo menos produtiva. Aquilo que este grupo de amigos viveu tornou-se público a 15 de junho, quando Mariana Gomes publicou um vídeo de 9 minutos no seu Instagram a reviver os acontecimentos.

A MAGG falou com a jovem natural do Porto sobre o que se passou. Depois de se aperceberem de que estavam a ser vítimas de assédio sexual, sentiram-se "desconfortáveis". "A nossa intuição dizia-nos para ignorar, porque estávamos com algum receio do que podia acontecer", admite a jovem, que, a certa altura, se fartou de não intervir.

Do assédio sexual à violência física

"Não tenho muita paciência para estas situações. Esperei um pouco para ver se eles paravam com os piropos, mas eles não pararam, então eu perguntei-lhes 'E se fossem para a puta que vos pariu?'. Eles mandaram-me a mim de volta", contou, referindo ter assumido uma "linguagem muito irónica".

De seguida, um dos dois homens perguntou: "Vais dizer-me que também és feminista, é isso?". "Claro que sou. E aquilo que vocês estão a fazer é crime, é assédio sexual. Pedia-vos imenso para saírem daqui e pararem com esta situação", apelou. Um dos rapazes, "num forte ato de masculinidade", lembrou: "Eu sou homem".

Fê-lo, de acordo com a estudante de Direito, "num tom condescendente e preponderante, para tentar justificar aquilo que estava a fazer e, de certa forma, para se superiorizar". Mariana apelidou-os de "machistas" e, pouco depois, apareceu um grupo de "cerca de 15 pessoas", aparentemente amigos dos dois primeiros.

"O que é que se está a passar aqui?", perguntou, "num tom mais agressivo", uma das raparigas que agora chegavam. Mariana explicou o que se estava a passar e ouviu de volta "Mas o assédio é normal". "Eu não consegui falar mais com ela", avança à MAGG. De seguida, Mariana testemunha outra das raparigas a puxar os cabelos a uma das suas amigas.

O conflito tinha escalado para a violência física. Essa mesma rapariga ainda consegue dar um pontapé na cara da amiga de Mariana, que entretanto consegue afastar a agressora. "A minha reação foi pegar no meu telemóvel para ligar à polícia, mas não tive tempo sequer de pesquisar o número. Um dos rapazes tirou-me o telemóvel da mão", continua a contar-nos.

"Não era uma questão de raça, era de machismo, e o machismo não tem propriamente raça"

Tentou reaver o telemóvel, mas sem sucesso, apenas regressando à sua posse "no final disto tudo". "Decidi dar-lhe um estalo, porque estava a sentir-me completamente impotente", confessa. Em reação, uma rapariga dirige-se a Mariana para lhe dar um soco na cara, mas Mariana consegue defender-se. A partir daqui, Mariana foi apelidada de racista.

"Os dois rapazes que iniciaram o assédio eram negros", revela, sublinhando que tentou esclarecer que "não era uma questão de raça, era de machismo, e o machismo não tem propriamente raça". O rapaz que começou o assédio reage dando um "forte pontapé" no abdómen de Mariana Gomes.

"Eu quase caio para trás. Uma rapariga desse grupo também pega em mim e leva-me para outro lado da estrada", disse-nos. O conflito "acalmou um bocado", sendo que os agressores "fugiram e foram agredindo outras pessoas" pelo caminho. "Havia um rapaz que estava numa mota sentado. Deram-lhe uma cabeçada e o rapaz caiu da mota", recorda.

De acordo com a estudante de 20 anos, os dois agressores não estavam alcoolizados. "Podiam ter bebido álcool, mas não cambaleavam, não arrastavam as palavras. Não tinham o pretexto", diz, esclarecendo que a violência, verbal e física, começou sempre do lado oposto.

Quando os rapazes já se tinham ido embora e as lágrimas escorriam pela face de Mariana, apareceu Diogo Faro, humorista e amigo da vítima. "Ele estava a passar no sítio onde eu estava, logo imediatamente depois de eu ser agredida. Ele olhou para mim, percebeu que eu estava a chorar e imediatamente abraçou-me e apoiou-me. Insistiu que eu fosse para o hospital, ficou comigo", conta, assegurando que "foi também ele" que a incentivou a publicar o vídeo nas redes sociais.

"A polícia nunca apareceu"

Assim que pôde, Mariana Gomes ligou para a polícia, explicando o sucedido. As autoridades asseguraram que iriam enviar um automóvel para a rua indicada, mas a viatura nunca mais apareceu. "Já vai para aí", respondiam-lhe, quando pedia satisfações. Os amigos insistiram com Mariana, que havia sido operada uma semana antes, para sair daquela zona, não fossem os agressores voltar.

Regressaram à Graça, onde Mariana se dirigiu a um carro da PSP, que continha dois polícias "sentados a fazer absolutamente nada". Voltou a contar o que se passou, desta vez pessoalmente, a um terceiro polícia, que afirmou que "não conseguiam fazer nada, porque tinham tido muitas ocorrências, tinham delegações em pontos-chave da cidade e tinham de proteger a via pública".

"Ele parecia não estar a dar relevância à situação, até que eu comecei a explicar o meu estado de saúde e as sequelas que me podia trazer para a vida", recorda, tendo o polícia decidido chamar o INEM. Mariana assegura que, em pouco tempo, viu cerca de 15 viaturas policiais a passarem por si: "Iam para algum lado, mas não para o local da agressão".

Isto acabou por deixar a estudante de direito "revoltada". O tempo passou, mas "a polícia nunca apareceu". Mariana foi com o INEM para o Hospital de São José, onde o médico especialista que a atenderia só chegaria às 8 horas da manhã. Como existia uma esquadra no local, a jovem decidiu efetuar já a queixa, pois está prestes a ir estudar para fora.

Mais uma vez, as autoridades não contribuíram. O polícia com quem falou apenas tentava dissuadi-la de apresentar a queixa. "Depois eu percebi que ele estava a terminar o turno", revela Mariana, que só conseguiu avançar com um outro policial. No dia a seguir, foi à divisão criminal do Forte do Alto do Duque para proceder à identificação dos criminosos.

"A base de dados é de pessoas que já estiveram presas preventivamente e que o juiz autorizou a que a polícia tivesse essas fotografias. Todo o resto de pessoas não está lá. Eu não consegui identificar ninguém", esclarece-nos, ficando apenas com a indicação de, no caso de voltar a cruzar-se com os bandidos, chamar a polícia. "Provavelmente, nunca mais os vejo", admite, sobre os jovens, na casa dos 20, que a aterrorizaram.

"Eles acreditam que podem agredir verbalmente uma rapariga e que nada lhes vai acontecer"

Agora com mais de 40 mil 'gosto', o vídeo que Mariana Gomes divulgou incentivou a muitas partilhas. "Tenho recebido imensos relatos de mulheres que ou foram desacreditadas ou desencorajadas a apresentar queixa ou tiveram vergonha de falar com a família ou foram por ela desacreditadas. Outras que chamaram a polícia e também nunca apareceu", contou-nos a estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Além disso, também foi contactada por homens: "Pediram-me desculpa pelas atitudes desses homens. De certa forma, percebia-se que eles tinham quase um sentimento de culpa por aquilo que se tinha passado, e tinham noção de que era algo que devia terminar".

Mariana decidiu tornar público aquilo que viveu para "encorajar outras mulheres a não ficarem caladas, para sensibilizar e mostrar que não estão sozinhas" e para "consciencializar homens", já que "muitos acham que é normal que isto aconteça" e precisam de perceber que "as suas atitudes têm consequências muito graves".

"Isto não foi uma situação esporádica, acontece recorrentemente a mulheres e não é uma questão individual. O machismo não é uma situação interpessoal, é sistémica", acha a ativista por justiça climática. "O sentimento de impunidade destas pessoas é alimentado por um sistema machista. Eles acreditam que podem agredir verbalmente uma rapariga e que nada lhes vai acontecer, porque o sistema não protege as vítimas", aponta.

A jovem acredita que "há todo um conjunto de fatores a nível internacional" a contribuir para o escalar do machismo. "A ascensão da extrema direita em Portugal faz com que esta cultura de patriarcado aumente e a violência também", considera. "Neste momento, estou com medo de andar especificamente naquelas ruas, porque tenho receio de que aquelas pessoas voltem lá", admitiu à MAGG.

"Hoje fui eu, amanhã pode ser a minha irmã, a minha avó, a minha mãe, a minha tia, as minhas filhas"

Mariana, "feminista já há muitos anos", tem sentido que "a violência contra as mulheres, além de aumentar em frequência, está a aumentar em gravidade". É a primeira vez que publica algo de conteúdo próprio relativo a assédio e piropos. "Já tinha recebido centenas de piropos, mas nunca tinha sido agredida fisicamente", esclarece.

Ouve constantemente "é só um piropo". "Nesse dia, eu percebi que não é só um piropo", alerta a jovem de 20 anos, que se encontrava com uma hemorragia devido à operação que realizara, hemorragia essa que aumentou por consequência da agressão. Neste momento, encontra-se bem, tal como a amiga que também foi agredida.

"Hoje fui eu, amanhã pode ser a minha irmã, a minha avó, a minha mãe, a minha tia, as minhas filhas", relembra, referindo as duas irmãs mais novas, de 10 e 17 anos, que "não seriam capazes" de se defender nas mesmas circunstâncias. "Eu tenho mais medo por elas do que por mim. Eu não vou estar sempre lá. Isso é o que mais me assusta: o mundo que nós estamos a deixar para estas meninas".