Uma pessoa com um estilo de comunicação agressivo e hostil sempre que pressente uma pergunta acusatória, mas também também muito propenso à criação de narrativas que usa para se vitimizar e defender. É assim que Maria João Marques, economista e analista política, e Isabel Ferin Cunha, investigadora na área da comunicação dos media, descrevem José Sócrates, cujo estilo, garantem, foi sendo aprofundado ao longo dos anos, mas que, na génese, se manteve muito semelhante.

A descrição surge na véspera de o antigo primeiro-ministro, ilibado pelo juiz Ivo Rosa dos crimes de corrupção que lhe eram imputados, conceder a primeira entrevista televisiva esta quarta-feira, 14 de abril, à TVI, conduzida por José Alberto Carvalho.

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Sobre este momento, que quase se assemelha à de um grande evento televisivo pela expectativa que gera, a palavra-chave é imprevisibilidade. "Vai depender do guião da entrevista, mas haverá, com certeza, vitimização, agressividade e o reforçar da ideia de que [José Sócrates] se trata de um herói afastado da sua trajetória de vitória", diz Isabel Ferin Cunha à MAGG.

Essa trajetória, sabemos, teria a presidência da República como destino e que, segundo a investigadora, é, para Sócrates, "uma das principais razões por que este processo [referindo-se à Operação Marquês] lhe foi montado."

As "narrativas" de José Sócrates, que deambulam entre a agressividade e a vitimização

Em função das perguntas, continua Ferin Cunha, que se abstém de fazer julgamentos relativos ao processo e se limita a analisar a estratégia de comunicação do antigo primeiro-ministro, o que veremos será "Sócrates a recriar uma nova história sobre os factos" que já se conhecem.

O tom, esse, prevê-se que siga mesma tónica já conhecida: apostando numa retórica inflamada, autoritária e, até, hostil. Ressalvando o facto de não ser formada em psicologia, a investigadora diz que "José Sócrates é uma pessoa complexa e que aparenta ter uma personalidade com alguns problemas estruturais", o que, por sua vez, pode ajudar a explicar "essa agressividade que usa como estratégia".

Isabel Ferin Cunha
Isabel Ferin Cunha Isabel Ferin Cunha, investigadora, fala na aproximação de José Sócrates à realidade brasileira como uma estratégia pouco inocente créditos: Universidade de Coimbra

Este registo salta à vista quando se dirige ao País, mas, mais especificamente, nas declarações que faz aos jornalistas — na rua ou nas televisões. Dos vários momentos que Sócrates protagonizou em direto para a televisão, destacam-se dois, ambos na RTP. O primeiro, durante o espaço de opinião que, em 2014, ocupava com José Rodrigues dos Santos e que apostou num registo mais confrontacional. José Sócrates acusou o jornalista de se "colocar no papel de advogado do Diabo", argumentando que "até o advogado do Diabo pode ser inteligente e perceber que não basta papaguearmos tudo o que nos dizem para fazer uma entrevista".

O jornalista registou o insulto, mas recusou responder. O momento alimentou jornais, blogues e redes sociais e repetiu-se em força duas semanas depois, quando os dois se voltaram a encontrar em estúdio para mais uma emissão descrita como de enorme tensão.

Mais tarde, em 2017, José Sócrates voltaria a sentir-se indignado, desta vez com Vítor Gonçalves, que terminou a entrevista perguntando como é que o antigo primeiro-ministro pagava as suas despesas. Sócrates considerou a pergunta uma "afronta".

"Isso é uma coisa inacreditável. Talvez a resposta fosse: o que é que o senhor tem que ver com isso? Isso é uma pergunta de um jornalista? É a pergunta típica do 'Correio da Manhã'", respondeu.

"José Sócrates trabalha na ideia da verdade circunstancial e, nesse sentido, pode criar histórias paralelas, com heróis e vilões, que têm um potencial impacto público. Pode haver uma base de verdade, mas em volta há toda uma distorção da realidade"

Esta agressividade, que muitas vezes se materializa em ataques de caráter aos jornalistas (como quando, em entrevista à RTP enquanto era primeiro-ministro, acusou o "Jornal das 8", da TVI, de ser um "um jornal travestido" e com "o ataque pessoal como objetivo"), decorre, diz Ferin da Cunha, "de um treino em comunicação que pode ser útil na medida em que dá força à convicção própria de que Sócrates tem moral para se sentir indignado".

Essa estratégia, continua a investigadora, "pode ter muitas leituras consoante o público a que se dirige". De mãos dadas com a agressividade está também a vitimização, diz Maria João Marques.

"Desde sempre que José Sócrates é um homem extremamente agressivo no seu comunicacional, mas também se vitimiza bastante. O antigo primeiro-ministro foi vítima de quase toda a gente, segundo ele, até da crise de 2008 que o próprio tratava quase como que um opositor político."

A diferença, continua, é que numa primeira instância, "esta agressividade vinha de um primeiro-ministro e, mais tarde, de um antigo primeiro-ministro que podia chegar a presidente da República". "Agora vem de um homem que está acusado de vários crimes, mas a agressividade é a mesma", argumenta a analista política.

Além disso, os termos "história" ou "narrativa" são já indissociáveis da figura do antigo secretário-geral do Partido Socialista (PS), garante Maria João Marques, que considera que a sua comunicação passou, em grande parte, pela "construção de uma ideia de que a realidade não é a realidade".

"A realidade é a que José Sócrates quer e é essa que ele vai transmitir às outras pessoas, seja de um modo sedutor ou de forma mais agressiva, achando que os outros têm de se vergar à sua narrativa. Por oposição, não lhe cai bem quando são as outras pessoas a criar narrativas para atacar um ser que se crê tão providencial, que quase acredita que nem o País o merece", diz.

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A aproximação à realidade brasileira e a figura de Dilma como uma "ingénua útil"

Um dos exemplos mais claros desta propensão para criar histórias paralelas diz respeito à aproximação, acentuada desde que foi conhecida a decisão de Ivo Rosa, à realidade brasileira.

No sábado, 10 de abril, José Sócrates publicou um texto de opinião no jornal brasileiro "Folha de S. Paulo" (acesso pago), e através do qual argumenta que "a Operação Marquês foi a Lava Jato portuguesa" e que "o sistema judicial português foi manipulado para perseguir um adversário político".

Isabel Ferin Cunha descreve esta estratégia como um conjunto de "artimanhas de alguém que conhece os bastidores da comunicação e os princípios de construção das notícias falsas".

"José Sócrates trabalha na ideia da verdade circunstancial e, nesse sentido, pode criar histórias paralelas, com heróis e vilões, que têm um potencial impacto público. Pode haver uma base de verdade, mas em volta há toda uma distorção da realidade em função de interesses que não são suficientemente claros", explica a investigadora.

Maria João Marques
Maria João Marques Maria João Marques, economista e analista política, diz que José Sócrates é já indissociável de termos como "história" ou "narrativa"

A aproximação à realidade brasileira, diz, é o exemplo perfeito. "Comparando-se ao ex-presidente Lula da Silva e ao processo de que foi alvo, José Sócrates cria a sua imagem junto da opinião pública brasileira que vive muito fragilizada por essa dúvida sobre a justiça no Brasil. Cria dividendos em cima de uma realidade que não é sua, mas à qual se cola, para criar uma outra história sobre o julgamento e todo o processo que envolve a Operação Marquês."

A explicação, para Ferin da Cunha, é simples: o facto de o Brasil ser muito importante no imaginário e na política portuguesa. "A classe média e mais instruída em Portugal tem uma grande relação com o Brasil e não é por acaso que isto está a ser feito, porque há um efeito boomerang entre aquilo que é dito no Brasil e que, mais tarde, volta para Portugal. O facto de Sócrates fazer um jogo entre os juízes portugueses e [Sergio] Moro no Brasil, não é por acaso. Há uma má informação que é trabalhada e que não é ingénua."

"Somos um país com um nível de exigência democrática baixíssimo, com uma falta de vontade de escrutínio assombrosa e com uma permissibilidade de comportamentos de políticos que deveriam merecer censura e não recebem, mas, em todo o caso, há limites"

O que surpreende a investigadora, no entanto, é que o próximo livro de José Sócrates, intitulado "Só Agora Começou" (escrito desde 2018 e com lançamento previsto para os próximos dias), conta com o prefácio de Dilma Rousseff, que assumiu a presidência do Brasil entre 2011 e 2016, até ser alvo de um processo de destituição (o chamado impeachment).

O facto de Rousseff assinar o prefácio "demonstra até que ponto o Brasil não conhece a realidade política portuguesa", defende Ferin Cunha. "Embora a grande parte dos portugueses conheça muito bem a realidade brasileira, a intelectualidade política do Brasil sempre desprezou a a nossa política e, por isso, a Dilma é, neste caso, uma ingénua útil e não terá tido uma assessoria suficientemente forte para perceber aquilo em que se estava a meter".

Maria João Marques é da mesma opinião e fala num "erro brutal de Dilma", que não "deverá ter tido noção do que fez". Mas a estratégia de José Sócrates, tal como a entende, é fácil de desmontar: "Está a tentar fazer crer que, se Lula da Silva foi perseguido politicamente, e aparentemente foi, também ele passou pelo mesmo."

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Porém, recorda que embora Ivo Rosa tenha "preferido beneficiar os direitos do cidadão e do acusado José Sócrates", a verdade é que, nem por isso, o juiz deixou de o acusar de crimes graves.

"O de branqueamento de capitais é um crime grave, com uma pena considerável, e Ivo Rosa disse coisas arrasadoras sobre o antigo primeiro-ministro. Mas o que este faz agora é, uma vez mais, criar uma narrativa — a de que foi inocentado", refere.

Apesar de eventuais tentativas, não deverá haver futuro para José Sócrates na política

Apesar dessa imagem que o antigo primeiro-ministro tenta cultivar, e irá reforçar ao longo dos próximos meses, a possibilidade de se tornar uma opção viável na política portuguesa é diminuta.

"Somos um País com um nível de exigência democrática baixíssimo, com uma falta de vontade de escrutínio assombrosa e com uma permissibilidade de comportamentos de políticos que deveriam merecer censura e não recebem, mas, em todo o caso, há limites", diz Maria João Marques. A economista e analista política diz que até pode acontecer Sócrates não ser condenado por nenhum dos crimes, mas que, aos olhos da opinião pública, o antigo governante está "arrasado".

Até porque "o PS não o quer". Até agora, a única voz do partido a reagir à decisão instrutória do processo Operação Marquês foi Fernando Medina. O atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa diz que "há um rompimento de laços de confiança quando há factos fundamentais de que alguém que foi primeiro-ministro recebeu avultadas quantias financeiras".

"Ao contrário do que era dito, não resultavam de fortuna pessoal ou familiar. Sem qualquer justificação aparente, que o próprio não dá e entendeu não dar durante todos estes anos, é algo que marca, de forma absolutamente negativa, o sentimento de bem-estar e de confiança na sociedade portuguesa", referiu esta terça-feira, 13 de abril, em declarações à TVI.

A investigadora Isabel Ferin Cunha admite que "teria de existir muita desgraça no espaço público ao longo dos próximos meses para que José Sócrates se pudesse refazer", especialmente neste "período tão complexo e volátil".

No entanto, é assertiva: "À partida, não tem hipóteses. O herói, tal como ele se vê, não tem condições de se reerguer."