25 de agosto de 1988. No dia em que deflagrou o incêndio no Chiado, os jornais que fecharam a edição durante a madrugada não tinham uma palavra sobre o desastre que estava naquele momento a abalar a cidade. O "Diário de Notícias" tinha uma grande reportagem sobre as férias de Mário Soares, o "Correio da Manhã" escrevia sobre a morte de uma criança no parque de diversões Algarve Wet'n Wild. Os dois davam grande destaque ao facto de Álvaro Cunhal ter permitido o voto secreto na designação dos delegados ao XII congresso do PCP.

Era um Portugal diferente. No verão de 1988, o turismo estava longe de ser o que é hoje — os hotéis no Algarve estavam a 60% —, a novela brasileira "Anos Dourados" ia chegar à RTP envolta em polémica ("cenas eventualmente chocantes antes do 'Vitinho'", escrevia o "Diário de Lisboa") e "Rambo III" tinha acabado de chegar às salas de cinema.

Eram estes os temas que marcavam a atualidade naquele verão. Pelo menos até às cinco da manhã daquela trágica quinta-feira, quando Lisboa acordou com o fogo nos Armazéns Grandella, do lado da Rua do Carmo. Ainda nesse dia, os diários vespertinos seriam os primeiros a dedicar as primeiras páginas ao incêndio do Chiado.

Na manhã seguinte tudo seria diferente. Todos os jornais — todos, sem exceção —, deram grande destaque ao incêndio no Chiado. O fogo destruiu 18 edifícios, uma área equivalente a oito estádios de futebol e matou duas pessoas.

O assunto ocupou a atualidade durante dias: das vítimas mortais aos desalojados, da agitação nas urgências de S. José à falta de medidas de segurança, contaram-se histórias, levantaram-se suspeitas e tentou-se compreender uma tragédia que ainda hoje permanece incompreendida. Este sábado, 25 de agosto, assinalam-se os 30 anos da tragédia que a imprensa classificou então como a pior desde o terramoto de 1755.

A maior catástrofe depois de 1755

"Os uivos das sirenes dos bombeiros cortaram os ares da madrugada de Lisboa. Eram 5h25 da manhã. O Grandella e o Chiado, os dois grandes armazéns da parte velha de Lisboa, estavam já a transformar-se numa enorme fogueira. As chamas, enormes, devoravam os edifícios de alto a baixo. Os bombeiros logo viram que estavam perante uma catástrofe. A maior que atingiu Lisboa depois do terramoto de 1755".

Página do 'Diário Popular' no dia do incêndio

Foi desta forma que o "Diário Popular" começou a primeira peça que escreveu sobre o incêndio no Chiado. Com reportagem, comentários e um editorial dedicados à tragédia, o jornal conseguiu reunir nessa tarde dez páginas de relatos sobre o que se passava (porque ainda se estava a passar) naquele fatídico dia. Falava-se nas suspeitas de fogo posto, que tudo tinha começado no rés do chão do Grandella, que as chamas eram visíveis a 15 quilómetros e que Mário Soares, o Presidente da República da altura, estava emocionado no local da tragédia.

Já o "Diário de Lisboa" colocou duas edições nas bancas. Na primeira, também com dez páginas, lia-se na capa: "Catástrofe. Coração de Lisboa em chamas". O retrato do pânico era atroz: "Fogo destruiu em cinco horas o que o Marquês fez em vários anos", lia-se num dos artigos. "Ardeu o Grandella, ardeu o Chiado, ardeu a CRGE (Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade), ardeu o coração do Chiado". Na segunda edição, a manchete era: "Adeus Chiado! Combater a catástrofe, salvar Lisboa".

Para facilitar a compreensão do sucedido,  "Diário de Lisboa" fez nas duas edições um filme dos acontecimentos desde o começo do fogo. Entre as cinco da manhã e as 11h55, foi isto que aconteceu.

"5h00: Incêndio deflagra nos Armazéns do Grandella. No entanto, o guarda do Elevador de Santa Justa afirma ter avisado os bombeiros cerca das 3 horas. 'O fogo começou no rés do chão e propagou-se muito rapidamente', diz o funcionário.

5h20: O incêndio torna-se conhecido e as corporações de bombeiros começam a ser mobilizadas.

5h23: Sapadores de bombeiros no local comunicam qual a situação e pedem reforços. Um comando avançado é montado no local. O fogo propagava-se aos edifícios circundantes. Pouco tempo depois, os Armazéns do Chiado começam também a arder. As sirenes dos carros de bombeiros ecoam por Lisboa, e os populares amontoam-se nas ruas. As colunas de fumo espesso veem-se por cima dos prédios.

5h28: EDP corta a eletricidade na Rua Nova do Almada, Boa Vista e Praça da Figueira.

6h00: O edifício dos Armazéns do Grandella está praticamente sem recheio. Apenas as paredes exteriores estão de pé.

06h30: Também as estações da EDP que servem a Praça do Comércio e o Chiado foram desligadas.

Cerca das 7h00: A Rua do Carmo está a arder, e há notícias de que o fogo avança para o Bairro Alto. A Polícia Judiciária encontra-se no local, e as primeiras suspeitas de fogo posto tornam-se públicas. Uma fonte das autoridades informa que um outro incêndio, que pode também ter origem criminosa, deflagrou pouco depois da hora da madrugada num edifício contíguo ao jornal 'A Bola', na Travessa da Queimada, ao Bairro Alto, mas foi facilmente dominado. Manuel Martins Dias, sócio maioritário do grupo proprietário dos Armazéns do Chiado e Grandella, e Luís Viegas, administrador deste último estabelecimento, foram ontem postos em liberdade sob caução.

A suspeita de fogo posto deve-se ao facto de, há três anos, um outro armazém do grupo, o Paga-Pouco, em Tavira, ter sido consumido por fogo posto. Os Armazéns do Grandella e do Chiado estão completamente destruídos e o fogo avança para sul. A Rua do Carmo é um mar de chamas. 120 homens de várias corporações combatem o sinistro, mas lutam com graves dificuldades de acesso à Rua do Carmo, devido à 'decoração' camarária da rua.

O forte vento que se sente espalha fagulhas por toda a parte na Baixa lisboeta, provocando focos de incêndio e ameaça outras zonas.

Cerca das 7h30: A situação agrava-se na Rua Nova do Almada: há chamas enormes em todo o quarteirão superior desta rua, e avançam em direção à Rua Ivens. Também o segundo quarteirão daquela rua está a arder. Na esquina da Rua do Crucifixo para a Rua da Vitória o fogo grassa.

Na Rua do Crucifixo os bombeiros evacuam os habitantes dos prédios e um dos moradores, de 60 anos, ao ser salvo desequilibra-se e cai para as chamas: o único morto do incêndio da baixa pombalina. Três pessoas ficaram feridas, uma deles é um bombeiro.

Nas ruas, os residentes dos prédios em chamas choram a perda das habitações. O ambiente é de grande consternação, e ninguém quer falar. Expectantes, olham as chamas que devoram tudo.

Cerca das 8h00: O fogo continua a avançar. Na Calçada do Sacramento as pessoas estão a ser evacuadas. Bilhas de gás rebentam, e ouvem-se estouros por toda a parte. A parte de baixo da Rua Garrett está a arder, e também alguns prédios da parte de cima. 22 auto-tanques, com 22 mil litros de águas e seis auto-escadas encontram-se no local. Mobilizadas todas as corporações de bombeiros de Lisboa e arredores: Sintra, Mafra, Loures, Oeiras, Almada, Cacilhas, Barcarena, Estoril e Alhandra combatem o incêndio. Helicópteros da Força Aérea sobrevoam o local, dando indicações da extensão do incêndio aos bombeiros.

8h15: No Governo Civil chegam doentes de um hospital pertencente a uma companhia de seguros. No edifício do Grandella os pisos abateram todos, e a Rua do Carmo tem já fogo dos dois lagos. O fogo é limitado a norte junto ao Elevador de Santa Justa, mas alastra-se aos Armazéns Jerónimo Martins, Ruas Augusta e da Prata não foram ainda atingidas. Os bombeiros pedem leite às populações. Lisboa, vista da Ponte 25 de Abril, é uma enorme coluna de fumo.

8h30: Da esquina da Rua do Ouro com a Rua da Vitória para cima, tudo está a arder. O fogo grassa também na Rua Nova do Almada. Os bombeiros começam a temer pela Rua Ivens, e a maioria dirige-se para lá. Nos hospitais de Lisboa, postos de socorros entram em funcionamento, e a Cruz Vermelha mobiliza também os seus meios e monta postos nos locais sinistrados. Com o alastrar do incêndio teme-se pelos milhões de contos guardados no edifício do Montepio Geral. Uma das condutas da EPAL rebenta, e a pressão de água nas mangueira diminui.

8h45: Exploração na zona do café A Brasileira. O incêndio devastou o primeiro quarteirão da Rua Nova do Almada, do lado de quem desce. Mais carros de bombeiros chegam ao local.

8h55: O edifício da Valentim de Carvalho, na esquina da Rua Garrett com a Rua Nova de Almada está desfeito. O vento aumentou, o que dificulta o controlo das chamas. Mais bilhas de gás rebentam. Nas ruas, pessoas em pijama têm nas mãos as poucas coisas que conseguiram salvar das suas casas em chamas. No edifício da União de Bancos, funcionários transportam pilhas de papéis dos arquivos para a rua.

9h00: O incêndio é delimitado: não transpõe a Rua do Ouro, mas avança na colina do Chiado. Os primeiros edifícios da Calçada do Sacramento foram consumidos pelo fogo, e os primeiros dois edifícios da Rua Garrett estão em chamas. Chegam mais canhões de água ao local.

9h05: Ponto de situação: um morto, sete feridos, dois dos quais em estado grave, centenas de casas e estabelecimentos comerciais afetados.

9h10: Pressão da água normal, e a EPAL afirma que poderá ser aumentada, se necessário. O Presidente da República faz o seu primeiro comentário: "Isto é uma catástrofe". Primeiras notícias de que os bombeiros estão a conseguir controlar o fogo. Ainda não chegou à Escola Veiga Beirão, no Largo do Carmo.

9h15: Praça do Município e Rua Nova do Almada sem telefones. O Tribunal da Boa Hora e os bancos estão encerrados. Segundo informações, a Rua Nova de Almada está cheia de destroços. Fachadas de vários prédios ruem. A água escorre pelas ruas. A Rua Ivens ainda sem fogo na parte inferior. O incêndio encontra-se a meio da Rua Garrett. O vento sopra em direção à Praça do Município. Famílias inteiras nas ruas, pessoas a chorar. No Largo de Camões, centenas de pessoas olham ansiosas para as chamas, na esperança de que o fogo não avance. Não se veem helicópteros, e os bombeiros queixam-se de falta de meios. As chamas atingem dimensões nunca vistas.

9h35: Os serviços de incêndio do aeroporto chegam ao local.

9h30: Elementos da Polícia de Intervenção e da Cruz Vermelha chegam à zona em chamas. A força aérea e o exército ainda não interviram.

9h55: Comunicações, gás e eletricidade completamente cortadas na zona da Baixa. Mário Soares afirma: "É um incêndio de proporções incalculáveis, de uma gravidade espantosa. É um desastre nacional". Na Calçada do Sacramento até à Escola Veiga Beirão, tudo arde. É neste momento o grande fogo do incêndio. A Rua Ivens ainda não foi atingida, e pensa-se que não o será, pois os bombeiros conseguiram controlar o fogo naquela zona.

10h00: Ao fim de cinco horas, o incêndio parece começar a estar controlado.

10h05: Reunião de emergência no Serviço Nacional de Proteção Civil entre os seus dirigentes, os responsáveis pelas companhias de bombeiros e médicos. Neste "gabinete de crise" coordena-se o combate e o rescaldo do incêndio, e discute-se que apoio dar às vítimas.

10h18: Os bombeiros afirmam que o incêndio está semi-controlado. Tanto na Rua Nova do Almada como na Rua do Crucifixo, fogo controlado. O lado esquerdo daquela primeira rua não chegou a ser atingido. Rua do Carmo: apenas um monte de escombros. As chamas são já mais baixas.

10h20: Vários bancos encerrados, incluindo alguns serviços do Banco de Portugal. Devido ao incêndio, não houve sessão na Bolsa de Lisboa.

10h25: Só na Calçada do Sacramento o fogo está ainda ativo. Os vereadores da Câmara Municipal de Lisboa encontram-se reunidos. Os responsáveis pela edilidade pedem às populações atingidas que se dirijam às respetivas Juntas de Freguesia para receberem informações sobre o seu realojamento, possivelmente para os Centros de Realojamento Municipal que, segundo um elemento da Câmara, "serão rentabilizados ao máximo". Os bombeiros concentram-se agora na Calçada do Sacramento e Largo do Carmo, onde tentam controlar o sinistro para que não chegue à Escola Veiga Beirão.

10h46: É já a altura do rescaldo. O único fogo de incêndio ainda em risco é o quarteirão onde fica a Escola Veiga Beirão. O quartel do Carmo e as ruínas do Carmo estão salvas do fogo. Mário Soares afirma: "Vi cenas emocionantes de pessoas que perderam os seus haveres, as suas casas. Felizmente, parece que não há graves acidentes humanos".

11h00: Os bombeiros pedem agora alimentos, além do leite. Ouvem-se ainda explosões, possivelmente de botijas de gás.

11h05: Os bombeiros dizem que, salvo eventualidades imprevisíveis, o sinistro está circunscrito. Rescaldo: 14 feridos e um morto.

11h55: A Escola Veiga Beirão não ficou destruída, como se chegou a temer. Está inundada de água, e materiais foram retirados do seu interior. No entanto, está em condições de funcionar proximamente. As viaturas dos bombeiros dirigem-se para a Rua Nova do Almada, onde parece que se reavivam focos de incêndio."

Infelizmente o drama ficou longe de terminar nessa manhã. No dia seguinte escreveria o "Correio da Manhã": "Cerca das 19 horas, ainda os bombeiros combatiam as chamas que com voracidade iam destruído o prédio da Casa Batalha (...) A reportagem do CM foi encontrar o proprietário da Casa Batalha encostado a uma parede fronteira à loja e, abordado por nós, afirmou: 'Não consigo pensar. Em meia hora já tirei mais de 20 fotografias mas isto está difícil'. A propósito da dificuldade em extinguir o fogo na casa de que é proprietário, o mesmo adiantou-nos: 'Ainda houve um empregado meu que retirou três bilhas de gás da moinha, senão ainda seria pior'."

Apesar dos esforços, os bombeiros não conseguiram controlar as chamas da Casa Batalha, que ficou destruída nos reacendimentos que se fizeram sentir durante a tarde. A joalharia juntou-se assim aos Armazéns do Chiado, Estabelecimento Eduardo Martins, Pastelaria Ferrari, Discoteca Valentim de Carvalho, entre outros estabelecimentos comerciais que arderam nesse dia. Cerca de duas mil pessoas perderam os seus postos de trabalho.

O incêndio fez duas vítimas mortais

No dia do incêndio, já se sabia que havia uma vítima mortal a lamentar. Escreveria o "Correio da Manhã" no dia seguinte: "Por essa altura, também, deu-se o único caso mortal desta tragédia, quando um sexagenário pereceu, no momento em que os bombeiros o tentavam retirar de sua casa, num edifício que dá para a Rua do Carmo. Os soldados tentavam retirá-lo, por meio de cordas, quando surgiu uma labareda mais forte. O indivíduo desequilibrou-se e tombou de cabeça. A vítima mortal ainda não foi identificada".

Cinco dias depois do incêndio, a 30 de agosto, o "Diário Popular" dava um rosto a essa vítima mortal. Não tinha 60 anos mas sim 78. Chamava-se Mário Ramires Vidal e era uma eletricista reformado do Arsenal da Marinha, que vivia no número 43 da Rua do Carmo, num quarto andar. A mulher de 76 anos estava com ele na habitação. Ficou ferida, mas sobreviveu.

Cinco dias depois do incêndio, a 30 de agosto, o 'Diário Popular' dava um rosto a essa vítima mortal

Cinco dias tinham-se passado. A vítima mortal já tinha um rosto, mas a família desesperava pela ausência do corpo para fazer um funeral. "Já corri tudo. Falei com os bombeiros, fui ao Instituto de Medicina Legal e nada. Ninguém me sabe dizer onde está", disse ao "Diário Popular" o irmão do falecido. O corpo ainda se encontrava nos escombros. Só seria retirado 58 dias depois do incêndio.

Por esta altura, os jornais ainda estavam longe de saber que haveria outra vítima mortal — era apenas um da cerca de uma centena de feridos do incêndio. No início de setembro, porém, o bombeiro Joaquim Ramos, 31 anos, não resistiu aos ferimentos. Com 85% do corpo queimado na sequência do combate às chamas na Rua do Carmo, acabou por morrer no Hospital de São José.

As suspeitas de fogo posto e as estranhas coincidências

"'Nem sequer se sabe se foi fogo posto ou uma desgraça surgida de um simples curto-circuito em prédios de pouca segurança, em mau estado e cheios de matérias altamente inflamáveis'", disse ao "Diário Notícias" uma fonte do bombeiros. Na edição que chegou às bancas do dia a seguir à tragédia, o jornal mostrava uma foto aérea do Chiado. "Só restam paredes do velho Chiado", lia-se no título. Foram 12 páginas dedicadas ao incêndio, o mesmo que o "Diário Popular" apresentou nesse dia. O "Correio da Manhã" foi mais longe, com um total de 15 páginas.

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Todos eles falavam sobre as suspeitas de fogo posto. Manuel Martins Dias, dono dos Armazéns do Grandella, era um dos principais suspeitos: nas vésperas do incêndio no Chiado, o empresário tinha sido acusado de burla e fogo posto num armazém do grupo em Tavira, em 1983. Acabou por ser libertado sob caução na quarta-feira à noite. "Coincidência ou não, cerca de quatro horas depois violento incêndio deflagrou exatamente nos armazéns Grandella, levando a destruição a meia Baixa pombalina", escreveu o "Correio da Manhã".

Mas a Polícia Judiciária desvalorizava estas coincidências. "Fontes da Polícia Judiciária garantiram ao nosso jornal que a situação do Chiado nada tem que ver com a ocorrência de Tavira e que aqueles administradores não estão a ser procurados pelas autoridades, conforme anteriormente fora dito", escreveu o "Diário de Notícias".

Página do 'Correio da Manhã' no dia a seguir ao incêndio

"Aparentemente, a suspeita de fogo posto avoluma-se", dizia o "Correio da Manhã" na edição de 26 de agosto. "(...) resta então saber quem foi o seu autor e quais as suas motivações. Aqui levantam-se então outras hipóteses: a de ter existido mão criminosa ligada à empresa ou dos armazéns terem sido simplesmente assaltados por desconhecidos, os quais, por qualquer precipitação poderiam ter pegado o fogo a qualquer material inflamável".

Eram tudo hipóteses — a Polícia Judiciária nada tinha confirmado, além de que Manuel Martins Dias, dono dos Armazéns do Grandella, tinha ido à Polícia Judiciária prestar declarações. "Achámos por bem vir voluntariamente informar a polícia de todos os passos que o senhor Martins Dias deu desde que abandonou o Tribunal Criminal, às 23 horas de quarta-feira até que hoje [25 de agosto], logo pela manhã, soube da terrível tragédia", disse o advogado do empresário ao "Correio da Manhã".

Manuel Martins Dias nunca chegou a ser formalmente acusado.

"Nero deitou fogo a Roma e Abecasis a Lisboa"

"Foi um inferno. Todo o quarteirão da Rua do Carmo ardeu em três horas e os estouros das bilhas de gás e das montras partidas pelo calor pareciam um bombardeamento. O choro convulsivo de alguns populares misturava-se com as pragas de outros. 'Nero deitou fogo a Roma e Abecasis a Lisboa' — ouvimos um bombeiro graduado dizer".

As palavras são do "Diário Popular". Nuno Krus Abecasis era, à época, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Nesse dia, tanto a população como os próprios bombeiros teceram duras críticas às obras realizadas pelo autarca uns anos antes. Nessa mesma altura, recordou o jornal, a Associação dos Arquitetos Portugueses opôs-se ao projeto, "apontado os defeitos que agora são apontados na deficiência sentida no combate às chamas". É que a rua, já na altura pedonal, era extremamente estreita. A colocação de canteiros de flores de betão e de assentos ao longo da rua não ajudou.

A "estreiteza da Rua do Carmo", escreveu o jornal, "não permitiu a utilização nesta área de um autotanque, transportando mil litros de água, o que terá levado a que o fogo se propagasse às áreas vizinhas do Grandella, onde tudo terá começado." Ao "Correio da Manhã", Abecasis respondeu: "O disparate é voluntário".

As histórias dramáticas de quem viveu o incêndio de perto

"Sabe o que é preciso para uma mãe entregar um filho a alguém que vai escalar uma parede, dizendo-lhe 'pelo menos salvem-no a ele?". A história é partilhada por Luis Montez, que vivia há oito anos na residencial Europa. "Eram 3h45 quando um inglês me bateu à porta, gritando fire. Achei um grande descaramento acordar-me àquela hora para pedir lume, mas o homem continua a bater e a gritar fire. Perguntei-lhe: 'Onde?'. 'Na casa em frente'."

Eram od Grandella que estavam a arder. Tal como Luis Montez, vários populares juraram a pés juntos aos jornais que o fogo começou bem antes das cinco da manhã. Ao "Diário Popular", José Fernando, empregado na boite Loucuras, disse: "Eu e o meu irmão fomos os primeiros a avisar o Batalhão de Sapadores Bombeiros, às 4h30 da madrugada do fogo do Grandella". Os irmãos encontravam-se "a apanhar ar fresco na varanda da casa do pai, na Rua do Ouro, quando viram sair fumo dos telhados dos armazéns Grandella".

"'Telefonámos logo ao Batalhão de Sapadores Bombeiros mas não responderam senão à segunda tentativa e demoraram quase meia hora a comparecer no local do fogo".

A desgraça poderia ter sido muito maior se aquela zona não fosse sobretudo comercial, realçaram vários jornais. Ainda assim, muitas pessoas ficaram desalojadas e perderam tudo naquele dia fatídico. "'A minha filha ia casar dentro de um mês e o seu enxoval, que levou tantos anos a juntar, ardeu todo. Não há direito de uma coisas destas'", disse ao "Correio da Manhã Celeste Martins, de 55 anos, que morava no número 14 da Calçada do Sacramento.

"Quadros humanos compungiam quem passava. Uma mulher sentava-se no passeio abraçada a três cães, completamente transtornada. Maria Fernanda Monginho, 54 anos, revela que trouxe os animais de uma clínica veterinária onde trabalha. 'Havia lá sete cães e dez gatos, de clientes, mas eu e o doutor conseguimos trazê-los todos para a rua'", escreve o "Correio da Manhã".

Recorte de jornal do 'Correio da Manhã', que mostra um morador a afastar-se das chamas com a televisão nas mãos

Muitas pessoas deixaram tudo para trás nesse dia. Outros, tentaram desesperadamente salvar tudo o que conseguiram. Foi o caso de um homem que foi fotografado pelo "Correio da Manhã" com uma televisão nas mãos. "Perto, passa um homem com uma televisão nos braços, tudo o que pode resgatar do lar em chamas."

Nos dias que se seguiram, o incêndio do Chiado continuou nas capas dos jornais. No total, o "Correio da Manhã" e o "Diário de Notícias" tiveram o tema na primeira página durante seis dias; o "Diário Popular" durante sete; e o "Diário de Lisboa" oito.