Foi num hospital em Paris que o realizador Héctor Babenco junto da mulher, a atriz Bárbara Paz, começou a criar aquilo a que, naquele momento, deu o nome de registo de dor. O casal já tinha decidido que iria registar em imagens mais uma batalha que o cineasta estava a enfrentar contra o cancro, doença que, com idas e vindas, o perseguia há 30 anos. A câmara acompanhava-os no hospital, em casa, em todo o lado. Mas tanto um como outro sabiam que aquele projeto ainda embrionário era muito mais do que um simples registo.
Quatro anos passados desde a morte do realizador de "Carandiru", "Pixote, a Lei do Mais Fraco" ou "O Meu Amigo Hindu", o resultado do trabalho do casal está cá fora e na ficha técnica tem Bárbara Paz como realizadora, marcando a sua estreia na direção de uma longa metragem. E as suspeitas confirmam-se. Além de representar a última batalha de uma guerra contra o cancro, “Babenco — Alguém tem que ouvir o coração dizer: Parou” é o documentário que imortaliza o amor e a amizade entre o casal.
É também uma ode ao cinema, que aqui é muito mais do que a arte de contar uma história com imagens: é o antídoto que, durante décadas, o manteve vivo e que, desde o primeiro diagnóstico, tantas vezes o permitiu transformar o seu sofrimento em obras. É uma homenagem à sua vida, ao seu trabalho e à sua força, na forma de um poema com imagens e a preto e branco, onde o mestre é o protagonista e a pupila é quem dirige.
Vencedor do prémio para Melhor Documentário Sobre Cinema na 76.ª edição do festival de cinema de Veneza, o documentário de uma hora é também uma compilação visual daquilo que vem escrito no livro "Mr. Babenco“, que resulta de um conjunto de transcrições de conversas entre o casal. Através de perguntas que ela lhe foi colocando, ele foi construindo as suas memórias, desde a infância na Argentina à vida no Brasil (país onde se naturalizou na década de 70), ao cinema e ao cancro.
Foi a propósito deste livro que a atriz — que acompanhou os últimos anos de vida do cineasta, que morreu em julho de 2016 — veio a Portugal para participar no Folio — Festival Literário Internacional de Óbidos, local onde lançou a obra de 180 páginas, criada com a chancela da editora Noz, na terça-feira, 15 de outubro.
Num hotel no Príncipe Real, em Lisboa, a MAGG sentou-se com Bárbara Paz para conversar sobre estas obras.
Ganhou o prémio de Melhor Documentário Sobre Cinema, em Veneza. Como é que ele reagiria a esta distinção?
Ele estava junto, comigo. Acho que ele recebeu o prémio comigo. Ele nunca tinha recebido um Leão de Ouro, que é algo muito importante. Eu sinto que foi pelos dois, mas mais para ele. Foi muito emocionante mesmo. De uma energia inacreditável. Parecia que ele estava regendo tudo lá de cima.
Tanto o livro como o documentário são o congelamento do amor que tinham um pelo outro. Mas é também um retrato do papel que o cinema tinha na vida dele.
Exatamente.
É uma história verdadeira, sem ser contada na terceira pessoa. E é ele mesmo que está contando a sua história"
Como é que se conheceram?
A gente se conheceu na feira de literatura de Paraty, onde ele estava contando as histórias, dos tempos em que era figurante, de quando ele era adolescente. É muito louco porque, anos depois, estou eu contanto a história dele — a história que ouvi ele contar na primeira vez que o conheci. Tínhamos um amigo em comum, uma outra cineasta que é a Marina Person, que nos apresentou. Aí, ele falou “Bárbara, como o poema de [Jacques] Prévert." E eu comecei a recitar o poema. Foi assim. (risos) Começou com poesia.
Apaixonaram-se logo?
Foi um amor que se construiu em cima de amizade. A amizade é a base de tudo. A gente fortificou bastante isso.
Porque é que acha que o documentário foi o vencedor?
A gente estava competindo com filmes muito bons, sobre pessoas muito importantes no cinema, como [Federico] Fellini ou [Andrei] Tarkovski. Acho que [os jurados] escolheram o filme mais pessoal, que não é só um relato jornalístico, que é algo que vem de dentro, que é um olhar de amor, com começo, meio e fim. Isso mexe com as pessoas, porque o amor toca toda a gente. É uma história verdadeira, sem ser contada na terceira pessoa. E é ele mesmo que está contando a sua história.
Disse numa entrevista que o mundo precisa de mais amor.
O mundo está muito violento hoje. Está com muita raiva. Acho que a gente tem de acalmar, baixar a guarda. No Brasil, a gente está vivendo uma guerra cultural e para o cinema, principalmente, está sendo desastroso. Mas a gente vê que o mundo inteiro está assim. Foi tudo muito acelerado — os meios de comunicação, a internet. A gente tem acesso a tudo muito rápido. A gente tem que estar ao mesmo tempo em todos os lugares, a gente tem de saber de tudo, a toda a hora. Isso vai gerando um afastamento da essência humana. Se não houver um abrandamento, você acaba entrando num furacão.
Muitas opiniões e todas muito absolutas?
É, exatamente. A internet é uma terra sem dono. Você fala, você não pensa. Você escreve, solta e acha que é dono de tudo e de todos. Isso vai gerando uma raiva, um ódio. É uma guerra mesmo. Por um lado a internet foi muito boa — o avanço é sempre positivo e a evolução é necessária — mas daqui a pouquinho vai estourar uma coisa maior.
No documentário, Héctor Babenco fala sobre como as coisas só são bonitas quando nos lembramos delas. Este documentário serve para guardar a beleza das vossas memórias também?
Sem dúvida. É um filme sobre memória. Nessa parte, ele fala que naquela época [no tempo das memórias] a gente não tem noção de que aquilo que estamos vivendo é tão bonito que a gente só sabe que é bonito porque a gente se lembra das coisas — e diz: "Que pena que a gente não lembrava isso naquela época." Eu tentei editar algo com pinceladas. O livro é o bruto desse documentário: tem lá os pensamentos sobre a infância dele, sobre ele ser judeu, sobre as dificuldades que ele passou, sobre onde começou tudo, que foi a palavra, através da literatura.
Quando era novo, ele dizia que estava doente para ficar em casa a ler.
Era. Olha que loucura.
Mas este filme, além de ser sobre o amor, traz para cima da mesa a ideia da nossa própria finitude. Teve de acompanhar a doença, enquanto trabalhava sobre ela. Quando é que se é pragmático ao mesmo tempo que se tem de lidar com um momento tão difícil?
Na verdade, a gente não estava a fazer algo sobre o fim. A gente sabia que a coisa [a morte] estava próxima, mas ainda podia demorar — podia demorar cinco anos, dez anos. Ele sempre teve o fantasma da morte com ele a vida inteira. Então, ele brincava com isso. E era isso que a gente estava retratando.
Mas não estávamos a lidar com a palavra “fim”. A gente sabe que na vida o fim é o único facto absoluto. Mas se for pensar nisso, você não vive, você não constrói, você não cria. Então, a gente estava fazendo um jogo com a morte, com essa brincadeira do filmar, do estar vivo.
Como é que tudo começou?
A gente estava assistindo um filme muito forte. Ele não estava tão mal quanto a personagem do filme. Mas ele falou que queria filmar as mortes dele: “Quantas vezes já morri, como eu quero morrer.” Eu comecei a gravar e não houve tempo para a gente tornar isso ficção. Ele partiu muito rápido, muito antes do que a gente imaginava. A gente estava combinando ir para a Argentina, para Los Angeles, a gente ia resgatar essa memória, mas não deu tempo. Eu fiquei sozinha com o filme, entendendo o que é que ia fazer com o que tinha captado.
Quanto tempo é que demorou a captar as imagens todas?
Foi muito alternado. A primeira gravação foi em 2009/2010, mas daí eu parei — fui fazer os meus trabalhos de atriz e ele foi fazer outras coisas. A gente intensificou nos últimos três anos, quando voltou o câncer com força. Nessa altura, ele fez também o último filme dele “O Meu Amigo Hindu”, mas eu continuei filmando o documentário, porque ele falou que queria que eu captasse isso, tanto que eu fiz o making off para ter gravações para o documentário.
Eu comecei a gravar e não houve tempo para a gente tornar isso ficção. Ele partiu muito rápido, muito antes do que a gente imaginava"
Mesmo doente, ele nunca parou de trabalhar. O cinema era o antídoto dele?
Todos os filmes que ele fez a partir dos 38 foram antídotos, porque ele filmava para sobreviver. Ele inventava sempre outro filme para poder sobreviver, ficar vivo, poder lutar. Ele fala no documentário: “Eu não sei o que vem primeiro: se filmar ou estar vivo.” E essa é a beleza. Era isso que eu queria retratar: esse homem lutando contra a morte. Pelo amor ao cinema, pelo amor à vida, ele fazia as duas coisas, driblando. Foram muitos anos. Foram 30 e poucos anos doente, entre idas e vindas, melhoras, mas sempre lutando como um leão. Isso era de uma beleza, tão único, eu nunca tinha visto uma pessoa lutando tanto. É quase uma raiva, um ódio, em que ele diz: “Eu não vou. Ninguém me vai deter.” E conseguiu.
Dentro do filme há também parte de uma curta que eu fiz com o doutor Drauziu Varella, que é muito famoso. Era o médico dele e amigo. Não entraram mais partes, porque eu não inclui entrevistas. Mas ele fez um negócio tão lindo que eu transformei aquilo num filme só: ele conta a história dos dois, da doença, da amizade, para ele [Héctor Babenco] já morto. Ele fala que o Héctor dirigia a doença, como um filme. Ele dirigia tudo. Se ele não dominasse aquilo, ele ficava refém e ele isso não conseguia.
Como é que foi rever tudo e trabalhar com todo aquele material?
No começo foi difícil, porque eu não tinha noção do que eu tinha filmado. Não tinha lembrança. O primeiro ano foi bem complicado, mas depois você tem de encarar como uma história, porque senão você não faz nada, você não termina. Ele estava vivo ainda, ficava escutando ele em casa. Isso é bem louco, porque ele partiu e noutra semana eu já estava trabalhando na edição do filme.
Ajudou no processo de luto?
Não gosto da palavra luto. Já lidei com muitas mortes a minha vida toda. Eu acho que a gente tem de continuar vivendo, tem de continuar lutando. Eu prometi para ele que ia terminar o filme, que ia terminar o livro. Então, eu precisava de acabar isso rapidamente, antes que ele fosse esquecido. Era isso que ia na minha cabeça. Mas demorou. Foram três anos — para mim, foi como tivessem passado três meses.
Foi a sua primeira experiência como realizadora de uma longa-metragem.
É, antes já tinha feito uma curta. Também fiz alguns programas para televisão no canal Brasil, que é o canal brasileiro de cinema.
A primeira longa não podia ter sido mais íntima.
É. O Héctor sempre me dizia que eu tinha de fazer o primeiro para depois fazer o segundo. Aconteceu. Nasceu. E nasceu bonito. Ele não podia mais me dar filho, por isso a gente sempre falava que esse [documentário] ia ser o nosso filho. E nasceu um leão, um leãozinho, lá em Veneza.
Qual é que foi a primeira cena que gravaram?
Foi em Paris, uma cena no hospital. Uma em que ele olha para a câmara e diz que quer registrar a dor. Foi naquele dia que, de facto, comecei a registar.
O que é que mudou em si?
Ele mudou muita coisa na minha vida. Ele deu um significado maior, me deixou a maior herança que é a confiança, a coragem.
E agora?
Agora vou continuar. Já estou preparando o meu próximo roteiro. Vou trabalhar mais em direção [realização], mas eu nunca vou abandonar o meu trabalho de atriz. Vou fazer em paralelo, porque é possível fazer as duas coisas. Eu não consigo não ser atriz, porque senão eu não vou conseguir respirar — vou enlouquecer.
Neste documentário, ele professor e protagonista ao mesmo tempo.
Exatamente. Ele me passou o bastão. Ele falava que me estava dando o passaporte dele.
No documentário, ele fala sobre uma espécie de fascínio que tem por outcasts, por pessoas mais desenquadradas. Era uma projeção dele próprio?
É. Ele estabeleceu residência aos 32 anos no Brasil, mas o Brasil sempre falou que ele era um realizador argentino. No fundo, ele era um diretor brasileiro. Ele fez todos os filmes no Brasil, com co-produção, mas fez lá. Então, havia uma certa bronca com o facto de na Argentina ele ser brasileiro e de no Brasil ele ser argentino. Havia essa falta de raiz própria, de identidade própria. Esse era um aspeto muito latente nele.
No fundo, ele está em todos os filmes deles?
Ele está em todos os filmes dele. Ele botava sempre um pouco dele. Nunca fez nenhum filme sobre o outro. Ele só fez os filmes que saiam de dentro dele, das histórias de que ele gostava, dos livros que ele comprou, que ele quis adaptar, com que ele se identificava. Chegava muito roteiro de Hollywood para ele, ele ficava um mês estudando e, de repente, falava “não vou fazer.”
Qual é que foi a última cena que filmaram?
Foi no dia da morte dele. Só que essa cena não entrou. Era muito forte. Foi de manhã. Ele estava mais ou menos bem, em morfina. Eu perguntei para ele se podia ia fazer uma peça, porque eu estava com um trabalho no teatro, e ele falou para eu ir. Ele faleceu quando eu estava no palco. Loucura. Ele falou que eu não ia estar junto quando acontecesse.
Acha que pode ter sido uma decisão dele?
Com certeza. Ele sabia que eu não ia aguentar.