A ilha Terceira está cheia de preciosidades. Há a Gruta do Natal, feita de lava solidificada. Há o algar do carvão, dentro da caldeira Guilherme Moniz, com formações geológicas impressionantes e com um enorme buraco por onde já passou lava. Há as queijadas D. Amélia, um doce típico e regional, há os pratos de alcatra, cozinhada tão lentamente que se desfaz à primeira garfada. Há os sucessivos portos junto ao mar, lindos como é aliás costume neste arquipélago português.
As relíquias desta terra banhada pelo mar, onde a MAGG passou três dias, estão por toda a parte: nos campos, nos restaurantes, junto ao mar, nas ruas. No número 56 da Rua Direita, uma das mais famosas de Angra do Heroísmo, há mais uma: a mercearia com quase dois séculos de história, que é acompanhada pela mesma família desde a sua criação. O cheiro das especiarias chama-nos a atenção, ainda antes de cruzarmos as escancaradas portas de madeira. Lá dentro, as paredes estão preenchidas por prateleiras onde se expõem diversos tipos de produto, desde conservas, chás, vinhos, sal ou ervas aromáticas. O balcão, grande e corrido, impõe-se nesta que é a mercearia Basílio Simões & Irmãos. Nele está uma balança, aquela em que vimos Vital Brito do Rio pesar canela, para depois ser vendida ao cliente, na medida exata que ele desejou. Atrás há mais especiarias, a que se juntam as amêndoas ou frutos secos. A clientela entra e não fica sozinha. É atendida, com a atenção que merece, como aqui sempre se fez.
A Basílio Simões & Irmãos é uma mercearia que tem tanto de raro como de tradicional. Pouco mudou no seu aspeto desde os tempos em que nasceu. Está ali desde 1860, século XIX, altura em que António Pedro Simões, marinheiro, deixou o Flor do Angra, o barco que durante anos navegou, em rotas que faziam o caminho entre a Ericeira (de onde era natural) e a América do Norte e Sul. Não foram os ventos ou o mau tempo que o levaram à Terceira. As visitas a esta ilha eram propositadas, porque era aqui que ele se “abastecia de água e de outros viveres”, como explica à MAGG Maria Serafina Simões, 76 anos, bisneta do marinheiro que fundou esta casa comercial.
Alta e com um casaco que condiz com a saia, é, em conjunto com o irmão, de nome igual ao fundador, a quinta geração que cuida do espaço, estando responsável pela parte financeira do negócio mais antigo da Rua Direita. “Ali temos o barómetro do navio”, diz, enquanto aponta para o instrumento feito em madeira, que servira, noutros tempos, para medir a pressão atmosférica do barco de carga — mas que também transportava passageiros — em que viajava António Pedro Simões.
Nasceu e viveu no prédio “defronte", e como os bisavós, pais, tios, primos e sobrinhos, cresceu atrás daquele balcão e conhece bem a história da sua família. Também já fez atendimento ao público. Estar em contacto com as pessoas era também uma das coisas que “mais gostava de fazer.” Mas sempre teve inclinação para os números. Tanto que se formou em finanças, em Lisboa, numa altura em que esta era matéria para homens.
A história da mercearia passa de geração em geração. Sobre o primeiro António Pedro Simões, aquele cujo retrato está pendurado na sala onde se fazem as contas, relata-nos que era um homem “com enorme visão e cultura”, sem esquecer os contactos e conhecimento.
“Fez o prédio dentro da traça da cidade. Embora este seja do século XIX, não destoa nada da arquitetura local”, refere. Construído com “boas” e “compridas” madeiras vindas da América do Norte, tem um travejamento feito com pinho resinoso “de lado a lado”, tudo fatores que influenciam a resistente construção. “Tem um teto muito bem estruturado, de tal maneira que quando houve o sismo [em 1980, matou 73 pessoas], o prédio pouco sofreu”, diz. “A armação do teto tem muita influência na oscilação. Eu moro ali defronte e a situação foi diferente, precisamente devido aos telhados.”
O aspeto e os materiais mantêm-se fiéis ao original. “É uma questão de homenagem e cultura. Fomos criados com o conhecimento de as portas serem bonitas e muito boas. Não íamos substituir pelos alumínios, como muitos substituíram.”
No início vendia-se essencialmente sal para efeitos de conservação, porque naquele tempo os frigoríficos ainda não existiam. “Dava imenso trabalho a desembarcar, porque ele vinha a lastro no navio, era carregado em sacas de 60 ou 40 quilos, que, depois, vinham em lanchas, porque os barcos não chegavam aos cais”, explica. “Depois, eram despejados aqui dentro."
Mas também se vendiam outros produtos básicos, como farinha, arroz ou vinho. “Estava armazenado em pipas. Vendia-se ao litro”, conta. Nesta casa ainda se vende à medida. As compras fazem-se a granel, tanto que vemos farinhas, amêndoas e outros bens alimentares guardados de forma a que possam depois ser pesados na balança e vendidos. As especiarias sempre se comercializaram muito, até porque na cultura gastronómica açoriana esta é uma componente que atribui muitos dos sabores aos pratos.
Mas se foi António Pedro que fundou esta casa, qual a origem do nome Basílio Simões & Irmãos? “O meu bisavô casou e teve sete filhos. Três continuaram com o negócio, mas depois um faleceu e acabou por ficar em nome de dois, do Basílio e do Álvaro.”
Foi Basílio, filho do marinheiro fundador e avô de Maria Serafina Simões, que solidificou o negócio a que inicialmente se dava o nome de Loja do Senhor Capitão. “Era uma pessoa muito austera para todos, muito meigo para os netos. Era austero, mas não era tirano. No funeral dele — eu não estava cá, porque estava a estudar em Lisboa — houve duas ou três pessoas que disseram assim: ‘O senhor Basílio nunca pôs ninguém no fundo’”, o que significava que, mesmo quando havia vendas a crédito e as pessoas não conseguiam pagar, ele não deixava ninguém ir ao fundo.”
O irmão de Serafina, também António Pedro Simões, dedicou-se exclusivamente ao negócio desde cedo e é hoje o gerente. “Deixou de estudar [Engenharia, em Coimbra], porque um tio que estava aqui a trabalhar adoeceu e precisávamos de mais uma pessoa e ele veio para aqui. Era prioritário amparar o negócio”, relata. “É uma pessoa muito sociável e nesta área aprende-se muito com os contactos.”
Aquele balcão sempre foi frequentado pela família. Depois de António Pedro Simões navegador, esteve Basílio, depois o pai e tio de Serafina e, agora, além dos irmãos, estão ainda um sobrinho e um primo. Um dos filhos de António Pedro Simões, o irmão de Serafina, está noutra parte do negócio desta família, que se refere às rações. “Também temos uma empresa de moagem de farinha de trigo”, explica. Na parte de produção própria, que se vende naquela casa, destaca ainda as amêndoas “muito apreciadas pela clientela”.
Ainda pudemos ver outros registos das memórias deste espaço. De capas e lombas duras, abriu-nos livros com dados de contabilidade da Basílio Simões & Irmãos, datados de 1926.
A história desta casa foi passando de geração em geração, bem como o próprio negócio. António Pedro Simões, fundador, “não morreu com muita idade", sendo que teria "pouco mais de 60 anos”. Mas deixou o legado, aquele que foi sendo trabalhado pelos Antónios e Basílios que vieram depois. Os irmãos Simões são a quinta geração, mas já há uma sexta atrás do longo balcão de madeira. “Mantemos sempre o negócio em família”, termina Serafina.
* A MAGG viajou para a Terceira a convite da operadora turística Soltrópico, que disponibiliza um pacote de três dias e duas noites, que inclui voo TAP ou Sata, transfer e alojamento em regime pequeno-almoço, com preços a partir de 161€.