"O isolamento das famílias é necessário para a contenção da COVID-19. Mas pode aumentar o risco de violência doméstica. Se precisar de ajuda, e não souber o que fazer, ligue 800 202 148."
Foi este o alerta deixado pela secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. Em causa está o confinamento gerado pela pandemia COVID-19, que deixa numa situação mais vulnerável as vítimas de violência física e psicológica. A preocupação estende-se a outros países que vivem em situação de calamidade, até porque temos o exemplo da China. O primeiro país a entrar em quarentena, deixa antever aquilo que poderá vir aí: os relatórios de violência doméstica duplicaram desde que o isolamento foi imposto à população.
Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vitima, explica à MAGG que, por enquanto, "não tem havido aumento de contactos para a linha de apoio, bem pelo contrário: tem havido uma diminuição, com uma média a nível nacional de cinco a seis chamadas para a linha de apoio." O normal é de 30 a 40 chamadas diárias.
Mas a longo prazo o mais provável é o cenário mudar. No âmbito da violência doméstica, aquilo que se vive agora é uma "tranquilidade aparente". É natural que isto aconteça: "As pessoas estão assustadas, ansiosas e, neste momento, no topo das suas prioridades, está o COVID-19 e todos os esquemas de reorganização de vida, desde as compras, ao trabalho, às novas rotinas", explica.
Estamos a ser confrontados com algo que é completamente novo, o que exige a todas as famílias uma nova adaptação. No entanto, com o passar do tempo, não só os padrões de violência regressam, como podem piorar.
"Do ponto de vista psicológico, o confinamento gera fadiga emocional ou psicológica — ou seja, estamos fechados em casa com a mesmas pessoas durante muito tempo, isso faz-nos ficar cansados e há um ponto em que não aguentamos."
Isto é normal e ninguém está imune a este fenómeno de exaustão emocional. No entanto, quando uma família já tem um quadro de violência associado, este tende a agravar-se: "Poderá gerar situações mais exuberantes de violência doméstica", refere.
Em situação de isolamento, a vítima consegue ser mais controlada — as saídas à rua são muito curtas e fáceis de controlar, assim como o telemóvel ou o computador. Como diz Daniel Cotrim, tem a sua "liberdade muito mais cerceada do que antes":
E não são só as mulheres vítimas de violência doméstica que correm riscos. "As crianças podem ser as primeiras vítimas deste stresse, porque estão constantemente em casa, algo agravado pelo facto de a violência contra as crianças ser entendida quase como uma coisa natural", explica. Depois, há as pessoas portadoras de deficiência, que estão com os cuidadores e que são um grupo muito vulnerável até porque estão mais "invisíveis" ao resto do mundo.
"Da mesma forma que estamos unidos a cuidar uns dos outros, temos de estar unidos para perceber o que se passa à nossa volta. Se antes contávamos até dez até sabermos o que fazer, agora não podemos esperar", alerta. "Não nos podemos esquecer dos números de vítimas mortais de violência doméstica do ano passado."
Daniel Cotrim chama ainda a atenção para outra possibilidade que pode nascer em contexto de estado de emergência e consequente isolamento: "É possível que no tal de momento de fadiga emocional que famílias que costumam ser bem geridas, que são suficientemente funcionais, tenham quadros de violência uns com os outros, gerados pelo stresse de convivência e do confinamento."
Para as vítimas e para quem está à volta. O que fazer numa situação de violência doméstica?
Além de recorrer às autoridades e linhas de apoio (que continuam a funcionar), uma vítima ou potencial vítima de violência doméstica deverá, segundo Daniel Cotrim, adotar alguns "mecanismos de proteção". Por exemplo: jovens que sejam alvos ou assistam a episódios de agressão podem, através das redes sociais, pedir a um amigo para ligar ao 112 e, assim, alertar as autoridades; tendo em conta que os passeios à rua são muito curtos, a vítima pode combinar também uma palavra de código com o vizinho — quando grita aquela palavra ("fogo", por exemplo) é porque vai, está ou potencialmente irá ocorrer uma agressão.
"Temos de estar muito atentos", alerta Daniel Cotrim. "Há inclusivamente uma campanha muito boa lançada pela secretaria de Estado, com um folheto que pode ser afixado nos prédios, que além da sua linha de apoio, tem o número do 112 e da APAV. Também tem espaço para as pessoas porem o seu número de telefone e, assim, disponibilizarem-se para conversar", refere, acrescentando que afixar estes cartazes "pode também ser um elemento dissuasor para o agressor, porque fica mais condicionado pela pressão social."
Todas as associações de apoio continuam a funcionar. Além da linha de apoio da secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, as vítimas podem contactar ainda o 112 (e contactar diretamente as autoridades, a qualquer hora do dia), o 144, referente à linha de emergência social, o 116 111 da SOS Criança e ainda o da APAV, cujo contacto é 116 006.
Neste último caso, explica Daniel Cotrim, a linha funciona todos os dias das 9 horas às 21 horas: "Neste momento não fazemos atendimento presencial, apenas telefónico", explica. Há, no entanto, exceções: "Em todos os contactos faz-se avaliação de grau de risco. Se for elevado fazemos atendimento presencial com técnico da APAV e com as vítimas. É possível que, nestas situações, se trabalhe também junto das autoridades e que a vítima tenha de ser encaminhada para uma estrutura de acolhimento."
Mas, relembra. Por mais grave que seja a situação, "isto depende sempre da vontade e do consentimento da própria pessoa."
Toda a estrutura de apoio que existia pré-estado de emergência continua a existir com a implementação dos respetivos planos de contingência pensados para a protecção contra a COVID-19. Por isso, nas casas abrigo da APAV, assim que as vítimas entram, ficam de quarentena, assegurando que não se dão situações de contágio e propagação de vírus. As equipas também estão estruturadas para, no caso de alguém ter sido infetado, se conseguir manter uma estrutura que garanta o funcionamento destas casas.
"Estão todas as casas a funcionar e a seguir as mesmas regras de contingência", destaca Daniel Cotrim. E, relembra, apesar de as empresas e dos serviços estarem parados, apesar da suspensão ao direito de circulação, há aspetos da vida que se mantêm: "Nada que atente contra a vida e a dignidade humana está suspenso."