“Viste a cerimónia de abertura do Mundial? Viste lá alguma mulher sentada na zona onde estava o emir? Não estava lá uma única mulher”. Paula (nome fictício) vive no Catar há oito anos. O marido, José (nome fictício), que trabalha numa empresa estatal, está naquele país há 13. A portuguesa falou com a MAGG sobre como é ser mulher, estrangeira, não muçulmana, a viver naquele país do Médio Oriente.
Concede a entrevista sob anonimato com receio de represálias. Antes de iniciarmos a conversa, feita através de uma aplicação de videoconferência, Paula liga a VPN do telemóvel, para que o seu IP (rótulo numérico atribuído a cada dispositivo conectado a uma rede de computadores) não esteja localizado no Catar.
Paula começa por utilizar uma expressão pouco abonatória para definir as duas portuguesas que, numa reportagem do "JN", disseram que “ser mulher no Catar é melhor do que em Portugal”. Mas já voltaremos a esse tema. Paula mudou-se para o Catar para se juntar ao marido. Tinha, desde o início, a ideia de arranjar trabalho, mas o processo para um estrangeiro, ainda para mais mulher, é “complicado”.
“Aqui, para trabalhares, ou vens com contrato fechado e tens um sponsor [patrocinador] porque, sem isso, não podes trabalhar”, explica.
No Catar (assim como no Bahrain, Kuwait, Oman, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Jordânia e Líbano) vigora o sistema da kafala. Kafala significa “garantia” em árabe. Um migrante, para poder trabalhar naquele país, precisa sempre de ser patrocinado por um cidadão ou empresa catari. “O mesmo que acontece com os trabalhadores migrantes [da construção civil] acontece com qualquer pessoa. Para mudares de emprego tens de pedir autorização à tua entidade patronal. O teu sponsor é, basicamente, quem cuida de ti. Até há bem pouco tempo, para sair do país, o meu marido tinha de pedir uma autorização à entidade patronal. Sem isso, ele chegava à alfândega e ficava retido no país. Que é o que acontece à maior parte dos emigrantes aqui. Ficas preso. Nada disso é um mito. Eles ficam-te com o passaporte”, conta Paula.
Embora, no início de 2022, o Catar tenha feito algumas reformas no sistema da kafala, abolindo a necessidade de autorização do patrocinador para o migrante abandonar o país, o sistema ainda cria desigualdades para os trabalhadores estrangeiros. De acordo com o think tank norte-americano Council on Foreign Relations, este sistema “deixa os trabalhadores vulneráveis à exploração e nega-lhes direitos laborais como, por exemplo, iniciar uma ação judicial contra a entidade patronal ou fazer parte de um sindicato”.
“Além disso, e porque os vistos de trabalho e residência estão ligados e apenas os patrocinadores os podem renovar ou terminar, o sistema permite que cidadãos privados — e não o Estado — controlem o estatuto legal dos trabalhadores, criando um desequilíbrio de poder que propicia a exploração”, pode ler-se num relatório do Council on Foreign Relations.
Paula dá-nos o exemplo do porteiro do seu prédio, que “há meses que não tem folgas e trabalha 12 horas por dia”. Perguntamos-lhe se é catari. “Não. Os cataris aqui, ou não trabalham, ou têm grandes cargos de chefia em grandes empresas”.
O Catar tem uma população de 2,6 milhões. 313 mil são cataris e os restantes são expatriados. O que faz com que praticamente todos os trabalhos sejam feitos por estrangeiros. “E mesmo aí há castas. No atendimento ao público, nos restaurantes, lojas, a maioria são filipinos. São também amas e empregadas domésticas. Tudo o que seja seguranças, são africanos, do Gana, do Uganda. Muito cá em baixo, no fundo da tabela, estão os trabalhadores da construção civil, que são nepaleses, bengalis. Mesmo entre os brancos há sectarização. [Primeiro] os americanos, canadianos, franceses, britânicos. Depois vai descendo na tabela”, conta.
"Na alfândega, a partir do momento em que dou entrada do passaporte, o meu marido recebe uma sms"
Olhando para trás, Paula admite que não estava preparada para a realidade que encontrou. “O primeiro ano foi muito mau para mim. Quando cheguei já estava um calor descomunal. De maio a setembro, não consegues fazer 300 metros na rua a pé. Mas o trabalho na rua nunca para. De construção civil aos condutores das empresas de delivery, eles estão debaixo de 40, 50 graus. Sempre."
Para conseguir trabalhar no Catar, Paula viu-se perante um dilema. “Eu não queria estar presa a um sponsor, então a única solução era casarmos. O meu marido é o meu sponsor”. Pedimos a Paula que nos explique o que é que, na prática, isso significa. “Para abrir uma conta no banco, tratar de assuntos em instituições públicas, comprar um cartão de telemóvel, ele tem de estar comigo. O meu número de telemóvel vai ficar para sempre associado ao meu passaporte."
Por não ser muçulmana (a religião está explícita nos passaportes no Catar), a portuguesa não precisa de autorização do marido para viajar. O mesmo não acontece com as mulheres que professam a religião islâmica, que precisam de “uma autorização por escrito” para sair do país.
“Eu não preciso dessa autorização mas, na alfândega, a partir do momento em que dou entrada do passaporte, o meu marido recebe uma sms. Ele não me pode impedir, mas tem conhecimento que eu saí do país. Se ele sair do país, eu não sei de nada. Mas, sendo o meu sponsor, ele recebe, tal como a entidade patronal dele recebe”. A portuguesa explica que teve de tomar a decisão entre colocar a sua liberdade nas mãos de uma empresa ou nas do marido. “No pior dos cenários, prefiro que seja o meu marido a ser o meu sponsor. Para nós, mulheres europeias, não direi que é humilhante, mas é quase como antes do 25 de Abril em Portugal. A vantagem que eu tenho é que ele não me pode impedir [de sair do país]."
O grupo de amigas de Paula é maioritariamente composto por mulheres muçulmanas, de outras nacionalidades que não a catari. A portuguesa explica que a forma como as amigas seguem os costumes varia muito, desde usarem o hijab até consumirem álcool e carne de porco. “Tenho uma amiga que não bebe álcool à frente do marido mas, quando sai connosco, faz isso tudo”. Paula conta também que, para comprarem álcool e carne de porco, existem duas lojas específicas no Catar (uma das quais abriu há um mês), nas quais só os não muçulmanos podem entrar e com autorização do sponsor.
Apesar de ser um país muçulmano, a portuguesa explica que há uma divisão muito clara entre os cataris e os restantes cidadãos, mesmo os que seguem o Islão. “As mulheres usam véu e vestem-se de preto. Os cataris jogam numa liga completamente diferente da nossa. Conheço muito poucas pessoas que se dão com cataris. Eles são muito reservados. Também temos de contextualizar e perceber que, há 50 anos, eles viviam como os beduínos no deserto. E, de repente, encontram jazidas de gás e petróleo e são o terceiro maior exportador de gás no mundo."
Paula salienta também que, por causa da riqueza do país, a população local tem uma série de benefícios. "Os cataris aqui têm direitos que nós não temos. Não pagam água, luz e gás, têm uma mesada que os Estado lhes paga [mínimo 4.000 euros, de acordo com a Society for Human Resource Management]. Por isso é que há essa adoração pelo emir. Se perguntar em Portugal aos 15% que votaram no André Ventura, eles de certeza que iam achar isto o máximo. E eu acredito muito sinceramente que, se Portugal tivesse o dinheiro que eles têm aqui, a maior parte das pessoas muito rapidamente deixava as liberdades para terceiro, quarto plano."
"Nunca falei mal do Catar nas minhas redes sociais porque sei que isso traz consequências"
Paula diz que nunca foi discriminada no Catar por ser mulher porque nunca se pôs “a jeito”. Queremos saber o que isso significa e a portuguesa dá exemplos práticos. “Não vou para lado nenhum com os ombros à mostra nem nunca andei a mostrar os meus joelhos. Tenho uma colega que, num centro comercial, foi barrada porque notava-se um bocado do joelho.”
Demonstrações de afeto entre homens e mulheres, roupa mais reveladora são proibidos em espaços públicos. A portuguesa explica que na zona residencial The Pearl, uma ilha artificial em Doha, exclusivamente habitada por expatriados, as regras são mais relaxadas. “Aquilo é uma bolha de expatriados, brancos. Os cataris não vivem ali."
Questionamos Paula sobre a existência de pessoas LGBTQ no Catar e a resposta é irónica. “Não existem homossexuais no Catar. Isso é uma doença”. A portuguesa diz que fala sobre o tema com as amigas mas que isso, bem como temas relacionados com o Mundial de futebol, não ultrapassam as conversas pessoais. “Mesmo a propósito do Mundial, nunca falei mal do Catar nas minhas redes sociais porque sei que isso traz consequências. Isso é seguríssimo!”. Num país tão rico, Paula explica que, para uma mulher expatriada, é fácil “alienar-se”. “Vives ali naquela bolhinha, passas a vida nos centros comerciais, metes uma ama em casa 24 horas por dia e pagas 200 euros por mês, porque é o salário mínimo aqui…”.
Tanto em Portugal como no Catar, nem Paula nem o marido escondem que são ateus e que apoiam os direitos da comunidade LGBTQ. “Não posso aceitar que, em pleno século XXI, continuem a achar que a homossexualidade é uma doença quando toda a gente sabe que aqui no Catar há homossexuais. E cataris! E consegues topá-los”. Paula dá o exemplo de Nas Mohamed, um ativista pelos direitos LGBTQ que teve de fugir do Catar. E explica que, no caso das mulheres, ao contrário das ocidentais, é muito difícil deixar a família para trás e começar uma vida do zero num país estrangeiro. “Esta é a realidade que elas conhecem."
Relações amorosas e sexo fora do casamento são proibidos (e punidas por lei). Mas os homens podem casar até quatro vezes em simultâneo. Nos restaurantes existe uma secção para casais e famílias e outra para pessoas solteiras. À exceção dos hotéis de cinco estrelas, onde o consumo de álcool é permitido, as mulheres muçulmanas não andam sozinhas (leia-se, sem a companhia de um homem).
“Esta é uma sociedade muito machista”, relembra Paula, alertando, contudo, que a educação muçulmana não é igual à ocidental. “Na cabeça das muçulmanas, o homem tem a obrigação de sustentar a mulher e o dinheiro que elas ganham é para elas comprarem as coisas delas. E para muitas mulheres, principalmente estas expatriadas ocidentais que embarcam nesta cultura de ‘o meu marido tem que me bancar’. De facto, os salários dos homens ocidentais são muito altos, é muito fácil tu embarcares nesta loucura de passar o cartão. Porque é possível. Nunca na vida me imaginei a entrar num hotel de cinco estrelas para ir jantar e agora faço-o com alguma frequência”, reconhece Paula, salientando que o faz sobretudo para poder beber “uns canecos com umas amigas”.
Compensa viver no Catar, apesar de tudo? “Sim, compensa. Para já, tens de ter objetivos traçados. Aqui não tens reforma, não fazes descontos para a segurança social. Eu sei que, quando sair daqui, saio com o dinheiro que juntei”, explica Paula, salientando que a permanência de um estrangeiro no Catar é sempre temporária. “Tu és um convidado aqui. Quando eles quiserem, mandam-te embora”, alerta.
“Se esta é uma sociedade com que me identifico? Não é nem nunca será”, diz Paula. Questionamos se pretende continuar a viver naquele país. “Estamos numa idade em que estamos velhos para trabalhar em Portugal, mas demasiado novos para nos reformarmos. Enquanto na balança o positivo se sobrepuser ao negativo, vamos ficando”, relativiza.
Um dos temas mais falados, quer nos últimos meses, quer agora, que o Mundial já começou, é a violação dos direitos humanos dos migrantes que trabalharam na construção dos estádios, que resultou num número de mortes ainda por determinar. Paula diz que “até 15 dias antes do Mundial começar, era 24 sobre 24 horas". "O Catar é um estaleiro. Em todo o lado vês um prédio a ser construído, por pessoas que trabalham 24 sobre 24 horas”, conta Paula.
A portuguesa explica que os trabalhadores da construção civil vivem “fora de Doha”. “Eles vivem em contentores de três, quatro andares, que são basicamente casotas com camaratas e aqueles desgraçados vivem lá, longe da cidade. Além de trabalharem 12 horas por dia, seis dias por semana, depois ainda têm essa deslocação, que lhes rouba ainda mais tempo”, conta Paula. Como é que se quebra esse ciclo? Não se quebra. “Tanto o Catar como o Dubai são países onde há muito dinheiro. O dinheiro tem de circular.”
Paula reconhece que em Portugal também existe exploração de mão de obra migrante, como no caso dos trabalhadores da estufas em Odemira. “Mas aqui é chocante. É mais de um milhão de pessoas que vive assim. Não tem comparação possível. Mal ou bem, quero acreditar que o português ainda consegue ter coração e há solidariedade. E isso não fica mascarado. Aqui, o objetivo é esconder. Tudo se esconde. Eles são muito parecidos connosco nesse aspecto, na questão do orgulho ferido. Imagino que, para o Catar, o que o Infantino fez ontem [sábado, 19 de novembro, uma referência a este discurso do presidente da FIFA], foi por achas na fogueira!”.
“Eles sabem perfeitamente quantos caixões transportaram"
"Catar não respeita os direitos humanos. Mas, enfim, esqueçamos isto", disse o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, após a partida particular de Portugal frente à Nigéria. A verdade é que a bola já rola no Catar e a Seleção Nacional foi recebida com entusiasmo.
Apesar de não ter uma relação muito próxima com a comunidade expatriada portuguesa, Paula afirma: “Eu e o meu marido somos dos poucos que não estamos a delirar com o futebol. A maioria é capaz de estar horas à espera do autocarro do Cristiano Ronaldo”, ironiza. “Nunca me manifestei contra o Mundial pelos motivos óbvios, mas não consigo dissociar e é isso que me choca e deixa triste. Como é que as pessoas que vivem aqui, que testemunharam esta realidade todos os dias, como é que conseguem? Mas não só os portugueses!”.
Paula diz que vai acompanhar os jogos de Portugal, mas que não consegue esquecer o caminho percorrido até aqui. “Para mim, o Mundial está podre e carregadinho de sangue. E ainda mais me deixa revoltada a maior parte dessas mulheres portuguesas [referindo à tal reportagem do "JN"], que está toda contente com o Mundial, e que o Catar é a última Coca Cola no deserto, é que os maridos delas são pilotos da Qatar Airways e eles sabem perfeitamente quantos caixões transportaram. Isso é uma discussão que me fica muitas vezes entalada porque elas têm conhecimento disso”, diz, referindo-se às mortes de migrantes nas obras de preparação do Mundial. “As causas de morte são sempre naturais, o que eu acho engraçado, porque a média de idades dos trabalhadores da construção civil há-de ser 30 anos, ou menos", salienta Paula.
De acordo com os dados oficiais das autoridades do Catar, entre 2011 e 2020 morreram 15.799 cidadãos estrangeiros naquele país. Não é possível determinar que mortes estiveram diretamente relacionadas com o Mundial. No entanto, o "The Guardian" avançou, numa investigação publicada em 2021 que, desde a atribuição do Mundial ao Catar, morreram 6500 trabalhadores migrantes.