Evódia Graça, 35 anos, nasceu e cresceu em Santo Antão, Cabo Verde. Até aos 18 anos não teve acesso a televisão ou Internet e foi com essa idade também que, depois de ganhar uma bolsa do Instituto Camões, decidiu vir para Portugal atrás de um sonho. Cá, fez a licenciatura, o mestrado e iniciou o doutoramento, que acabou por não concluir.
A viver em Portugal foi sempre uma jovem interventiva e muito ligada a questões de igualdade de oportunidades, principalmente das jovens mulheres. "Enquanto ativista fui ocupando vários espaços de debate e de reflexão em Portugal, dando sempre o meu contributo, ao mesmo tempo que crescia enquanto profissional". Entre 2014 e 2017 regressou a Cabo Verde pois sentiu que precisava de contribuir também para o seu país. Em 2016 viu todo o trabalho ser reconhecido ao ser selecionada como Young African Leader por Barack Obama, na altura Presidente dos Estado Unidos, através do programa do departamento do estado norte- americano, Mandela Washington Fellowship for Young African Leaders.
Depois de um percurso repleto de conquistas, mas também muitas derrotas, Evódia é hoje uma mulher que se dedica a ajudar outras mulheres a empoderarem a sua imagem. Tornou-se Coach Transformacional Especialista em Imagem e Liderança Feminina e criou a sua própria metodologia de trabalho, totalmente dedicada ao acompanhamento de Mulheres Líderes e Executivas que desejam posicionar-se com confiança e assertividade em diferentes áreas de atuação.
Recentemente lançou também o programa "Leaders", focado na definição da estratégia da mulher líder na política. Para Evódia, a maternidade significou a maior "transformação" da sua vida, encaminhando-a para a verdadeira missão. Aos 35 anos, é mãe de uma criança de 3 anos e de um bebé de 18 meses.
No dia 8 de março, a MAGG quis saber tudo sobre esta mulher que se considera empreendedora e um exemplo para muitas outras pessoas.
Porque é que é importante assinalar o Dia Internacional da Mulher?
Ainda continua a fazer sentido comemorar o dia 8 de março exatamente porque o acesso às oportunidades ainda não são os mesmo para as mulheres e para os homens. Os homens não precisam de ser relembrados de que essas desigualdades existem, e é por isso que não existe um dia do homem e ainda continua a existir um Dia da Mulher.
O que é que a fez perceber que a sua missão de vida era ajudar outras mulheres a empoderarem a sua imagem ?
Desde os meus 18 anos que sempre trabalhei com mulheres. Foi depois de uma estadia nos Estados Unidos que eu percebi efetivamente que não precisava de um trabalho das nove às cinco e que podia fazer do empoderamento das mulheres a minha verdadeira missão de vida. Isto porque, estando nos Estados Unidos, e, conhecendo as empresas, e muitas pessoas empreendedoras, ao perceber como funcionava, percebi também que reunia todas as condições para ter um projeto, direcionado para mulheres, sem que, para tal, precisasse de ter um trabalho na área da comunicação.
Com o passar dos anos, fui identificando as áreas que precisavam mais da intervenção das mulheres e uma área que me fascina imenso é a da liderança feminina. Assim, nos últimos três anos, redirecionei toda a minha carreira para me munir das ferramentas certas para apoiar mulheres líderes ou executivas que efetivamente queiram empoderar-se. As ferramentas que eu uso são exatamente as da liderança, da imagem e da comunicação — muita linguagem corporal e também muito focada na maximização das mulheres líderes.
Uma espécie de coaching?
É um programa no mínimo de três a seis meses e é mesmo um mix de coaching com mentoria. É colocar a mão na massa e as mulheres sentirem que não estão a fazer esse trabalho sozinhas, mas que têm um braço direito num espaço, altamente confidencial e de sigilo profissional, no qual podem sentir que brilham nas suas áreas. Sempre com o apoio de alguém que está em backoffice e que ajuda nesse trabalho.
Sente que em Portugal há muitas mulheres a procurar este tipo de apoio?
Sim, mas não apenas em Portugal. O meu trabalho tem abrangência a nível da lusofonia, eu trabalho com todos os países da CPLP. Em Portugal, cada vez mais, as mulheres têm a consciência da importância das ferramentas de desenvolvimento pessoal, do posicionamento enquanto líderes. A COVID-19 veio ainda acelerar mais esse processo de tomada de decisão e consciência de que efetivamente uma líder também precisa de ajuda, no apoio, na gestão e até na própria consciencialização do que é ter uma exposição pública. Diria que desde a chegada da COVID-19, os líderes, em geral, chegaram à conclusão de que apostar em ferramentas de desenvolvimento pessoal é igual a apostar em outras áreas de formação e capacitação.
Considera-se um exemplo para outras mulheres devido ao seu percurso pessoal e profissional?
Claro que sim. Eu costumo dizer que trago comigo uma comunicada que representa exatamente uma jovem mulher que não se contentou com pouco, que nasceu lá nas montanhas de Santo Santão, que não viu televisão até aos 18 anos, e que fez do mundo o seu palco — que nunca teve medo de enfrentar os desafios de várias ordens porque estava focada num objetivo. Hoje, colocar todo esse meu conhecimento, essa minha experiencia, brio profissional e humildade à disposição de outras mulheres, que também precisam desse tipo de apoio, para mim, é de uma satisfação enorme. Eu própria, em vários momentos da minha vida, também precisei de uma Evódia.
Luta muito pela igualdade de género, pela igualdade de oportunidades. Na sua opinião, que caminho ainda é preciso percorrer para que a sociedade não associe determinado tipo de cargo ou profissão apenas a um dos géneros?
No fundo é assumirmos, enquanto cidadãos, sejamos nós homens ou mulheres, que, desde que haja essa vontade, os cargos devem estar à disposição de todas e todos. O que acontece é que há ainda um grande trabalho a ser feito porque uma mulher para chegar a um cargo de liderança tem de se esforçar o triplo em relação aos homens. Se eu tivesse que afirmar, diria que é mesmo o reconhecer, tanto por parte dos homens como das mulheres, que nós, todos e todas, temos competências para estar em grandes cargos e que esse incentivo tem de ser de todos e não apenas uma luta de mulheres.
Que características é que uma mulher precisa de ter para ser empreendedora?
Em primeiro lugar, e baseando-me na minha experiencia, é a resiliência. É daquelas características que se nós não a tivermos é muito fácil desistir. Mas, acima de tudo, acreditarmos no nosso potencial, assumirmos que somos líderes. Nós, muitas vezes, enquanto mulheres, duvidamos das nossas capacidades ou comparamo-nos com outras mulheres ou homens quando, na verdade, nós temos apenas de assumir a nossa valorização e o nosso poder e não termos medo de aparecer ao mundo na nossa melhor versão. Acima de tudo, ter também muito a humildade de pedir ajuda. Hoje em dia já existem cursos de empreendedorismo, mas a maior parte das pessoas não foram tirar o curso então é muito importante o espirito de humildade e de pedir ajuda sempre que acharmos necessário junto dos que têm essas ferramentas.
"Quero dar o meu contributo para que haja mais mulheres líderes em cargos de destaque"
Sente que o facto de ser africana lhe fechou algumas portas ou fez com que duvidassem das suas capacidades?
Sim, várias vezes. Durante o meu percurso já fui a entrevistas de emprego, aqui em Portugal, em que não fui selecionada e a desculpa era que eu era 'overqualified', só porque estava já no percurso do doutoramento. Mas depois, através de pessoas a nível interno, consegui perceber que o facto de eu ser negra era um motivo. Ou quando fazem perguntas menos próprias em que claramente se querem certificar de que nós estamos à altura do cargo, perguntas que não devem existir em nenhum departamento de recursos humanos.
Isto porque quando nós queremos contratar uma pessoa para um determinado cargo, deve-se sempre partir de uma perspetiva de que a pessoa, ou reúne as condições para o cargo, ou está disposta a dar o seu contributo e aprender com quem lá está, e não propriamente a cor da pele, a origem ou o background. Questões que infelizmente ainda são o dia a dia do departamento de recursos humanos e eu recebo dezenas de feedbacks de pessoas que passam por este tipo de discriminação, porque não existem ainda muitas políticas de inclusão e diversidade, principalmente no contexto corporativo. Tem de haver inclusão porque um portador de deficiência, um afrodescendente, um português, um sueco, se calhar irão contribuir para um maior crescimento da empresa do que se for uma empresa exclusivamente portuguesa, sem nenhuma estratégia por detrás no que toca à inclusão e diversidade.
Há cada vez mais estudos que mostram que empresas mais inclusivas, que têm mais mulheres, que têm mais pessoas de diversos backgrounds, são efetivamente melhores empresas, são empresas com mais resultados.
"Há muito a ser feito para que os meus netos possam afirmar que vivem num Portugal que não é racista"
Acha que Portugal é um País racista?
Eu diria que sim. Há um grande trabalho ainda a ser feito. Há alguns meses, eu escrevi um artigo para o "Público" em que eu afirmava mesmo que a pandemia da COVID-19 é racista e assintomática num País que se diz não racista. Há ainda um grande trabalho a ser feito no que toca a nós assumirmos que ainda é preciso fazer muito, e melhor, no que diz respeito ao racismo e ao acesso às oportunidades. Eu costumo dizer que nunca houve pessoas tão qualificadas e que simplesmente não têm acesso a determinadas oportunidades pelo simples facto de serem negros ou ciganos. Há muito a ser feito para que os meus netos possam afirmar que vivem num Portugal que não é racista, apesar de algumas figuras públicas quererem fazer-nos crer que Portugal não é racista.
Lançou recentemente um programa com o objetivo de ajudar mulheres a serem líderes na política. Em que consiste o programa e porquê apostar nesta área agora?
Ser nessa área especifica tem a ver com o facto de eu própria já ter estado desse lado, na parte de assessoria política, e de ter sido uma área com a qual tenho imenso prazer de colaborar. Cada vez mais, vou-me cruzando e trabalhando com mulheres nessas áreas e vou-me apercebendo de que essas mulheres na política precisam desse apoio.
O "Leaders" vem ajudar as mulheres a posicionarem-se com confiança e assertividade enquanto líderes na política. Neste contexto em que nós vivemos, as mulheres precisam e devem alavancar ainda mais as suas marcas pessoais para chegarem às comunidades que representam. Eu quero dar o meu contributo para essas mulheres que estão todos os dias no terreno, que dão a cara e que nos representam , e que também necessitam dessa ajuda. É por isso que o meu programa está focado em três pilares de fundamental pertinência.
Que pilares são esses?
O primeiro pilar, que chamo de "Show Up", está muito focado no empoderamento, na autoestima e na gestão da imagem profissional dessas mulheres. O "Speak Up" está mais focado na comunicação, na etiqueta, na imagem corporal e no falar em público. E o "Stand Out" está muito focado na liderança, no posicionamento e na maximização da presença executiva da mulher.
Três pontos que acha essenciais porquê?
Tendo em conta a minha experiência a trabalhar com mulheres líderes, não apenas na política, essas são aquelas áreas que são as 'dores' que a maior parte das mulheres trazem para as sessões. Nos próximos anos teremos grandes batalha eleitorais, não apenas em Portugal, e eu quero dar o meu contributo para que haja mais mulheres líderes em cargos de destaque. A política é uma das áreas onde precisamos de ver mais mulheres e eu quero fazer parte desta mudança.
Acha que ainda existe muita desigualdade de género na política?
Neste momento nós temos a lei das quotas, que são um estímulo para que haja mais mulheres na política, mas a verdade é que ainda existe alguma disparidade a nível percentual. Quantas mais mulheres que estão na política aparecerem, porque há muitas que não são notadas, mais outras mulheres vão ver. As pessoas precisam de ver o exemplo de mais mulheres que estão lá a partilharem a sua experiência e que dão a conhecer o esse trabalho.
O que é que a distinção de Barack Obama significou para si e para o seu percurso?
Para o meu percurso, diria que foi mesmo um ponto de viragem. Claro que, pelo meio, houve todo um trabalho de reflexão. Qualquer pessoa que quer mudar de carreira passa por períodos meio conturbados, mas, ter estado com o Obama nos Estados Unidos, significou regressar para o meu país com um sentimento de missão de que eu, enquanto jovem interventiva, até posso achar que estou a fazer muito, mas preciso de fazer muito mais. Há uma frase que me lembro sempre com muito carinho do Obama em que ele diz para 'regressarmos para os nossos países e, em vez de perguntarmos o que é que os nossos países podem fazer por nós, perguntarmos o que é que nós, enquanto cidadãos, podemos fazer pelos nossos países', e, para mim, isso foi uma grande chamada de atenção.
Quando vim dos Estado Unidos, vim deslumbrada com todas as boas práticas que tive oportunidade de conhecer. A minha primeira questão foi perguntar: 'Porque não eu? Porque é que eu não posso fazer daquilo que mais me faz vibrar, que é o empoderamento das mulheres, o meu trabalho?'. E hoje, passados quase cinco anos, é uma realidade. Mas foi um percurso contínuo e muito resiliente para eu hoje poder dizer que a minha missão é efetivamente contribuir para a nova geração de mulheres líderes, que acordam determinadas a fazer delas as suas melhores versões e impactarem o mundo.
O mundo precisa de mais sororidade, de mais solidariedade e de mais partilha.
Acha que o mundo precisa de mais mulheres que se ajudem umas às outras?
Sim. O mundo precisa de mais sororidade, de mais solidariedade e de mais partilha. Eu partilho todo o meu percurso, diariamente, com todas as minhas coachees, desde contactos a parceiros, e esse espírito de partilha descomprometida, sem querer nada em troca, é algo que ainda não existe muito. Acho que o mundo só teria a ganhar se nós fossemos mais solidários uns com os outros, mais afáveis e contribuíssemos mais para o percurso uns dos outros.
Enquanto pessoa que ajuda outras a brilhar e a sentirem-se melhores com elas próprias, também tem momentos em que precisa dessa ajuda?
Todo o um bom coach tem um excelente coach. No final do dia eu sou uma mulher, sou mãe, tenho os meus desafios individuais e não tenho medo de pedir ajuda. Eu sou aquela pessoa que diz 'não, hoje estou cansada e não consigo' e isto é um trabalho também de desenvolvimento pessoal, de assumir que sou apenas mais uma mulher que também precisa desse apoio. Eu acho que a maior humildade que podemos ter é quando assumimos que não nascemos com tudo aprendido e precisamos, em algum momento das nossas vidas, de ajuda. Ajudar os outros não invalida que nós também não precisemos de ajuda.
Qual a grande diferença entre a menina que nasceu em Santo Antão e a mulher que é hoje?
A menina que nasceu em Cabo Verde nasceu e cresceu num contexto limitado, no sentido em que tinha de me vestir e falar de certa forma, e a Evódia de 35 anos, hoje em dia, é a pessoa que assume as rédeas da sua vida, assume toda a liberdade e responsabilidade pelas suas decisões. A interculturalidade e diversidade também é isso, é nós abrirmo-nos para aprendermos com os outros e eu considero-me uma sortuda por ter viajado e ter aprendido imenso. A Evódia de hoje em dia é muito mais feliz. Sou muito mais realizada porque escolhi quem é que eu quero ser, e, no final do dia, não comprometo a minha liberdade com nada nem com ninguém. A partir da liberdade, nós conseguimos trazer uma série de valores que nos tornam pessoas melhores.