De repente, uma miúda de caracóis rebeldes e sorriso aberto começa a falar sobre sexo no seu Instagram. Quatro mil seguidores, dez mil, vinte mil e, boom, quase cem mil seguidores atentos aos seus conselhos.
Tânia Graça, de 29 anos, é psicóloga, sexóloga e, depois de trabalhar com casais, foca-se agora nas mulheres, por ser o público que mais precisa. "Trabalho com mulheres que me dizem que têm nojo do seu próprio corpo", conta à MAGG, numa tentativa de mostrar que vivemos sob modas, mitos e preconceitos que fazem com que a mulher não tire tempo para se explorar.
Esteve na Índia a empoderar mulheres e, por cá, trabalha, individualmente ou em grupo, para que as portuguesas não percam o poder que lhes é inerente. Apela à masturbação, ao orgasmo e à comunicação entre o casal e acredita que o confinamento, apesar de ter trazido mais divórcios, levou muitas pessoas a encontrar o amor próprio.
Sem tabus ou meias palavras, eis Tânia Graça, a sexóloga do momento.
A sua página de Instagram diz que liberta Mulheres, Vulvas e Prazer. Como é que isso se faz?
Tenho algumas vias para isso. Em primeiro lugar o próprio do Instagram, através do qual trago conteúdo empoderador das mulheres e da sua sexualidade. E esse empoderamento vem com o amor próprio, autoconhecimento, independência e bem estar individual. É que é impossível libertares-te sexualmente se não te sentires bem. Por outro lado, essa liberdade sexual também influencia o amor próprio e o bem estar, é um ciclo vicioso.
Tenho também um programa de acompanhamento individual, focado nas problemáticas que aquela mulher me trouxer, que pode ser desde vaginismo ao fim de uma relação. E tenho também um curso de grupo com conteúdos aprofundados para trabalhar o auto conhecimento, auto estima e a sexualidade das mulheres que participam.
Participo igualmente em eventos em faculdades ou escolas, colaborações com associações para a igualdade de género. Enfim, são muitos os caminhos.
E que caminho fez para agora ser capaz disso?
Eu sempre fui uma miúda muito obstinada e questionadora das regras impostas. Não quer dizer que não obedecesse, mas não obedecia cegamente, principalmente regras que tinham que ver com o simples facto de ser menina.
Isso tem que ver com a sua educação?
Foi uma mistura. Tem que ver comigo, sim, mas também acho que o meio em que vivia era um meio em que as mulheres eram algo submissas em relação às regras sociais. O contexto era machista, porque a minha família nasceu e cresceu antes do 25 de abril. Eu sou filha do patriarcado. Além disso, eu tenho uma irmã muito mais velha e os meus pais são da idade dos avós de muitos amigos meus. Isso fez com que eu pensasse que algumas regras não faziam sentido.
Depois, ao longo da minha vida sempre fui muito interessada em relacionamentos e sexualidade e quando digo interessada é porque sempre questionei muito. Eu era a tal amiga que, por falar muito sobre o tema, era procurada pelos outros sempre que precisavam sobre essas questões. Acabei por estudar psicologia e fiz mestrado em terapia familiar e de casal, tendo trabalhado dois anos na área. Aproximei-me das questões de igualdade de género e à sexualidade e acabei por fazer outro mestrado em sexologia, orientação e terapia sexual. Depois disso estive três meses na Índia a trabalhar o empoderamento daquelas mulheres.
Foi nessa altura que começou a ganhar alguma notoriedade.
Sim, eu ia relatando no Instagram as coisas caricatas que me iam acontecendo e comecei a ganhar seguidores. É que a Índia é mesmo um outro mundo. Mas nessa altura tinha uns 4 mil seguidores. Quando cheguei fui ao Maluco Beleza [podcast do Rui Unas] e nesse dia cheguei aos 8 mil. A partir daí foi sempre a crescer [nota de rodapé: hoje em dia tem quase 95 mil seguidores]. Mas toda esta notoriedade é muito recente, aconteceu tudo no último ano.
Apesar de ter estado na Índia, que é diferente da nossa realidade, como são os portugueses em relação ao sexo? Vivemos isso com muitos tabus ou temos vindo a melhorar?
As duas coisas. Por um lado, já falamos mais, ainda que a minha resposta possa estar enviesada pelo que eu faço. Como falo disto tudo com muita leveza, posso achar que as coisas estão melhor. Mas a verdade é que estas temáticas passaram a estar nas televisões, nas redes sociais. No entanto, ainda há muito a fazer, porque continuas a ter muitos tabus, muitos preconceitos quanto às mulheres livres , que são alvo de preconceito. O sexo é tabu porque o prazer é tabu. Vivemos numa sociedade que é filha de um regime ditatorial e de uma religiosidade muito grande. Tudo o que é puro prazer, como o sexo anal e oral ou a masturbação, que não tem propósito de procriação, trazem muitos tabus porque rompem com todas as regras.
Quais são os principais problemas com que as mulheres lhe chegam?
Inseguranças ao nível do corpo são muito frequentes. Trabalho com mulheres que me dizem que têm nojo do seu próprio corpo. Isto tem que ver com uma sociedade que te pressiona para teres padrões de beleza ridículos. Depois, chegam-me muitas mulheres com anorgasmia, ou seja, que não conseguem atingir o orgasmo, ou com vaginismo, que tem que ver com contrações vaginais que impedem a penetração na relação sexual. E tudo isto tem que ver com a culpa e a vergonha que nos foi incutida. O corpo meio que bloqueia a sexualidade.
Muitos desses problemas acontecem porque as mulheres não conhecem o seu corpo?
Mas não conhecemos, porque nos é quase proibido fazer isso. Se és miúda e te veem a mexer na vulva, dizem-te que é um nojo, que é mau, chamam-te “menina feia”. São mensagens subliminares que nos afetam profundamente.
É por isso que usa muitas vezes a expressão "libertação da vulva"?
Sim [risos]. Elas estão aprisionadas, coitadinhas. Há mulheres com 25, 30 ou 35 anos que nunca viram a sua vulva, que nunca pegaram num espelho para perceber o que existe. Isso é significativo de quanto esta parte em nós esta aprisionada. O primeiro passo para dares uso a uma parte do teu corpo é fazeres o reconhecimento da sua existência.
Persiste ainda um preconceito acrescido quanto à masturbação feminina?
Sim. Para mim, o conhecer a zona é explorá-la. Isso pode ajudar a perceber quais os teus pontos de prazer, saber o que te sabe bem, o que não te sabe bem. Cada mulher, cada vulva e cada clitóris são únicos.
O que é que falha no nosso crescimento para que isso aconteça?
Por um lado uma repressão familiar e social, que mesmo que não seja muito visível, está nas entrelinhas. E há uma falha gigante ao nível da educação sexual, que está legislada mas é praticamente inexistente. Os professores não se sentem capacitados para falar sobre esses temas, porque não há formação. É o professor de matemática de 55 anos que te vai ensinar a pôr o preservativo ou que te vai falar de prazer? E além da educação sexual ser pouca, é muito focada no perigo, na proteção e nunca no prazer. O preservativo é super importante, mas é super importante para que te protejas dos perigos e possas viver essa relação em pleno e curtir à grande.
Como explora esses preconceitos?
Isso está relacionado com os recursos da psicologia. Tenho que perceber a história da pessoa, a sua vida sexual, como é que ela vê a sexualidade, como foi a sua educação, perceber quando acontece o bloqueio. É na hora do orgasmo? É na hora da penetração? É ainda antes, quando tenta abordar alguém para uma relação sexual. Basicamente, é perceber de onde vem e desconstruindo esses bloqueios através de alguns exercícios. Todos nós estamos cheios de nós, mas a terapia tem essa magia de trazer reflexão e recursos para os poderes trabalhar. É muito importante que façamos terapia, pelo menos uma vez na vida.
Falando em mitos e bloqueios, ainda vivemos sob a ideia de que só quem está sozinho é que se masturba?
Sim. Além disso, há ainda o preconceito machista de "se tás a fazer isso é porque eu não te chego". Os estudos mostram que quem se masturba tem uma maior satisfação e mais orgasmos durante a relação sexual. É natural, porque quando te conheces trazes isso para a relação sexual, além de que está provado que a masturbação está associada a um maior desejo. Quando estimulas o teu corpo e a mente, quando estimulas o músculo da sexualidade como um todo, ele tende a estar mais tonificado para trabalhar.
Há muitos casais a viver sem sexo?
Haver, há. As relações longas, as rotinas, a perda do mistério e da novidade leva a um decréscimo do desejo e se isso não for trabalhado, leva a que casais deixem mesmo de ter sexo. E atenção: há pessoas que vivem sem sexo e vivem felizes. Eu não acredito nas teorias que falam em três vezes por mês ou três vezes por semana. Não, o ideal é aquilo que cada par encontrar como ideal para si.
Mas falamos aqui de falta de líbido?
Falamos de falta de líbido, seja decorrente de uma relação longa, mas pode ter que ver com outras questões que também afetam o desejo, como a má comunicação entre o casal, o estar constantemente chateado, o sentir que a outra pessoa não te valoriza. Aí ninguém tem vontade de pinar, não é?
Optou por trabalhar apenas com mulheres. É o público que mais precisa?
Sim, efetivamente é mesmo. Cheguei a trabalhar com casais e acho que é algo que a longo prazo voltarei a fazer. Mas eu sou uma pessoa de causas e daquilo que me ressoa, daquilo que me faz sentido no momento. E, neste momento, sinto que são as mulheres o público que mais precisa de mim. Além disso, não consegues ser especialista de tudo, e a sexualidade é um mundo. Há a sexualidade das crianças, dos adolescentes, dos idosos, das pessoas lésbicas, das pessoas trans. Não podendo chegar a todos esses mundos, foco-me naquilo que sinto em que posso ser útil. E vendo os resultados que tenho tido, acho que estou a focar-me no certo.
Quais são os principais tabus que as mulheres têm quanto ao sexo?
A masturbação, o sexo oral e o sexo anal e até a própria exposição do corpo. Não se conseguem soltar, estão muito dentro das suas cabeças durante o sexo, a pensar que a estão a ver nua, que lhe estão a ver a celulite.
Mas esses bloqueios são apenas das mulheres? E os homens?
Há sim, mas as questões dos homens são mais relacionadas com a sua performance e não tanto com o seu físico. Têm medo de perder a ereção, medo da ejaculação precoce, porque ainda há a ideia de que têm que ser o machão que está ali uma ou duas horas. Isso causa pressão, mas é uma pressão diferente. Os homens tiveram sempre liberdade, enquanto nós estávamos fechadas em casa com a obrigação de sermos fiéis. Havia leis que diziam que os homens que fossem traídos podiam matar as mulheres para limpar a sua honra, enquanto os homens andavam por aí a fazer trinta por uma linha.
Eu não digo que eles não sofram pressões, mas estamos a partir de lugares diferentes. Isso vê-se nos rótulos: a mulher que tem muitos homens é puta, o homem que tem muitas mulheres é um garanhão.
Fala de sexo de uma forma natural e sem preconceitos o que raro. Como acha que os homens a veem, tendo em conta esse perfil?
[risos] No meu caso acaba por ser um bom filtro. Quem realmente se interessa e se aproxima são pessoas que estão à vontade com o que eu sou e com o meu trabalho. Se a pessoa não está, não me interessa tê-la na minha vida. Eu gosto muito daquilo que faço e dificilmente eu vou deixar de fazer aquilo que eu acho que é importante por outra pessoa. Não vai acontecer. Por isso, se assusta, temos pena, pode ir andando, next.
Enquanto profissional a trabalhar a sexualidade feminina, há algum feedback que a tenha marcado?
Ui, tantos. Principalmente casos de vaginismo, de mulheres que nunca tinham conseguido pôr nada na vagina, mesmo nada. Depois de meses de acompanhamento, o conseguirem uma relação sexual com penetração e ligarem-me a chorar é um sentimento de gratificação enorme. Sexo não é só penetração, mas conseguir essa parte que, neste caso, é importante para si, é como se se visse restituída enquanto mulher. Não que ela não fosse, mas sente-se finalmente mulher por inteiro e isso é incrível.
Sexo em tempos de confinamento
E agora que estamos em confinamento, a sexualidade é tratada de outra forma? Há novos problemas a surgir?
Quando acompanho uma mulher que está em casal, as problemáticas que surgem estão relacionadas com o estar 24 horas com alguém, o que também não é muito bom para o desejo. Mas o desafio maior tem sido para quem é solteiro. Por outro lado, somos ótimos a reinventarmo-nos e acho que foi isso que aconteceu. De repente, as pessoas perceberam que, "ok não posso estar com ninguém, vou estar comigo". Há imensa gente que aproveitou para comprar um brinquedo sexual, que se explorou. Houve um boom gigante para as sex shops. De repente as pessoas têm tempo para se explorarem.
O confinamento trouxe mais amor ou mais divórcios?
O confinamento trouxe mais amor próprio. É um facto que houve mais divórcios do que em anos anteriores, mas houve mais reflexão sobre o que queremos agora e quando isto acabar. Isso levou a que as pessoas tomassem decisões pela sua felicidade.
Também o sexo passa por modas?
Hum, talvez. Os brinquedos, por exemplo, tiveram agora um boom. Mas outras práticas como o BDSM por exemplo, que para muitos parecem novas, sempre existiram. Acho que tudo vai é ganhando contornos diferentes ao longo dos tempos. Não sei se diria modas, diria sim que existem períodos da História de maior liberdade e outros de maior repressão.
Estamos também nós numa fase de mudança?
Sim, é uma fase de mudança a muitos níveis, até porque todos estamos a viver algo que nunca antes foi por nós vivido. As relações estão a transformar-se, e a transformar-se para um ponto onde não voltarão atrás. Depois de passarmos o confinamento, a forma como vivemos um relação nunca vai ser igual à forma como a vivíamos antes.