Depois de o primeiro-ministro Luís Montenegro ter prometido em outubro de 2024 "libertar" a disciplina de Cidadania das "amarras dos projetos ideológicos", soube-se na segunda-feira, 21 de julho, que o Ministério da Educação decidiu retirar conteúdos obrigatórios relacionados com a sexualidade da disciplina. Isto implica que os alunos vão deixar de ficar a conhecer temas importantes sobre este mundo através da Cidadania, tais como a violência doméstica, a igualdade de género ou ainda a diversidade sexual.

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Isto porque a sexualidade falada dentro da disciplina aborda muito mais do que a orientação sexual. “A disciplina de Cidadania é relativamente recente, mas dentro das várias coisas que inclui sempre teve a área da sexualidade, porque quando nós falamos em cidadania, falamos de uma participação ativa de todos os cidadãos, muito em prol do respeito pela diferença, a diversidade sexual, questões da identidade, orientação, tudo”, começou por dizer Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga especializada em educação para a Saúde, Educação em Sexualidade, à MAGG.

Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga especializada em educação para a Saúde, Educação em Sexualidade
Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga especializada em educação para a Saúde, Educação em Sexualidade Vânia Beliz, psicóloga e sexóloga especializada em educação para a Saúde, Educação em Sexualidade créditos: Instagram

Ou seja, segundo o jornal “Expresso”, as matérias como sexualidade e saúde sexual, que até então eram obrigatórias nas escolas para os alunos em pelo menos dois ciclos do ensino básico, deixaram de existir nos tópicos a partir de agora abordados na disciplina de Cidadania. Acontece que se procurar entre os 17 temas que é suposto falar nestas aulas as palavras  “sexualidade” e “saúde sexual e reprodutiva”, não as vai encontrar, sendo que agora passam a estar no domínio da Saúde. Ainda assim, nada é referido de forma explícita sobre esta questão, não se sabendo ao certo o que vai ser abordado.

Sexualidade é muito mais do que "falar sobre o corpo humano"

“Falar de sexualidade nas escolas não é só falar sobre o corpo humano, ultrapassa muito isso. Tudo o que tem a ver com prevenção de violência neste momento tem que entrar dentro da sexualidade, porque nós já não nos relacionamos como nos relacionávamos há 10 anos, por exemplo”, acrescentou a sexóloga, explicando que as novas tecnologias e os movimentos de misoginia têm todos de ser abordados entre os jovens. “Estes movimentos ligam à sexualidade e têm de ser trabalhados desde muito cedo”, continuou Vânia Beliz, o que acaba por refutar a questão de a sexualidade estar toda inserida na área da Saúde.

Mas não é só sobre isto. “A questão da prevenção da homofobia” é outro assunto importante que precisa de ser trabalhado em sala de aula, uma vez que é sempre mais complicado falar sobre estes assuntos em casa, especialmente se existir quem tenha crenças diferentes. “Onde é que está aqui falarmos de consentimento, falarmos de autoestima e de corpo? Estes são problemas gravíssimos que também temos, a sexualização e a hipersexualização das meninas, a erotização precoce, são tudo temas importantes”, reforçou a psicóloga.

Matéria tem de ser dada por quem é entendido

No entanto, a verdade é que todos estes temas precisam de ser tratados por quem de direito, e não por diretores de turma e docentes de disciplinas como Biologia, algo que acontecia com bastante frequência nas escolas. Susana Dias Ramos, sexóloga e conhecida personalidade da internet e televisão portuguesa, explicou à MAGG que a forma repentina como a decisão foi feita foi “de uma inconsciência terrível” e é “um perigo tremendo” por existir ausência de informação, mas afirma que concorda com a retirada desta matéria das aulas de Cidadania, precisamente por não estar a ser dada por quem devia dar.

Susana Dias Ramos, sexóloga e conhecida personalidade da internet e televisão portuguesa
Susana Dias Ramos, sexóloga e conhecida personalidade da internet e televisão portuguesa Susana Dias Ramos, sexóloga e conhecida personalidade da internet e televisão portuguesa créditos: Instagram

“Eu acho que não deve estar nas mãos de pessoas que não são da área da saúde sexual partilhar informações, retirar dúvidas, esclarecer os menores acerca deste assunto. Isto acontece porque a sexualidade é vista como um tabu e de repente nós obrigamos as escolas a partilhar uma informação das quais elas não tinham efetivamente conhecimento”, começou por explicar. 

“Não concordo com a forma que foi feito, porque de momento nós ficamos sem qualquer tipo de base de informação para dar a quem realmente precisa. Mas nós vemos em todo o lado pessoas sem a menor base a conversar acerca destes assuntos, quando estes assuntos devem ser para os menores conversarem com especialistas, ginecologistas e pediatras e psicólogos do desenvolvimento, e para os maiores conversarem com sexólogos, urologistas, ginecologistas”, continuou Susana Dias Ramos, que acredita que a literacia sexual estava presente em quem lecionava as aulas, mas não da maneira certa. 

“Eu quero acreditar que a literacia estava a ser feita de uma forma correta no que concerne às técnicas anticoncepcionais, mas dizer que eu acho que existem literacias em cursos de inglês, português ou matemática para conversar acerca de assuntos do foro sexual, eu acho que não. Acredito que muitas das experiências e muitas das informações que foram passadas pudessem ter por base experiências pessoais. Evidências científicas devem ser deixadas para os profissionais de saúde da área”, disse também. 

Desta maneira, Susana Dias Ramos acredita que todas as escolas deviam contar com psicólogos nos seus estabelecimentos, que sempre estariam mais dotados para falar minimamente sobre o assunto. “Eu não faço a mínima ideia que tipo de informação é que estava a ser passada para os menores. O que eu vejo é que nós estamos a viver numa altura em que temos crianças com acesso à pornografia e todas estão a aprender erradamente sobre o que é a sexualidade, quando nós deveríamos saber que o facto de haver um nível de educação sexual tem benefícios”, acrescentou. 

E se a abundância de psicólogos se juntasse às leis que existem em Portugal para, efetivamente, explorar os temas da sexualidade na escola, então os primeiros passos já estariam dados. Isto porque, segundo Vânia Beliz, existe uma lei datada de 1999 que obriga que a educação para a sexualidade se faça desde o primeiro ciclo até ao ensino secundário, existindo até vários documentos e referenciais que orientam os temas que devem ser abordados. Além disso, “Portugal é signatário de um conjunto de acordos internacionais onde a saúde sexual e reprodutiva é um compromisso nosso”, como explica, pelo que são temas que têm, certamente, de ser abordados. 

São precisas iniciativas na escola "por forma a ser uma literacia de confiança"

Mas se já não o são na disciplina de Cidadania, onde podem ser? Nas iniciativas e palestras que as escolas têm de reforçar a partir de agora. “Nós estamos a fazer um conjunto de orientações para que estes temas sejam efetivamente discutidos”, disse Vânia Beliz, que também faz parte da equipa de peritos da DGES neste tema. “Está a preparar-se essa remodelação, nós também não queremos que ela seja uma disciplina à parte mas sim um assunto abrangente que possa ser abordado por quem tem formação”, acrescentou. 

E Susana Dias Ramos concorda. “Estaria nas mãos dos psicólogos dos agrupamentos organizarem isso. Não, mais uma vez, em pessoas que não são da área. Devem ser chamadas pessoas da área, psicólogos do desenvolvimento e terapeutas sexuais, sexólogos clínicos, para criarem um plano em que os menores tivessem acesso, por forma a ser uma literacia de confiança e não apenas de informações básicas que nós partilhamos numa mesa de café”, explicou.

Até porque a falta de conhecimento em todos estes tópicos pode “fazer com que os jovens achem que a violência não é uma coisa errada”, como disse Vânia Beliz. “Pode legitimar um conjunto de comportamentos nocivos para a saúde e para o bem-estar das crianças e dos jovens. Porque é preciso que as pessoas compreendam que as questões da sexualidade são importantes”, rematou.