"Já me desviei do assunto, ando muito enervada (risos)!". Com esperança na voz mas preocupação pelos retrocessos que se avizinham, Catarina Furtado conversou em exclusivo com a MAGG sobre o que a motivou a lançar-se nos podcasts. "Ponto de Luz", que vai buscar o nome à música homónima interpretada por Sara Tavares, é uma extensão do trabalho que a apresentadora de 52 anos faz há mais de uma década na associação Corações com Coroa: empoderar os jovens.
Em "Ponto de Luz", cujo primeiro episódio já está online, a apresentadora da RTP, presidente e fundadora da ONGD Corações Com Coroa e Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, modera encontros entre adolescentes com idades compreendidas entre os 14 e os 17 anos e "professores especiais".
São 12 episódios, divididos em duas séries, nos quais são abordados temas como igualdade de género, racismo, saúde mental, educação sexual ou idadismo. "Ponto de Luz" é apoiado pela Missão Continente e vai contar, em cada episódio, com a participação de uma celebridade portuguesa, que responde à questão “O que gostavas que te tivessem dito na escola?”.
O primeiro episódio, disponível desde esta quarta-feira, 6 de novembro, é sobre os temas "igualdade de género, violência doméstica e discriminações". Em entrevista à MAGG, Catarina Furtado fala do que a motivou a promover este diálogo entre alunos e professores.
Como surgiu esta ideia?
Esta ideia nasceu das insónias que tenho de vez em quando. Há uma noite, há uns meses, em que pensei 'quero ouvir mais os adolescentes'. Eu tenho dois adolescentes mas não é só por isso. Há muito tempo que trabalho com adolescentes, desde o livro "Adolescer é fácil, #só que não", das palestras que faço. Vou para as escolas, faço palestras sobre direitos humanos e é sempre para esta faixa etária, sobretudo do 10º ao 12º ano. O mundo está tão difícil, as questões que nos preocupam a todos e a todas dos ventos que trazem retrocessos, dos extremismos. Comecei a pensar nisto e decidi que queria ouvir os adolescentes.
Esta faixa etária foi, juntamente com os idosos, a que teve maior impacto na saúde mental durante a pandemia da COVID-19. Além disso, quis perceber que escola é esta que estamos a construir e se esta escola os ouve. Este podcast é uma plataforma que dá voz aos adolescentes e aos professores especiais, que é uma profissão que está sempre debaixo de fogo. No fundo, quero homenagear os professores especiais, quero dar voz aos adolescentes e quero perceber qual é a realidade das escolas no que diz respeito à cidadania e aos direitos humanos.
O que quer dizer com professores especiais?
Aqueles que salvam vidas, os que olham para a cidadania como disciplina transversal, como parte absolutamente integrante do sucesso daquele aluno. Que não olham para o aluno como alguém que tem de cumprir umas médias e que tem que ajudar a escola a ter um ranking extraordinário. São professores que olham para o aluno como um todo, para a formação pessoal, a capacidade empática, os seus valores. Esses são os professores especiais que todos tivemos e que, numa altura em que os professores são tão apontados, quis dar um rasgo de esperança nisto - por isso se chama "Ponto de Luz". São professores que já deram aulas a pessoas de 30 anos, de 20 e que, agora, estão a dar a estes de 15. Os professores são os mesmos mas os alunos não. Com estes desafios digitais, os professores têm de se adaptar. Eu quero percebê-los, quero ouvi-los, quero que eles sejam também ouvidos nesta plataforma, sempre com as temáticas dos direitos humanos e da cidadania, porque a cidadania não pode ser um tabu nem meter medo a ninguém. Quero que este podcast seja um contributo para o ministério da Educação.
Isso é uma afirmação bastante ambiciosa.
Pronto! A ideia está cá, se alguém quiser ouvir, é o meu contributo. Fiz com todo o amor e dedicação. Oiço os miúdos dizerem que nunca são ouvidos e os professores ficarem emocionados quando lhes digo que isto também é para os homenagear. Se alguém dos ministérios for ver e tirar notas, fico muito feliz.
Os alunos e os professores são apenas de escolas públicas ou também de privadas?
Também de privadas, mas muito menos. Não quis fazer essa discriminação. Um dos convidados é um aluno do ensino profissional, que deve ter mais condições para crescer em Portugal.
"Quero que este podcast seja um contributo para o ministério da Educação."
Quais foram os momentos mais surpreendentes que aconteceram durante as gravações?
Eles foram escolhidos a dedo, é preciso dizê-lo. Andei a pesquisar que miúdos tinham à vontade para falar e depois tive de fazer um puzzle com os temas. Estes são temas que eu trabalho muito, quer nas palestras, quer na Corações com Coroa. Não fui muito surpreendida, se calhar o público vai ficar mais surpreendido. Relativamente à violência no namoro, elas estão altamente informadas mas, depois, há um receio ainda quando se está perante a pessoa de quem se gosta, sempre com medo de a perder. De uma maneira geral, as raparigas têm a autoestima mais em baixo e, por isso, perpetuam a violência no namoro.
Num dos episódios, achei interessante, quando falámos sobre desigualdade de género, que é tão gritante em Portugal, ela existe nas escolas mas não a nível intelectual. Foi uma conquista feita. Se antigamente os rapazes não viviam bem com o facto de as raparigas terem melhor desempenho escolar ou participarem um bocadinho mais, neste momento, do ponto de vista intelectual, os rapazes não sentem qualquer tipo de competição. É uma novidade para mim.
Como é o diálogo entre aluno e professor neste podcast? Há confrontos, há perguntas difíceis?
Eu não quis ter um projeto polémico. As minhas perguntas são, muitas vezes, as mesmas para os dois. Mas sim, há momentos em que se contradizem ou acrescentam questões, e isso é muito interessante. Todos os professores que tive são professores que têm coragem. Dizem que há coisas erradas, não são uns lambe-botas. Assumem o que dizem, o que está bem e o que está mal e – aqui fui tendenciosa – são professores que são defensores da mesma linha do que eu, uma disciplina de Cidadania com os itens todos que faz sentido ter mas bem implementada nas escolas. Que não é o que está a acontecer.
Não querendo ser polémica, já o está a ser porque o primeiro-ministro, Luís Montenegro, já afirmou publicamente que quer "libertar" a disciplina de Educação para a Cidadania de "amarras ideológicas".
Ainda estou com alguma esperança porque, apesar de tudo, o ministro da Educação a seguir veio dizer que a disciplina é para se manter. Mas este projeto vem exatamente na altura em que sinto mesmo que muitos dos direitos estão a ser recuados. E, mais do que isso, que se está a construir um País mais conservador. Não no sentido clássico mas mais reacionário. Nesse sentido, é importante salvaguardarmos que os miúdos são os primeiros a dizer 'nós queremos ter educação sexual, é fundamental para as nossas escolhas. Nós queremos que oiçam que a nossa orientação sexual não pode ser alvo de discriminação'. A realidade dos miúdos tem de ser ouvida e são eles que vão confirmar que a disciplina faz sentido. Há uma miúda que diz: 'nós somos desvalorizados porque somos desta faixa etária, ninguém nos leva a sério. E a nós, raparigas, ainda nos levam menos a sério porque, se estamos com o período, somos uma histéricas e não temos consciência do que estamos a dizer'.
O facto de esse estereótipo ainda perdurar nessa faixa etária...
Ela diz isso no primeiro episódio! 'Podemos não ter muita experiência de muito mas queremos ser ouvidos'. Isso, ao mesmo tempo, é emocionante.
"Às vezes sou abordada na rua por pessoas que foram alunas da minha mãe e que me dizem 'ela foi tão importante para mim!'. Fico mesmo comovida"
Deixe-me fazer de advogada do Diabo. A Catarina é uma das figuras públicas portuguesas com mais influência e, perante o lançamento de um podcast, há pais que podem pensar 'agora a Catarina Furtado quer doutrinar o meu filho com ideologia de género e não quero que ele oiça!'. Como é que responde a esses receios?
Eu não respondo. Depois, ele estão na faixa etária da adolescência. Ainda que tenha algumas limitações por parte dos pais, na verdade, e como diz a adolescente do primeiro episódio: 'educação sexual não é ensinar a fazer sexo. Se nós quisermos fazer sexo, nós fazemos, ok?'. O que eu respondo é exatamente isso: se eles quiserem ouvir, eles vão ouvir. Como veem as séries com cenas pornográficas e eróticas, como veem no TikTok... eles vão ouvir. O que estou a fazer de todo é doutrinar. É, sim, informar. O que estou a fazer é o mesmo que faço aos meus filhos: é dar-lhes informação, é ensinar-lhes a tentar separar o trigo do joio quando estão perante uma notícia falsa e terem a literacia digital para perceber isso. Nós falamos sobre isso. Um dos temas é populismos e desinformação. O que digo é que estou a dar o melhor melhor, daquilo que dou aos meus filhos, para que nenhum miúdo seja vítima de bullying ou de discriminação, seja pela sua orientação sexual, seja pela falta de informação.
Consideraria uma terceira temporada, incluindo os pais nesta equação?
Pensei nisso mas, numa primeira fase, quis que fosse mesmo só o espaço escola. Quis perceber se é um espaço seguro, quer para os professores que estão e, burnout total, com as burocracias todas que têm de cumprir e que nada têm que ver com a sua vocação. Eu queria apontar para eles o microfone. A minha ideia é falar sobretudo sobre o estado da educação em Portugal no que diz respeito à cidadania e aos direitos humanos. Já pensei nisso para uma terceira série, perceber se faz sentido ou não. E, muito provavelmente, é o que vai acontecer.
"Este projeto vem exatamente na altura em que sinto mesmo que se está a construir um País mais conservador."
Quem foram os seus professores especiais?
Não deixo de fazer, ao mesmo tempo, uma homenagem à minha mãe. Além de ter sido uma professora especial do ensino normal, trabalhou em escolas muito difíceis, com uma taxa de abandono escolar grave e com miúdos de contextos sócio-económicos difíceis, de bairros, e teve resultados inacreditáveis de sucesso. Reduziu, pelo menos na disciplina dela, Trabalhos Manuais e Educação Visual, a taxa de abandono escolar. Lembro-me perfeitamente de os miúdos virem dos chamados bairros difíceis – detesto este termo, mas pronto – e de fazerem vaquinhas para, no dia de anos, levarem um bolo à minha mãe. Miúdos que eram chamados de selvagens, bandidagem, não faltavam à escola. Pelo menos às aulas da minha mãe. Depois ela especializou-se em ensino especial e foi aí que eu comecei a fazer voluntariado, aos 9 anos. Às vezes sou abordada na rua por pessoas que me dizem que foram alunas da minha mãe. 'Manda-lhe um beijinho, ela foi tão importante para mim!'. E é tão fixe alguém vir ter contigo e não é por causa de ti (risos)! Fico mesmo comovida.
Os professores são os que estão atentos às entrelinhas, que conseguem fazer acrobacias para que, num dia intenso de aulas e burocracias, ainda consigam perceber que aquele aluno está a passar mal com qualquer coisa e os oiçam, ou que lhes digam que precisam de apoio psicológico e acionem esse mecanismo. Ou que digam aos alunos que não faz mal não terem aquela média. Mas é uma contracorrente, porque as escolas têm de apresentar rankings e há aqui um pau de dois bicos.
Deixa pouca margem para os professores especiais e para os alunos especiais.
Eu quis que não fossem miúdos privilegiados, no sentido do acesso à informação. Chego à conclusão – e é bom refletir sobre isso – é que os miúdos que têm maior pensamento crítico são aqueles cujos pais estão mais perto e com quem podem falar. Quando nós falamos destes miúdos de bairros mais complicados e achamos que devem ser exatamente iguais aos nossos filhos, é não perceber nada de nada. Não perceber do que é constituído um ser humano, que tem uma quota parte de afecto e que muitos destes pais não podem dar porque têm de sair de casa às 4 da manhã para ir trabalhar, tantas vezes para as nossas casas.
Desde que fundou a Associação Corações com Coroa, tem contactado com muitos adolescentes, alguns que até já são adultos. O que é que mudou e, se mudou, isso fá-la ter mais ou menos esperança no futuro?
Eu tenho sempre esperança no futuro, é a matéria da qual eu sou feita, não sei explicar. A CCC tem 12 anos, eu estou há 23 a viajar pelo mundo. Agora até vou para o México falar sobre casamentos infantis para a minha missão nas Nações Unidas. Acho que vai ser muito interessante. Eu tenho sempre esperança, apesar de as coisas andarem sempre para a frente e para trás, de os direitos humanos estarem ameaçados, e os direitos das mulheres estarem a retroceder... apesar de tudo, eu faço um flashback e digo sempre isto aos miúdos: nós, para podermos ter energia para continuar a acreditar e acionar planos e estratégias e angariar mais cúmplices, temos sempre de olhar para trás porque, senão, perdemos confiança no futuro. Eu olho para trás e penso 'era bem pior!'. Houve pessoas que deram o corpo ao manifesto e eu não o fiz. Dou a minha convicção e o meu trabalho mas dar o corpo é arriscar a vida. E há pessoas que, neste momento, estão a morrer. Eu não posso não confiar que as coisas vão melhorar. E depois, de vez em quando, tenho conversas com jovens e penso 'ok, a coisa vai lá'. Tendencialmente vai lá com as mulheres, não há dúvida.