Em entrevista a Ricardo Araújo Pereira no programa "Gente Que Não Sabe Estar", Joacine Katar-Moreira ainda não tinha sido eleita pelo Livre e já dizia àquilo que vinha: "Eu gaguejo quando falo, não quando penso. O perigo na Assembleia são os indivíduos que gaguejam quando pensam".
Numa altura em que ainda não passou uma semana desde as eleições que permitiram que o seu partido tivesse assento parlamentar, o nome de Joacine tem sido usado para dar corpo a várias teorias da conspiração. E a que mais tem sido partilhada nas redes sociais, que depois estendem o assunto às conversas de café, diz que Joacine nunca gaguejou e que inventou um problema para angariar votos e valer-lhe alguma notoriedade.
A teoria ganhou força quando, depois de conhecidos os resultados das eleições, foram postos a circular vários vídeos que lançavam dúvidas sobre a honestidade da deputada. É que enquanto em entrevistas e debates Joacine gaguejava, noutro, como quando fez o discurso de vitória na sede do Livre, o discurso era fluído e corrido.
"É realmente irónico como Joacine não gagueja uma única vez no discurso junto ao bairro da Jamaica chamado Polícia de Insegurança Pública à PSP. Tal como o Mamadou [Mamadou Ba, assessor do Bloco de Esquerda] não gaguejou quando os chamou 'bosta da bófia'. O Livre e o Bloco de Esquerda são iguais, se ainda restarem dúvidas", comentou um utilizador no Twitter.
Mas não se ficou por aqui. Quando Joacine foi uma das convidadas de Cristina Ferreira no seu programa, as caixas de comentários da sua conta de Instagram encheram-se de comentários semelhantes que questionavam a veracidade da gaguez. "Achei que foi uma gaguez forçada", escreveu uma utilizadora. Outra reforçou: "Eu já vi esta senhora falar várias vezes sem gaguejar. E só o faz quando lhe dá jeito. Eu não acredito."
Se dúvidas houvesse de que o tema está na ordem do dia, um dos mais recentes fact checks feitos pelo jornal "Polígrafo" tem que ver precisamente com isso. O jornal analisou entrevistas cedidas pela ativista em 2018, nas quais a sua gaguez já era nítida e facilmente reconhecível.
Mas o jornal chegou ainda à fala com André Teodósio, ator e encenador, que conhecia a agora deputada há vários anos, e que confirmava a sua gaguez. "Desde que a conheci, e tenho trabalhado há muitos anos com ela e assistido a eventos, foi sempre gaga. Ela não é a Rachel Dolezal da voz. Teria de estar há muitos anos a fingir uma coisa que é um entrave para a vida dela", revelou.
Tudo isto permitiu ao "Polígrafo" identificar a acusação de desonestidade como falsa. Mas, e a julgar pelos comentários nas redes sociais, a teoria persiste em ser partilhada. E desde então que têm sido várias as vozes a sair em defesa da deputada.
Foi o caso de João Quadros que, na sua conta oficial de Twitter, escreveu: "A verdade é que a gaguez da deputada faz-nos impressão e não a ela. O problema é nosso, porque não conseguimos viver com a deficiência. Incomoda-nos e causa desconforto, mas o problema é nosso."
Esta é uma ideia que parece ir ao encontro daquela que é defendida por Paula Rondão, terapeuta da fala, que diz à MAGG que há certos comportamentos a evitar quando se fala e se lida com uma pessoa gaga.
"Há erros que não devem ser feitos de modo algum, como aquele que é mais instintivo e que pode parecer que está a ajudar quando, na verdade, não está. Nunca se deve interromper um gago porque isso atrapalha e baralha-lhe o raciocínio", alerta.
A especialista realça ainda a importância de manter o contacto visual com quem sofre de gaguez e evitar manifestar desconforto, ansiedade ou impaciência.
"Devem existir poucas manifestações, seja por linguagem corporal ou facial, de desconforto ou impaciência porque todas essas reações são absorvidas pelo gago e contribuem para o seu nervosismo. Pelo contrário, devemos dar-lhe confiança e mostrar interesse naquilo que ele tem para nos dizer e assim possibilitar que ele próprio tenha confiança para se exprimir", revela.
E embora exista uma definição médica para a gaguez, que se traduz na alteração do ritmo e da fluência da fala, Paula Rondão desmitifica a ideia de que haja vários graus de gaguez. Há vários tipos de gaguez embora, segundo conta, não haja um consenso firmado sobre o que os distingue.
"O que há é várias características que nos fazem olhar para uma pessoa e nos permitem identificar se é mais ou menos gaga. E essa é uma gaguez que pode ser transitória nas crianças que começam a falar, que pode ser resolvida ou que se pode acentuar se não for tratada", explica.
Apesar disso, não há causas definidas. "Em termos de genética, há estudos que dizem que 75% das pessoas que têm gaguez já tiveram um familiar com algum problema ligado à gaguez, a problemas de articulação e fluência. Na área da neurologia, há estudos que dizem que é uma perturbação que se verifica mais nos homens do que nas mulheres", mas reforça que tudo isto são verdades relativas porque não se consegue apontar ao certo uma causa definitiva.
"Há estudos que afirmam uma coisa só para, pouco tempo depois, surgirem outros que desmentem investigações anteriores", conta.
Mas sobre isto Paula Rondão tem a certeza: um contexto de maior pressão contribui para o nervosismo de uma pessoa gaga e isso é o suficiente para que as disfluências sejam maiores — especialmente se o discurso não for previamente preparado.
E isso explica as diferenças que os vários vídeos mostram sobre a gaguez de Joacine Katar-Moreira, que já leu alguns dos seus discursos.
"O inesperado leva a um stresse maior e a que uma pessoa gaga tenha mais dificuldades em organizar e expressar aquilo que quer dizer. É por isso que a falha não incide tanto naquilo que é programado", diz, porque há controlo e expectativa naquilo que vai acontecer.
É quando esse ambiente controlado e programado é substituído pelo discurso livre, onde tudo pode acontecer, como nos debates ou em entrevistas, que as disfluências se tornam mais notáveis. O olhar alheio, o desconforto e a pressão contribuem para o nervosismo.
E diz a especialista que o importante é que o bem-estar de uma pessoa gaga esteja assegurado porque, no fundo, aquilo de que ela precisa é que o seu discurso seja interessante. Porque só a partir daí é que o discurso flui. "Importa que quem oiça esteja concentrado. O bem-estar do gago tem de estar assegurado para que o seu discurso e a sua confiança se sobreponham ao erro. A partir daí, a fluência ocorre."
Por isso, Paula Rondão dá outros conselhos sobre como lidar com pessoas que vivam com esta perturbação. Além de não interromper com o intuito de acabar a frase que o gago quer dizer, porque pode ser um golpe na sua autoestima, o diálogo "deve ser feito de uma forma mais pausada" e "sem momentos de stresse".