É mulher, é negra, é gaga, é inteligente, é interessante e, para piorar tudo, agora até foi eleita deputada. Isto dito assim parece, na cabeça de muita gente, uma história de ficção, e como em qualquer história de ficção, daquelas de que todos gostam, há sempre meia dúzia de indivíduos que acham que vão encontrar defeitos na narrativa. São aqueles picuinhas irritantes que se prendem a detalhes insignificantes só porque têm de dizer mal de qualquer coisa, mesmo quando toda a gente está a dizer bem. São também estes indivíduos que fazem o contrário disto mesmo, ou seja, embarcam em correntes conspirativas estúpidas só para contrariar a maioria. No fundo, é aquela malta do contra, aquela malta que adora dizer: “A mim não me tomam por parvo. Algum dia isto era possível?”. Senhoras e senhores, apresento-vos o chico-esperto-da-net-que-acha-que-ninguém-o-toma-por-parvo.
Esta figura é muito presente na vida de todos nós. Quem é que não tem um amigo assim? Daqueles que passam a vida a partilhar fake news (que só eles não percebem que são fake news), com um texto a acompanhar sempre carregado de indignação, com palavras (normalmente com erros ortográficos e de pontuação) que denotam um ligeiro toque de justiceiro populista. Ui, o que há mais aí é desta espécie. Eu, nos meus mais de mil amigos, tenho muitos, e só não me dou ao trabalho de os eliminar porque, no fim de contas, a estupidez deles me diverte, chega mesmo a alegrar-me os dias mais cinzentões.
E é basicamente este tipo de personagem que tem andado a desenvolver a teoria da conspiração que sugere que Joacine Katar Moreira, a nova deputada do Livre, não é gaga. “Esta a mim, não me engana!! Ainda à um mes não gagejava e agora e que lhe deu pra gagejar! É só pós votos! So querem é taxo! Ela que volte lá para a terra dela”. Aqui está um exemplo de um comentário-tipo que poderíamos encontrar num Facebook desta vida acompanhado de uma partilha de um artigo daqueles sites tipo Tá Bonito a conspirar sobre a gaguez falsa da deputada. Reparem como a frase tem todos os elementos que ajudam a representar o chico-esperto-da-net-que-acha-que-ninguém-o-toma-por-parvo: tem erros ortográficos, tem excesso de pontos de exclamação, tem erros de pontuação, tem erros de acentuação, tem conspiração, tem racismo, tem ódio aos políticos, tem um tom de superioridade moral e intelectual. Acho que consegui colocar tudo.
Esta quinta-feira, 10 de outubro, Joacine Katar Moreira foi ao “Programa da Cristina”. E em que é que isto resultou? Pérolas, senhores, pérolas. É ir ao Facebook do programa e ver alguns dos comentários. Entre os muitos elogiosos, claro — também os há, e felizmente até são a maioria — há outros escritos pelos tais chicos-espertos-da-net-que-acham-que-ninguém-os-toma-por-parvos. E são só hilariantes.
Não há nada mais parvo do que acharem que não nos tomam por parvos. Toda a gente nos toma por parvos todos os dias, nas mais variadas situações. A única questão aqui é que quando somos enganados não sabemos que estamos a ser enganados, logo, estamos só a ser parvos, sem consciência disso. Nos tempos que correm, em que o digital nos está nas veias, em que fervemos em pouca água quando estamos em frente a um monitor ou com um telemóvel na mão, vemos problemas e conspiração onde não existem porque não queremos perder dois minutos a tentar entender um tema. Deixámos de pensar, porque isso dá muito trabalho, e deixamos que os outros pensem por nós, e nós limitamo-nos a fazer uma partilha do que os outros pensam, acompanhados daquele comentário: “É tão isto”.
A história de Joacine está a ser posta em causa apenas porque é demasiado perfeita. E bonita. E ainda bem que o é. Só que as histórias perfeitas e bonitas irritam as pessoas tristes e de mal com a vida, que tudo farão para que quem vive uma história feliz possa cair, mergulhar na lama e juntar-se a todos os que, como essas pessoas, vivem as suas vidas tristes, aborrecidas e miseráveis.
Joacine Katar Moreira disse em entrevista a Ricardo Araújo Pereira que gagueja quando fala, mas não gagueja quando pensa. Só é pena vivermos numa era em que poucos gaguejam quando falam mas cada vez mais gaguejam quando pensam.