O sonho de ser mãe existia desde pequena. Sandra Marcos, de 46 anos, queria dar esse passo quando tivesse a vida organizada e descoberto aquele que queria que fosse o pai dos seus filhos. E assim aconteceu. Estávamos em 2006 e Mónica foi o nome escolhido para a bebé que aí vinha. A 28 de dezembro, na última ecografia realizada às 33 semanas, a bebé desceu de percentil — de 50 para 25 — e Sandra também notou uma diminuição dos movimentos fetais.

A auxiliar de ação educativa residente em Alcochete recorda ter comentado esse facto com a médica obstetra que a seguia. “Disse-me que era normal, para não me preocupar”, relembra, em entrevista à MAGG. De acordo com a médica, o “preocupante” seria o percentil estar inferior a dez. Quanto aos movimentos fetais sofrerem uma atenuação, tal situação era “normal” pelo pouco espaço que a bebé tinha dentro da barriga. Na cardiotocografia — um exame não invasivo de avaliação do bem-estar fetal e comummente denominado de CTG ­ — Mónica apresentava batimento cardíaco, mas não mexia.

“A médica disse-me para, no próximo CTG em janeiro, comer qualquer coisa antes de chegar. Fui para casa descansadíssima. Era uma gravidez de primeira viagem e se a obstetra dizia que era tudo super normal, que estava tudo saudável e que corria tudo bem, eu não desconfiei.” Na mesma consulta, a médica informou-a de que a indução do parto iria ser marcada provavelmente para 11 janeiro, uma vez que Sandra já estava com peso a mais.

Até então, e apesar dos 20 quilos a mais, a gravidez estava a ser “fantástica”, apesar de todos os enjoos e vómitos. “Foi uma gravidez impecável, sem nenhum susto. Nunca houve nada de suspeito nas ecografias”.

Há alguns sinais de alerta que podem indicar que algo de errado se passa com o bebé. Segundo a médica obstetra Paula Ambrósio, o mais frequente é “a perda de sangue por via vaginal, acompanhada ou não, por dores pélvicas. A partir do momento em que já são percecionados movimentos fetais, a ausência dos mesmos também pode ser sinal de que algo não está bem.”

Estávamos a 4 de janeiro de 2006 e era o dia de realizar o novo CTG. Sandra Marcos lembra-se de ter acordado “muito bem-disposta”. Afinal de contas, estava tudo bem e dali a uma semana iriam finalmente conhecer Mónica. Foi buscar o marido ao trabalho e seguiram para a maternidade.

Estava a ser difícil encontrar o batimento cardíaco da bebé: primeiro foi a assistente, depois a médica. Nada. Sandra seguiu para o ecógrafo. “Depois de ver a ecografia, a médica olhou para mim e disse-me que teria de ir imediatamente para o hospital. Perguntei-lhe o que é que estava a acontecer, mas apenas me entregou uma carta para dar à colega. Perguntei novamente o que é que estava a acontecer com a bebé. Ela agarrou-me a mão e disse-me: ‘Sandra, não lhe posso prometer que a sua filha esteja viva’”.

Como é que a minha filha morre dentro da minha barriga? O que é que que fiz para a ter matado? Porque só podia ter sido eu, não podia ter sido mais ninguém”

Na altura, Sandra pensou que a bebé estaria a “passar por alguma situação complicada”, mas nunca o desfecho que acabou por ter. A mulher de agora 46 anos dirigiu-se ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e explicou à médica o porquê de estar ali. “Deitei-me na marquesa e começou a fazer-me várias perguntas: de quanto tempo estava, como é que se chamava a menina, etc.. De repente faz um silêncio brutal. Mandou-me vestir e sentar. Pegou na minha mão e disse-me: ‘Lamento informá-la, mas a sua menina faleceu’. Naquele momento eu só queria morrer com ela.” Mónica tinha 37 semanas e meia.

De acordo com a obstetra Paula Ambrósio, há dois tipos de perda gestacional e que estão relacionados com a fase em que a gravidez para de se desenvolver. Se acontecer até às nove semanas e seis dias, denomina-se de perda embrionária. A partir das dez semanas chama-se perda fetal.

O futuro para Mónica, idealizado durante a gravidez, tinha deixado de existir. E o sentimento de culpa começou a surgir para Sandra. “Como é que a minha filha morre dentro da minha barriga? O que é que que fiz para a ter matado? Porque só podia ter sido eu, não podia ter sido mais ninguém.”

Seguiram-se 38 horas de trabalho de parto normal. Sandra não quis, naquele momento, ver a filha. “O sentimento de culpa era muito grande. Não merecia sequer olhar para a cara dela. Entretanto vi-a. No dia 9 eu e o meu marido acordámos muito cedo. O Paulo fazia questão de ver a filha. Acabei de ir com ele e fomos conhecê-la antes da autópsia”, conta. Mónica foi enterrada a 11 de janeiro, no dia em que estava marcado o seu nascimento.

Sandra e o marido queriam respostas para o que tinha acontecido. A auxiliar de ação educativa precisava delas para tirar a culpa de cima. A autópsia foi realizada, bem como todos os estudos ao cordão umbilical, líquido amniótico, exames de genética, entre outros, mas os resultados não foram os esperados: não havia motivos para a morte da filha e, como tal, iria assumir-se como uma morte súbita no útero.

“Nesse momento entrei numa espiral ainda maior do que aquela que tinha estado até aí, porque se não havia motivos científicos, então era eu quem a tinha matado. Para a minha sanidade mental eu precisava mesmo de um motivo ou até mesmo que tivesse sido culpa minha.”

Nos primeiros dois meses ainda me permitiam chorar, mas depois ouvi ‘Ainda estás a falar do mesmo? Tens de continuar a tua vida. Segue em frente’. Mas eu perdi uma filha, não perdi uma pulseira"

Um dos equívocos comuns sobre o aborto espontâneo é que uma mulher “estará menos triste se perder o bebé no início da gravidez”, começa por dizer a psicóloga Cristiana Pereira. Porém, a maioria dos estudos não indica “uma associação entre a duração da gestação e a intensidade do luto, ou seja, uma mulher que perdeu o filho às 11 semanas pode estar tão perturbada quanto uma mulher que perdeu o filho às 20 semanas”.

Do mesmo modo, as mulheres também tendem a procurar uma explicação para o sucedido e a culpa é um sentimento comum. “Muitas vezes, surge a culpa, apesar de não existir prova nenhuma de que algo aconteceu por culpa delas, mas ajuda-as na tentativa de compreender. É uma forma de lidar com a perda e podemos olhar para isso como uma parte do processo do luto.

A culpa acompanhou Sandra Marcos durante muitos anos. Foi um longo processo que só mudou há cerca de quatro anos. Conhecer outras mulheres que tinham passado pela mesma situação, nomeadamente na Associação Artémis, fê-la perceber que não era a única e que era uma situação que acontecia. “Começou a existir uma partilha e entendi que, se calhar, eu não tenho culpa. Se calhar aconteceu. E à pergunta que eu fazia  de ‘Porquê eu?’, decidi ser um bocadinho menos arrogante e pensar ‘Porque não eu?’”.

A mulher residente em Alcochete teve ainda de lidar com a “exigência” por parte da sociedade em não chorar a morte da filha. “Nos primeiros dois meses ainda me permitiam chorar, mas depois ouvi ‘Ainda estás a falar do mesmo? Tens de continuar a tua vida. Segue em frente’. Mas eu perdi uma filha, não perdi uma pulseira. Foi muito complicado, mesmo com a própria família. E quando conheci a Mónica, prometi-lhe que não ia deixar que ninguém a esquecesse.”

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Por vezes, amigos e família podem dizer “tudo o que não se deve”, mesmo que seja com a melhor das intenções. "Aconteceu porque tinha de acontecer", "Deus quis assim", "Foi melhor ter acontecido agora do que mais tarde", "Podes sempre engravidar outra vez”, entre outras, são algumas frases que podem ser ouvidas.

Nós costumamos dizer que somos três cá em casa, mas batem cá quatro corações. A Mónica existe na minha vida, existe na minha casa”

Para a psicóloga Cristiana Pereira, “as mulheres muitas vezes sofrem sozinhas, porque, embora esperemos que haja alguma fase de ‘sofrimento normal’, a maioria dos amigos e familiares está ansiosa pela sua rápida recuperação e que volte ao seu funcionamento normal, descartando, talvez, a profundidade da sua dor. Isso, por sua vez, pode deixá-la a sentir-se incompreendida e levá-la ainda mais ao isolamento”.

Sete meses depois da morte de Mónica, Sandra descobriu que estava grávida. “Queria muito ficar grávida, mas o saber que estava grávida foi um reviver de tudo. As 39 semanas de gravidez do meu filho foram terríveis.” Vasco tem hoje 12 anos e sabe que tem uma irmã que morreu.

Foi há 13 anos que Mónica foi dada como morta. “Faz-me falta todos os dias. Todos os dias me lembro dela. Falta o cor-de-rosa da minha vida. Nós costumamos dizer que somos quatro cá em casa, mas só batem cá três corações. A Mónica existe na minha vida, existe na minha casa”, conclui.

Cibele desistiu de engravidar depois de cinco abortos espontâneos

No final de abril deste ano, Cibele Macau Ramos começou a ter sangramentos. Algumas semanas antes, assim que soube que estava grávida, a mulher de 42 anos recorreu a uma obstetra de gravidezes de risco que a colocou de baixa em casa. Quando os sangramentos surgiram, dirigiu-se primeiro ao Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca e, posteriormente, ao Hospital de Cascais e sempre lhe foi dito que “não era nada”. Repouso, nada de esforços e recorrer às urgências caso a hemorragia fosse “tipo menstruação” e as dores fortes, foram as indicações dadas pelos médicos.

Estava dentro de mim, a minha obrigação era proteger esse ser e não consegui fazê-lo. A culpa é e será sempre minha”

A empregada de quartos natural de Sintra recorda que tal nunca aconteceu. Seguiram-se mais duas semanas com sangramentos muito ligeiros e poucas dores. “Quando a meio de maio fui fazer a ecografia do primeiro trimestre, já não havia nada a fazer, já estava a limpar”, conta, à MAGG.

Segundo a médica obstetra Paula Ambrósio, existem várias causas para os abortos espontâneos acontecerem, sendo que as alterações nos cromossomas são as mais frequentes — cerca de 60% dos casos. “Isto não quer dizer que haja algum problema com os pais, tem habitualmente a ver com alterações na divisão das células que originam um produto de conceção com cromossomas alterados e que, como tal, não se pode desenvolver de forma normal”, explica.

Outras causas podem ser:

— Alterações da anatomia feminina (por exemplo septos uterinos ou miomas muito volumosos);

— Trombofilias (situações em que o sangue da mãe fica muito espesso e forma pequenos coágulos a nível da placenta);

— Doenças médicas mal controladas (por exemplo, diabetes ou doenças da tiróide).

“Foi psicologicamente muito difícil lidar com esta perda, foi diferente. Não estava preparada. É complicado levantar de manhã de ventre vazio. Embora ainda estivesse cá dentro, já era meu, já estava na minha vida e isso desapareceu de um minuto para outro.”

Tal como aconteceu com Sandra, o sentimento de culpa apareceu. “O primeiro pensamento é: o que é que eu fiz de errado? Muita coisa me passa pela cabeça. Mas a pior, a que está sempre presente, quer na hora da notícia, até hoje, é que a culpa foi minha. Estava dentro de mim, a minha obrigação era proteger esse ser e não consegui fazê-lo. A culpa é e será sempre minha.”

Na terceira perda o embrião ficou-me literalmente na mão, na minha casa de banho. Nem sei descrever o que senti naquele momento”

Esta não foi a primeira vez que Cibele sofreu um aborto espontâneo — foi a quinta. A primeira aconteceu em outubro de 2016, quando já era mãe de uma menina. “A primeira vez foi um choque. O mundo caiu, abriu-se um buraco debaixo dos nossos pés. É um vazio dentro de nós. Logo que soube que estava grávida, mesmo que não fosse intencional, fizemos castelos no ar com os filhos que vão chegar. Foi como se me tivessem puxado o tapete debaixo dos pés, sem pré-aviso, e depois foi muito difícil levantar-me e andar de novo.”

A segunda perda aconteceu em setembro de 2017 e a terceira e quarta em março e dezembro de 2018, respetivamente. “Na terceira perda o embrião ficou-me literalmente na mão, na minha casa de banho. Nem sei descrever o que senti naquele momento.”

Todos os abortos aconteceram entre a sétima e a décima semana de gestação. Todas as perdas aconteceram como aborto espontâneo, sem necessidade de recorrer a ajuda médica, uma vez que o próprio organismo “expulsava tudo”.

A médica obstetra Paula Ambrósio explica que, normalmente, “a grande maioria ocorre até ao final do 1.º trimestre, ou seja, até às 14 semanas de gestação. No entanto, o mais comum é mesmo até às dez semanas”.

Depois do terceiro aborto, Cibele Macau Ramos e o marido realizaram vários exames e análises. A empregada de quartos foi diagnosticada com trombofilia. A trombofilia caracteriza-se por uma maior propensão para formar coágulos de sangue, o que aumenta o risco de complicações como o acidente vascular cerebral (AVC) ou a embolia pulmonar, por exemplo. Um dos principais sintomas são abortos de repetição, parto prematuro ou complicações na gravidez.

Infelizmente, as pessoas tendem a desvalorizar o que sentimos. Ninguém é coitadinha porque perdeu um filho que estava a crescer dentro de si, mas temos a nossa dor, física e psicológica, e nada apaga isso"

Nas gravidezes seguintes, Cibele passou a administrar diariamente uma injeção de heparina —  um anticoagulante injetável utilizado para impedir a formação de coágulos de sangue — na barriga, que se revelou insuficiente. Neste momento, não está a tentar engravidar, uma vez que o recomendado é existir um tempo de espera depois de um aborto.

Cibele Macau Ramos vai buscar forças à família e aos amigos. O amor que tem à sua volta alivia a dor. Mas há ainda quem não a compreenda. “Se já tem uma filha, porque é que se vai meter em trabalhos com mais uma criança?”, foi o que ouviu por parte da técnica que confirmou o aborto da última vez.

A sociedade também esconde o assunto. “Contra mim falo, também tenho escondido sempre, não por vergonha, mas é só para não ter que responder a perguntas. Infelizmente, as pessoas tendem a desvalorizar o que sentimos. Ninguém é coitadinha porque perdeu um filho que estava a crescer dentro de si, mas temos a nossa dor, física e psicológica, e nada apaga isso. E essa dor é só nossa, é só minha”, finaliza.

Aprender a viver a dor “com sabedoria” depois de perder duas filhas após as 35 semanas de gestação

Sandra Oliveira, de 43 anos, nunca sonhou em ser mãe até que aconteceu. A possibilidade de ter filhos esteve sempre em aberto, e acabou por  acontecer naturalmente. Engravidou pela primeira vez aos 35 anos e, ainda que fosse uma gravidez não planeada, foi com muita alegria que Sandra e o marido a receberam. Estávamos em fevereiro de 2011.

Existia uma grande expectativa dos nossos pais em serem avós pela primeira vez e foi muito duro para mim lidar com a essa expectativa defraudada”

Mas já depois das 35 semanas de gestação percebeu que algo não estava bem com a bebé. “Percebi muito em cima do sucedido que algo não estava bem e pedi ajuda à minha médica que me encaminhou logo para o Hospital de Aveiro”, conta, à MAGG. De repente, a advogada natural de Lisboa tinha deixado de sentir a filha Raquel. A bebé deixou de ter batimentos cardíacos e já não havia nada a fazer. Sandra teve de realizar um um parto de um nado-morto.

“Foi um choque terrível por se tratar já do final da gestação e por existir uma enorme expectativa para receber um bebé na família, visto que sou filha única e na época das perdas era neta única. Existia uma grande expectativa dos nossos pais em serem avós pela primeira vez e foi muito duro para mim lidar com a essa expectativa defraudada.” Os tempos que se seguiram foram de um “enorme vazio” e de um “silêncio ensurdecedor” em casa.

Não foram feitas quaisquer análises ou estudos à situação, uma vez que se suspeitou que a morte havia sido provocada pelo facto de o cordão umbilical se encontrar enrolado ao pescoço da bebé.

Em 2013, Sandra Oliveira voltou a engravidar. Estava com mais de 35 semanas de gravidez quando, em outubro desse ano, o que mais temia voltou a acontecer: a bebé, de seu nome Rita, tinha deixado de realizar movimentos fetais, bem como perdido os batimentos cardíacos. O parto estava previsto para o dia seguinte que, por cautela, já tinha sido antecipado pela médica que a seguia. Não foi o suficiente para evitar este desfecho.

A dor psicológica é muito mais forte que a dor física porque se entranha em nós. Cabe-nos a nós escolher como deixamos que ela se entranhe: de forma leve ou de forma pesada. Foi a leveza que aprendi no processo"

Foi depois destes dois abortos sucessivos que Sandra Oliveira, tal como Cibele Macau Ramos, foi diagnosticada com trombofilia na maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra, um dos poucos locais no País onde existe um maior estudo, acompanhamento e recursos para a supervisão desta patologia.

“O sol deixou de brilhar na nossa vida. É uma revolta imensa por não ser como as ‘outras’ mulheres que têm filhos sem quaisquer problemas como é suposto acontecer. Afinal ter filhos é uma tecnologia humana desde o início da humanidade, não é? Como é possível que corra mal? E como é possível que me corra mal a mim?”, questiona.

Nos momentos das perdas, Sandra refere ter gerido tudo com “muita objetividade”. Só meses mais tarde é que conseguiu chorar e sentir de facto a “desgraça emocional” em que se encontrava. “Para mim foi um processo de luto longo.”

Os dias seguintes à perda são importantes para o desenvolvimento do luto. Segundo a psicóloga Cristiana Pereira, o processo do luto compreende três etapas:

  1. Choque/negação: “Isto realmente não está a acontecer, estou a cuidar bem de mim mesma”, “Talvez os médicos estejam errados… talvez eu ainda esteja grávida.”
  2. Raiva/Culpa/Depressão: “Porquê eu? Se eu tivesse…”, “Eu sempre quis tanto ser mãe, isto não é justo!”, “Sinto-me tão triste, mais do que alguma vez me senti.”
  3. Aceitação: “Tenho de lidar com isto, não sou a única que passou por isto. Outras mulheres já passaram por isto, talvez devesse pedir ajuda.”

Ainda assim, “a aceitação não significa que a mulher esteja bem com o que aconteceu, significa que começa a aceitar que o que aconteceu é real e sente-se preparada para procurar ajuda profissional ou partilhar as suas experiências”.

Nesse processo a dor psicológica acaba por ser difícil de suportar. “A dor psicológica é muito mais forte do que a dor física porque se entranha em nós. Cabe-nos a nós escolher como deixamos que ela se entranhe: de forma leve ou de forma pesada. Foi a leveza que aprendi no processo. Eu optei por viver com a dor, mas saber como geri-la, sem que ela me pese demasiado e sem que eu a carregue”, explica.

Foi na hipnose que a advogada natural de Coimbra encontrou um modo para gerir a dor. “Para mim ela [a dor] hoje faz parte de quem sou, mas vivo-a com sabedoria e até com alegria pelo que me permitiu conhecer de mim própria, pela força que me deu de assumir que queria ser mãe e pela gratidão que em mim depositou por perceber que tenho tudo o que preciso para ser feliz e que, por isso, faz sentido ajudar outras mulheres com trombofilia a fazerem o seu próprio caminho, seja ele qual for.”

Quando foi conhecer os resultados da trombofilia, Sandra Oliveira ia completamente decidida em não voltar a engravidar. Queria apenas uma explicação científica para perceber o que se passava consigo. Foi então que a possibilidade de adoção começou a ser uma vontade, algo que ainda hoje o é — mesmo que tenha voltado a engravidar em novembro de 2017, com 42 anos. Hoje é mãe do João, de 1 ano.

“A Raquel e a Rita fazem parte do meu pó de estrelas privativo que dá leveza à minha vida e a sua memória ajuda-me a consolidar o meu propósito de vida de forma mais plena e consciente”, conclui.

“Cada perda era, ao fim ao cabo, sentir-me diminuída como mulher. Eu não era capaz”

Em outubro de 2006, e depois de muitos planos, Cláudia Costa preparava-se para ser mãe pela primeira vez. Engravidou com facilidade, pois não havia nada que indicasse a existência de algum problema. Mas às cinco semanas começaram as hemorragias. A mulher natural do Fundão dirigiu-se às urgências e de lá foi mandada para casa. Uma semana depois já tinha perdido o bebé por expulsão natural.

“Não o temos nos braços mas já é alguém, já faz parte de nós, já é alguém que nós começamos a amar e no qual criamos os nossos sonhos. Então é ver tudo isso a ir por água abaixo”, começa por contar Cláudia Costa, de 41 anos, à MAGG.

O médico disse-me que não sabia o que me fazer mais e que deveria ficar ao meu critério se queria voltar ou não a engravidar. Aí bati no fundo, porque achei que não iria mesmo conseguir ser mãe"

A vontade de ser mãe era grande e a professora natural do Fundão voltou a engravidar poucos meses depois. Estava de 11 semanas de gestação quando, em maio de 2007, descobriu que o desenvolvimento do bebé já tinha parado às 7 semanas. Passar novamente por um aborto fez com que Cláudia começasse a achar que não conseguiria ser mãe. “Da primeira vez, e apesar de obviamente me ter custado muito, aceitei como algo que aconteceu e acabei por recuperar mais facilmente, mas da segunda vez não.”

Na altura, o médico que a seguia disse-lhe que até à terceira perda não se iria investigar porque era normal acontecer. De acordo com a obstetra Paula Ambrósio, até às duas ou três perdas gestacionais, a situação é considerada “normal”, isto é, à partida não existe uma causa que as justifique. “Quando existem mais de três estamos perante a chamada perda gestacional recorrente e aqui já há indicação para fazer exames de diagnóstico. No entanto, esta situação afeta apenas 2 a 3% dos casais”, explica.

No final de 2008, Cláudia Costa descobriu que estava novamente grávida. Estava de 7 semanas. No entanto, a felicidade durou pouco tempo e acabou por sofrer novamente um aborto. Devido a uma infeção que apanhou, os médicos não conseguiram fazer nenhum tipo de estudo ou teste.

Os dias que se seguiram foram desesperantes. Parece que só ouvimos bebés, que só vimos mulheres grávidas"

A mulher natural do Fundão começou a ser acompanhada nos Hospitais da Universidade de Coimbra e foi aí que começaram os estudos. No entanto, não havia nada que aparentasse estar errado.

Mas esta não seria a última perda. A quarta aconteceu em novembro de 2009 e estava de 9 semanas. “Foi um desespero ouvir novamente essa notícia. O médico disse-me que não sabia o que me fazer mais e que deveria ficar ao meu critério se queria voltar ou não a engravidar. Aí bati no fundo, porque achei que não iria mesmo conseguir ser mãe. Os dias que se seguiram foram desesperantes. Parece que só ouvimos bebés, que só vemos mulheres grávidas. Cada perda era, ao fim ao cabo, sentir-me diminuída como mulher. Eu não era capaz.” Enquanto casal decidiram adiar a questão de ter filhos.

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Em 2013, o Centro de Fertilidade da Covilhã estava a ter bons resultados e procurava mulheres que conseguissem engravidar, mas que tivessem dificuldades em levar a gravidez até ao final — que era o caso de Cláudia. Acabou por marcar uma consulta e começou a ser acompanhada. “A única coisa que me detetaram foi que tinha numa parte do útero as paredes coladas, o que terá sido provocado por causa de ter ido ao bloco operatório aquando um dos abortos.” A professora acabou por ser intervencionada em junho e recebeu luz verde dos médicos para tentar engravidar.

Em novembro desse ano descobriu que estava grávida e em agosto de 2014 foi mãe de um menino. “A gravidez foi horrível pelos receios antigos. De 15 em 15 dias estava nas urgências a chorar porque achava que as coisas não estavam bem. Na parte física correu tudo muito bem, mas a parte psicológica foi muito difícil. Mas correu tudo bem”, finaliza.

“O tempo ameniza a dor, mas nunca se esquece”

Ana Simões já era mãe de uma menina quando decidiu que lhe queria dar um irmão ou uma irmã. No final de 2016 soube que estava grávida. Mas foi cedo que os sinais de alarme começaram a aparecer. Depois de fazer um treino de marcha, a fisioterapeuta de profissão começou a sentir umas picadas acompanhadas por uma sensação estranha. Foi à casa de banho e percebeu que estava a perder sangue. Dirigiu-se ao serviço de obstetrícia e fez uma ecografia. A médica que a atendeu informou-a de que, naquele momento, o bebé estava bem, mas que era preciso apenas vigiar. Caso voltasse a perder sangue ou outro sintoma qualquer deveria voltar.

Na mesma semana, os sangramentos voltaram e regressou ao hospital para ser observada. As indicações que recebeu foram as mesmas. Na semana seguinte, já com 10 semanas de gestação, as perdas de sangue continuaram. Estávamos a 29 de dezembro de 2016. “Só que dessa vez o coraçãozinho do bebé já não batia. A minha médica disse-me: ‘Desta vez não correu bem" e abraçou-me. Foi a pior notícia que podia ter recebido e fui acolhida com tanta empatia. Nunca irei esquecer o gesto de tanta humanidade naquele momento”, recorda Ana Simões, de 36 anos, à MAGG.

Não era pouco mais que uma menstruação. Era o meu bebé. Era o Francisco ou a Clara. Eram os planos e as expectativas que tínhamos criado. Eram sonhos. Eram roupinhas que já tínhamos comprado"

A mulher natural de Viana do Castelo voltou a ser examinada e foi-lhe administrada medicação para provocar o aborto. A noite foi passada no hospital e recebeu alta no dia seguinte. “Senti que o meu bebé me estava a ser arrancado. Passar por essa situação foi muito duro, talvez a experiência mais dura pela qual passei na vida. Além da dor física há uma dor emocional tão profunda, tão grande que não cabe em nós, e que ao mesmo tempo sentimos que não a podemos extravasar, porque as outras pessoas se sentem constrangidas quando falamos nisso. É uma dor muito solitária e é algo que nunca se ultrapassa.”

Segundo a médica obstetra Paula Ambrósio, em todo o mundo, a média de gravidezes que terminam com uma perda gestacional varia entre os 15 e os 25%.

As palavras que ouviu por parte do médico que lhe deu alta vão ficar para sempre gravadas na memória de Ana: perguntou-lhe para que é que ela queria a baixa, já que “aquilo pouco mais era do que uma menstruação”. “Senti-me ofendida com a superficialidade com que o disse. Não era pouco mais que uma menstruação. Era o meu bebé. Era o Francisco ou a Clara. Eram os planos e as expectativas que tínhamos criado. Eram sonhos. Eram roupinhas que já tínhamos comprado. Ironicamente tínhamos uma babete a dizer ‘Sou a tua estrelinha da sorte’. E agora é mesmo.”

A culpa, um sentimento tão comum a todas as outras mães, não abandonou Ana Simões. Pensa-se em muita coisa “má”. “Será que foi algo que eu fiz que provocou isto? Será que foi do treino de marcha?”. Os dias que se seguiram foram “complicados” e acompanhados por uma “dor muito intensa”. “Não importa há quanto tempo o bebé está connosco. É a perda de um filho. É um luto no qual não há corpo, não há funeral, não há campa para ir pôr flores. O tempo ameniza a dor, mas nunca se esquece.”

Numa perda em que a gravidez ainda tem tão pouco tempo, as pessoas não compreendem que haja aquela dor toda, não compreendem que se faça um luto por causa disso”

A fisioterapeuta de profissão agarrou-se à filha mais velha, que a tirou do estado de dor pela perda do bebé. “Foi pensar nela que me salvou. Na noite em que perdi o meu bebé tive tempo para pensar em muita coisa, inclusive em suicídio. Estive a noite toda acordada. Pensar nela fez-me ter a certeza de que nunca o poderia fazer. Foi a minha razão para lutar para sair do fundo do poço”, admite.

A mulher natural de Viana do Castelo considera que a perda gestacional é um tabu na sociedade. É algo pouco compreendido e até desvalorizado. “Quando é uma perda gestacional no segundo ou terceiro trimestre as pessoas já ficam com pena e percebem que é algo muito difícil, porque o bebé já era grande. Ou então, se a perda for depois do bebé ter nascido. É uma dor que é compreendida e aceite. Mas numa perda em que a gravidez ainda tem tão pouco tempo, as pessoas não compreendem que haja aquela dor toda, não compreendem que se faça um luto por causa disso.”

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De acordo com a psicóloga Cristiana Pereira, a perda gestacional é “um evento chocante e traumático” para as mulheres e para as suas famílias. Porém, é algo que é sofrido em grande parte pela mãe, sozinha. “O impacto do aborto é frequentemente subestimado. No entanto, trata-se de uma perda traumática, não apenas da gravidez, mas do sentido da identidade de uma mulher e das suas esperanças e sonhos do futuro. Várias mulheres que passaram por este processo referem que sentem um determinado tabu em relação a este tema, pois sentem que a perda de um bebé ainda em gestação não é considerada uma perda de um filho por grande parte das pessoas”, explica.

Ana Simões sofre de síndrome do ovário poliquístico. Este síndrome, que afeta um grande número de mulheres em plena idade fértil (6%), pode resultar numa maior dificuldade em engravidar. Ainda assim, conseguiu voltar a ser mãe. “Tenho uma filha com 5 anos e um bebé com 16 meses. São filhos maravilhosos. Muito amiguinhos um do outro. Inseparáveis. Ela super animada, ativa, com uma personalidade forte. Ele muito doce, meigo, calmo”, conclui.