Foi por muito pouco que o teto não lhe caiu em cima. Maria (nome fictício) tinha o telhado da casa onde quase sempre viveu prestes a ruir. Entre as madeiras podres, conseguia ver os ratos a passear, os mesmos que lhe entravam pelo T2 de 40 metros quadrados adentro, aquele que foi dos seus pais e que agora é seu, aquele que, tal como ela, terá pouco mais de 50 anos, aquele que há décadas não sofria qualquer tipo de manutenção.

Já saia pouco de casa, porque o embate da abertura e do fecho da porta podiam levar o teto a ceder. Além disso, a chuva não tinha dificuldades em entrar. A água acumulada conseguia ser tanta que esta mulher precisava de um caixote de lixo municipal para evitar uma inundação. A sujidade surgia em quantidades agravadas, porque também o acesso à habitação era fácil. Para solucionar o problema de raiz, não havia dinheiro. Maria vive sozinha, não tem trabalho, nem qualquer fonte de rendimento.

Não a conhecemos pessoalmente, porque tem uma consulta marcada. Mas há quem seja capaz de nos dar alguns detalhes da sua história. “Sofre de asma”, diz à MAGG Guilherme Fogaça, gestor de projetos da Just a Change, encarregue de supervisionar e ajudar nesta reabilitação. Do interior da casa já se vê o céu. O pó está por todo o lado, porque a obra acaba de arrancar, sob a alçada desta associação, que dá uma nova vida a casas em estado de degradação, de proprietários carenciados, sem meios. Não há mobília, exceto numa pequena divisão, onde cabem todos os pertences de Maria. Ao contrário de muitos outros beneficiários, esta mulher não é uma acumuladora.

A Just a Change já trabalhou com mais de 3500 voluntários — incluindo corporativos, como é o caso da CBRE

A pobreza habitacional, explica Rita Lucena, coordenadora de comunicação e angariação de fundos da Just a Change, é uma verdade que existe em grande escala, sobretudo nos grandes centros urbanos. Mas está escondida e pode muito bem viver na casa do nosso vizinho: as paredes são capazes de vedar a realidade em que ali se vive, e quem mora nestas circunstâncias não gosta de se expor.

De acordo com a Just a Change, há mais de 500 mil portugueses a sofrerem de pobreza habitacional. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística:

  • 4,7% da população sofre de privação severa de bens materiais;
  • 23% da população não consegue manter a casa quente;
  • Há um aumento de 28% da mortalidade no inverno quando comparado com outros países da UE;
  • Mais de 160 mil pessoas não podem tomar banho em casa;
  • Mais de 50 mil pessoas não têm água canalizada nem saneamento.

“Têm vergonha de mostrar a casa, porque sabem que está em péssimas condições”, diz. “Têm vergonha, porque muitas vezes foi alguma situação na sua vida que a levou a este estado de degradação”, acrescenta Rita Lucena. Nas cidades, relata, o isolamento é maior comparativamente aos meios rurais, em que toda a gente se conhece, acabando por haver mais ajuda — e onde a Just a Change opera com os campos de verão (este ano serão oito, para a reconstrução de mais de 40 casas, cada um com mais de 50 voluntários, em vários pontos do País).

Remoção do telhado, construção de laje, construção de um telhado e respetiva estrutura, instalação de tetos em pladur, reparação e pintura de paredes interiores, reparação e pintura da fachada exterior. É nestes trabalhos (cujo orçamento total é de 8.394,24€) que várias equipas de voluntários Just a Change — a trabalharem por turnos — se vão concentrar nas próximas seis semanas, a duração estimada da intervenção em casa de Maria, que também está envolvida na obra, como acontece com todos os beneficiários. É que mantê-los por perto, não só é importante para se colmatar a sensação da invasão na esfera privada destas pessoas, como facilita este processo, em que se tentam reerguer vidas, a partir da habitação. “Se forem fisicamente aptos, ajudam os voluntários. Caso contrário, estão presentes, a acompanhar e a conversar”, conta Rita Lucena.

O telhado de Maria está a ser substituido. Estava quase a ruir

Com um mestre de obras nos comandos, e com a presença permanente de um voluntário mais experiente, as equipas que intervêm na reabilitação das casas em Lisboa e no Porto (o programa é o Turn Up) são sempre formadas por voluntários (maioritariamente estudantes universitários, mas também muitos estrangeiros que procuram turismo de impacto), que se comprometem nas datas estipuladas (e que lhes forem mais convenientes), no decorrer de um semestre. Qualquer pessoa se pode inscrever — e as empresas não ficam de fora. Tanto assim é que, esta segunda-feira, 24 de junho, é a vez da equipa da CBRE arregaçar as mangas e pôr as mãos na massa.

O trabalho junto da Just a Change começou há cerca de dois anos e meio, mas veio a intensificar-se com o tempo. Além do apoio financeiro, os membros desta empresa de consultoria no ramo imobiliário vão trabalhar para o campo.

“Já fizemos muitas coisas diferentes: além do apoio financeiro, já reabilitámos casas. Estivemos a trabalhar na instituição António Silva Leal, que acolhe raparigas e que foi identificada pela Just a Change. Passámos o dia a reabilitar o espaço”, conta Teresa Posser de Andrade, do departamento de comunicação e marketing desta empresa. “Este ano decidimos entrar nestas ações quinzenais em que cada colaborador CBRE se inscreve quando lhe é mais conveniente e dedica quatro horas a reabilitar uma casa. Este ano já trabalhámos na reabilitação de seis casas e, em termos financeiros, já reabilitámos integralmente quatro casas.”

Guilherme Fogaça, um dos gestores de projeto da Just a Change

Como é que a Just a Change dá conta das casas que precisam de reabilitação? “Temos entidades que nos sinalizam casos, como os técnicos sociais das Juntas de Freguesia, a Santa Casa da Misericórdia, Centros Paroquiais, o Banco Alimentar Contra a Fome. É quem está no terreno, é quem tem técnicos que prestam, muitas vezes, apoio domiciliário, de higiene ou refeição, por exemplo”, explica Guilherme Fogaça.

Só depois é que a bola passa para a associação. “Fazemos primeiro uma visita de levantamento de necessidades técnicas e orçamentação e priorização dos casos. Um telhado a cair é uma urgência, uma casa com crianças é uma urgência. Essas casas, no nosso esquema de prioridades, passam à frente”, completa Rita Lucena.

Além disso, há que responder a alguns critérios. “Está sempre dependente de muitas variáveis”, explica Guilherme Fogaça. “É necessário que haja financiamento [um dos maiores entraves ao trabalho da associação] disponível para a reabilitação, é preciso que a reabilitação tenha tarefas suficientes que justifiquem toda a mobilização dos nossos recursos — por vezes sinalizam casas com problemas numa torneira, ou numa janela, ou seja, pequenas reparações que não se enquadram nas nossas atividades —, é necessário verificar se é habitação própria ou chegar a acordo com o senhorio para que o beneficiário continue na casa após a intervenção.”

A mulher que tem 46 netos e uma casa renovada

É simples: basta ir ao site da associação e ver que programas é que estão disponíveis.

Neste momento é possível inscrever-se em dois:

  • Keep Up: decorre em Lisboa e no Porto, entre junho e setembro, e tem o formato de um bootcamp com a duração de uma semana — de segunda a sexta-feira, entre as 9h e as 18h.
  • Camp In: programa intensivo de 12 dias em formato de campo de férias, a decorrer em várias zonas rurais de Portugal.

Em todos os programas, o único requisito para ser voluntário Just a Change é que seja maior de idade.

Dona Ana (nome fictício), 64 anos, está toda vestida de negro e aguarda-nos na rua, sentada, acompanhada pelo seu pequeno cão. É viúva e sente saudades do marido, que morreu há sete anos. Casaram quando ela ainda era adolescente. A sua ausência fez com que tivesse deixado de gostar do Natal. “Vêm sempre aqui buscar-me, mas não quero ir”, conta.

A sua casa, onde agora mora apenas com o neto de 13 anos — que a trata por “mãe”, conta-nos — foi mais uma das habitações reabilitadas pela Just a Change. Apesar de agora serem só dois, o entra e sai que cruza aquelas portas é sempre grande. Naquele T3, onde vive há 20 anos, já moraram uma dezena de pessoas, em simultâneo, com muitas crianças incluídas. A casa dava sinais flagrantes de desgaste, ainda que a proprietária se esforçasse por manter a ordem. Mas não é fácil. E não admira: é que além de sete filhos, Ana tem 46 netos. Sim, 46.

O caso foi sinalizado pela Anadic, no contexto do Projeto Rotas do Bairro E7G, a mesma associação que, após a reabilitação, continua a acompanhar o caso de Ana. É assim que funciona sempre. “A reabilitação da casa é uma parte da solução para o problema, depois disso as assistente sociais continuam o trabalho delas”, explica António Belo, diretor da Just a Change.

“A pobreza habitacional é muitas vezes a causa de uma vida miserável. Pode ser a consequência de depressão, de problemas mentais, de desemprego. Quando se reabilita uma casa dá-se uma injeção muito grande de esperança e muito vezes é suficiente para dar força à pessoa para mudar a sua vida. Noutras situações é preciso acompanhar e trabalhar algumas raízes que levaram a este estado. É uma pescadinha de rabo na boca e é preciso quebrar o ciclo”, acrescenta.

Aqui a reabilitação (que custou 2.261,81€) não foi tão profunda, como no caso de Maria. Ana não precisou de sair de casa no decorrer das obras, porque não houve estruturas removidas e reconstruidas de raiz. A equipa de voluntários encarregou-se de limpar a habitação, de reparar a pintura das paredes e dos tetos interiores, assim como de substituir os interruptores, tomadas e pontos de luz.

“Estou muito contente com eles. Estou feliz com as obras que fizeram”, diz Ana, enquanto nos mostra a casa. Está tudo no sítio: camas bem feitas, sala arrumada, chão limpo, cozinha organizada. Na varanda há vasos com flores. As hortênsias chamam-nos à atenção. No quarto do neto, há um papel de parede verde, colocado por voluntários da Just a Change. “Foi ele que escolheu a cor”, diz Ana, referindo-se ao verde que cobre parte daquele quarto. “É do Sporting, sim”, confirma.

“Estamos a arranhar o problema ainda”

No nome Just a Change existe uma dualidade: a expressão tanto pode significar “só uns trocos”, como “só uma mudança”. Não é ao acaso que surge esta designação. Em 2009, António Belo, diretor da associação, na altura estudante, com 18 anos, começou, sem saber, o seu trabalho de empreendedorismo social pedindo apenas umas moedas, quando foi com quatro amigos tocar guitarra na rua. Com a caixa do instrumento aberta, lá iam caindo umas contribuições.

A associação já reabilitou 168 casas, incluindo oito anexos agrícolas. Renovou 40 Instituições particulares de solidariedade social. Ajudou mais de mil pessoas. E já contou com a ajuda de mais de 3.500 voluntários.

“Não é que sejamos grandes músicos, mas achámos que seria interessante. Estivemos a tocar duas ou três horas e no final tínhamos 40 ou 50€”, lembra. “Estávamos a pensar sobre o que fazer ao dinheiro e reparámos que havia uns quantos sem-abrigo na rua onde tínhamos estado a tocar. Oferecemos-lhes o jantar e fomos repetindo isto mais vezes.”

Perceberam que queriam criar uma mudança na vida de quem precisava, mas, ao explorarem o universo de apoio aos sem-abrigo, perceberam que havia já muitas instituições a fazerem um bom trabalho, de forma regular. “Fomos à procura de um problema que precisasse de resposta. Visitámos bairros sociais, falámos com muitas pessoas, com muitas associações e muitas falaram-nos deste problema que não conseguiam resolver, que é o da pobreza habitacional. Sabe-se pouco sobre ele e é enorme.”

Pela altura, a única resposta para o problema passava por criar bairros municipais. “Reabilitar a casa onde as pessoas estavam não era uma solução”, diz. Apesar de duas frentes no Porto e de uma Lisboa, e de em todos os dias úteis do ano terem obras a decorrer, António Belo considera que a Just a Change “quase não existe face ao problema, que são 500 mil portugueses”, diz. “Estamos a arranhar o problema ainda.”