Patrícia chega acelerada, depois de mais um dos almoços que organiza para festejar o seu aniversário. Acabou de fazer 43 anos, mas podiam ser os que calhassem. “Eu quero ser os anos todos que tenho”, escreveu no Instagram, a plataforma que a abriu ao mundo. A um mundo que sabe muito pouco sobre o que se passa no corpo feminino.
É instrutora de planeamento familiar natural, terapeuta certificada em apoio a reproduções medicamente assistidas e educadora para a saúde menstrual e fertilidade. Oi? Educadora para a saúde menstrual? Mas isso lá precisa de aulas? Oh se precisa.
Com muitos anos de consultas e milhares de mulheres que já lhe passaram à frente, Patrícia Lemos diz, sem medo — aliás, bastam dois minutos de conversa para perceber que é sem medo que fala sempre — que as mulheres não sabem o que realmente se passa no seu corpo. Principalmente quando o assunto é menstruação e fertilidade.
É fã de círculos de mulheres enquanto espaço de partilha, mas não é nada shanti-shanti. Acredita mais no poder do sono e de um cocó diário do que nas ervanárias. E tem esperança de, um dia, ver as mulheres a olhar mais para o seu muco cervical do que para as apps no telemóvel que lhe dizem quando está a ovular.
Quando, em 2010, as quatro paredes do consultório começaram a ficar apertadas para tanta vontade de partilhar, criou o Círculo Perfeito, uma plataforma educacional sobre o ciclo menstrual e a fertilidade. Aí desdobra-se em consultas — presenciais e online — workshops, e a página de Instagram, criada recentemente, na qual, com graça, vai dizendo umas verdades.
O que é que faz uma terapeuta menstrual?
Eu não sou terapeuta, eu sou uma educadora menstrual.
Começamos bem. [risos]
Essa coisa da terapeuta menstrual é uma coisa new age que foi inventada recentemente. Eu sou terapeuta, é verdade, trabalho com ferramentas esquisitas como hipnose clínica e terapia hipno-cognitivo-comportamental. Mas não ponho ninguém a dormir nem faço regressões a vidas passadas, nada dessas coisas. Na área da menstruação, o que eu faço é educação para a saúde menstrual e para a fertilidade.
Não me digo terapeuta porque não tenho por objetivo curar ninguém, mas tenho ferramentas para que as pessoas consigam perceber o que é que necessitam e de que ajuda concreta precisam para conseguir engravidar, para resolver amenorreias, para regular ciclos.
Como surgiu o Círculo Perfeito?
Surgiu depois de perceber a desinformação de quem me chegava. Criei a plataforma em 2010 e comecei a dar uns workshops. Pouco depois percebei que nos workshops iam pessoas que não queriam partilhar os seus problemas em público e passei a fazer sessões individuais. E de repente isto toma conta da minha vida.
E o Instagram, deu ainda mais visibilidade ao projeto?
Nem por isso, mas fez com que mudasse, principalmente, a faixa etária das pessoas que me procuram. Mas em 2018 ainda não estava no Instagram e já tinha chegado à milésima mulher no Círculo Perfeito.
Quantas mulheres já conseguiu que engravidassem?
Muitas. E normalmente vêm em último reduto. Já foram à bruxa, já acenderam velas e pensam "Vamos experimentar mais isto". Mas também tenho mulheres que vieram ter comigo depois de terem feito tratamentos porque não querem continuar nesse processo ou não podem, por questões financeiras.
Mas a Patrícia não é ginecologista nem endocrinologista?
Não, nem sou médica sequer. A minha história é longa. Em termos de interesse pela área, é uma coisa que vem desde miúda. Eu fui ginasta durante muitos anos. Fazia ginástica acrobática que é talvez o tipo de ginástica que faz o corpo menos feminino. E tinha muito orgulho naquilo, mas depois começa-te a bater a adolescência e percebes que não estás dentro do padrão. Comecei a olhar mais para o meu corpo, até porque como a minha mãe menstruou aos 9 anos, eu sempre tive a expetativa de que ia menstruar muito cedo. E nada.
E queria muito que esse momento chegasse?
Queria muito! Às tantas via as minhas amigas a menstruar, a crescerem-lhes as maminhas e ficavam todas redondinhas e eu que era capaz de ter uma colega com mais de trinta quilos a fazer o pino na minha mão, mas ainda não tinha período.
Achava que ia ser o meu bilhete de passagem para um outro lado. Mas não foi nada. As maminhas não cresceram, as ancas não arrendondaram, nada.
Mas lembra-se do momento da primeira menstruação?
Lembro-me perfeitamente. Até sei o dia, porque calha no aniversário de um amigo. Todos os anos lhe mando mensagem a dizer: "Parabéns a nós". [risos] Tinha 13 anos, quase 14 anos.
E a partir daí?
Fiz o percurso habitual. Tomei a pílula durante imensos anos por uma questão contracetiva. Se fosse preciso até usava preservativo também, porque filhos para mim não era uma questão. Era daquelas que tinha imensas viagens para fazer, imensa coisa para ver. Curiosamente, fui das primeiras do meu grupo de amigas a ser mãe. Casei aos 25 anos com o meu primeiro marido e, logo a seguir ao casamento, uma prima com a quem cresci morre de cancro de mama, com uma filha de sete anos. Aquilo abalou-me muito, estive sem trabalhar e perguntava-me muitas vezes: "Mas o que é que eu estou aqui a fazer afinal?"
Quando começo a fazer os acompanhamentos percebo que a maioria dos casais que lidam com a infertilidade não percebem nada do que lhes está a acontecer."
Trabalhava em quê na altura?
Dava aulas de inglês numa escola. É que a minha formação não tem nada a ver com isto. Estudei antropologia social, depois gestão de empreendimentos turísticos, termino com gestão e ainda faço um mestrado em estudos sobre mulheres e um outro em Sociedade, Risco e Saúde, no qual faço a tese sobre infertilidade. Depois estudo hipnose clínica em Londres e nos Estados Unidos e especializo-me em acompanhamento específico de casais em Procriação Medicamente Assistida e em acompanhamentos para casos de fertilização in vitro. É daqui que eu venho.
O que começa a acontecer é que quando começo a fazer os acompanhamentos percebo que a maioria dos casais que lidam com a infertilidade não percebem nada do que lhes está a acontecer. Foram para tratamentos de fertilidade porque cumpriram os protocolos todos: seis meses a um ano com sexo desprotegido, depois "Ai não aconteceu nada? Toma lá uma estimulação ovárica" e se mesmo assim não acontecer nada, são encaminhados para infertilidade.
E não é assim que o sistema deve funcionar?
Não, isso não faz sentido nenhum. Mas para mim não faz sentido desde sempre, porque desde miúda que estava familiarizada com método billings, que implica a observação do muco, o estar atenta ao calendário. Foi algo que a minha mãe me ensinou.
Tiveste uma mãe que te ensinou a fazer isso? Isso é raro.
Tenho perfeita noção de que venho de um meio privilegiado a esse nível. É por isso que este percurso está intrinsecamente ligado àquilo que aprendi desde sempre.
Esses métodos estão agora a ser mais utilizados, não estão?
Estão, por causa da porcaria das apps. As apps dividem o ciclo a meio e dizem-te: "É aqui que ovulas". Não é nada. Cientificamente, é impossível estar correto na maior parte das vezes, até porque já todas sabemos que não temos todas ciclos de 28 dias.
Aos poucos vamos percebendo que o ciclo menstrual não serve só para fazer bebés. Também serve para isso, claro, mas serve para saber se estás bem de saúde."
Não é matemática.
Não. Estes métodos requerem paciência e conhecimento. E vejo que as mulheres não têm conhecimento sobre o seu corpo, sobre a sua fertilidade, sobre o seu ciclo. Se te dói a cabeça tomas um Paracetamol, mas as dores de cabeça podem vir da postura, da falta de água, dos olhos, etc. E é esse trabalho que temos que fazer com o ciclo menstrual, algo que a ginecologia clássica não faz, que continua a resolver tudo com o fármaco.
Aos poucos vamos percebendo que o ciclo menstrual não serve só para fazer bebés. Também serve para isso, claro, mas serve para saber se estás bem de saúde.
É um indicador muito forte da saúde feminina?
É um barómetro vital se não tiveres umas palas nos olhos. A mulher tem que perceber que quando toma a pílula não está fértil, não está a ovular, o corpo não está para aí virado. Quando de repente deixas a pílula, o teu corpo pede outras coisas, tem outras necessidades que, eventualmente, com a pílula estavam supridas, e de repente deixaram de estar.
O corpo torna-se preguiçoso com a toma da pílula?
Eu costumo dar um exemplo: imagina que compras um carro, que estava no stand com zero quilómetros. Depois de dois anos, decides que não vais conduzir mais e pões na garagem. Ao fim de dez anos voltas a querer conduzir. O carro está impecável, certo? Mas pões a chave na ignição e nada. Os pneus estão em baixo, a bateria já foi, mil coisas. O corpo não fica preguiçoso, a pílula não provoca infertilidade, mas efetivamente, o teu corpo aos 18 anos, quando começas a tomar, e o teu corpo aos 28, quando deixas de tomar, têm exigências diferentes. Entretanto aguentou aulas de HITT cardio, níveis de stress, dietas, noites, copos, e no fim diz-te: "Cara amiga, se calhar não vai dar para fazer um bebé agora".
Que tipo de coisas entram em jogo para dar estabilidade ao corpo?
Quando as pessoas chegam à minha consulta, eu não pergunto apenas pela data da última menstruação. Eu quero saber mais sobre o sono, sobre a alimentação e até sobre o cocó dessa pessoa. É que o corpo reage num modo de sobrevivência e se, de um dia para o outro, cortas o intake calórico, por exemplo, o corpo adapta-se. Darwin dizia que não eram os mais fortes a sobreviver, mas sim os que se adaptam. E o corpo adapta-se, mas não o faz sem mandar uma fatura a 90 dias ou a três anos.
O corpo nunca está contra ti, o corpo está a fazer o melhor que consegue com o que tem.
Tudo isto são problemas do nosso século?
Portugal tem uma história pioneira e muito bonita em relação às sessões de planeamento familiar, à disponibilização de contraceção hormonal. Tudo isto é verdade. Mas vamos lá ver. A sua mãe alguma vez tomou a pílula?
Boa pergunta. Não sei.
Pois, boa pergunta. Provavelmente não. A minha avó fez agora cem anos e nunca tomou a pílula, a minha mãe nunca tomou a pílula. E quando ela nasceu, a irmã dela já tinha vinte anos, foi praticamente uma mãe. Agora, tens miúdas a serem mães que nunca pegaram num bebé.
Mas estas pessoas, as nossas mães e as nossas avós, menstruavam e era-lhes dito que a partir dali tinham que ter cuidado. Muitas vezes usavam as luas para regular mas, by the way, as luas não regulam nada.
O que tem a dizer sobre todo este movimento do regresso ao ancestral, às luas, aos florais, aos círculos de mulheres?
Acho maravilhoso, se servir num processo de empoderamento feminino que procura uma ferramenta para se reconciliar com seu corpo. Porém, comecei a perceber que este tipo de discurso afasta as mulheres da verdadeira solução. Quando eu tenho mulheres a vir ter comigo a dizer que andam a tentar alinhar o ciclo da lua vermelha ou da lua branca para conseguir engravidar há dois ou três anos, foi só uma perda de tempo.
Os círculos de mulheres fazem todo o sentido. As mulheres estão feridas, estão magoadas e nestes círculos aprendes a ouvir a espelhar-te no outro.
Mas acha que vivemos isoladas umas das outras?
Acho que estes círculos fazem falta porque de repente já não és a mais nova de nove irmãos nem vais andar ao colo das tuas irmãs mais velhas. Perdeu-se este universo feminino com as famílias monoparentais, com os agregados familiares mais pequenos, com o facto de vires para Lisboa viver e teres a tua família longe. It takes a village to raise a child, não é? E onde é que está a tua aldeia? Não tens uma aldeia para criar crianças nem para dar suporte à mãe. Portanto, é melhor ir para um círculo de mulheres para ter suporte do que ir para as redes sociais criticar a barriga da Carolina Patrocínio.
De repente é péssimo tomar a pílula. De repente agora é toda a gente a dizer "Não tomes que a pílula afeta até o cérebro". Sabe o que também afeta o cérebro? Copos, noites mal dormidas,má alimentação, relacionamentos de merda."
Há pouco falava de reconciliação das mulheres com o seu corpo. Houve uma rutura?
Quando percebes que tens mais mulheres que homens no ensino superior, quando tens mulheres a ganhar menos do que os homens, quando tens duplas jornadas, quando continuamos a ter aquele overload mental do fazer o jantar, levar os miúdos à escola, é pouco o tempo que fica para isto do feminino. E é por isso que surgem estes movimentos que dizem que as mulheres têm que fazer as pazes com o feminino. Não tens que fazer as pazes com nada, tens que descobrir o que funciona para ti. Vejo um radicalismo e um fundamentalismo nestes movimentos que me assusta.
E são esses movimentos que estão agora a demonizar a pílula?
De repente é péssimo tomar a pílula. De repente agora é toda a gente a dizer "Não tomes que a pílula afeta até o cérebro". Sabe o que também afeta o cérebro? Copos, noites mal dormidas, má alimentação, relacionamentos de merda.
Na contraceção procura-se sempre o mal menor, se ele for a pílula, toma-se a pílula. Põe-se um cronómetro a marcar esse tempo de pausa. Agora são dois anos em que vou tomar a pílula, porque me vou focar no mestrado, no Erasmus, na promoção no trabalho, no casamento, com a criança que acabou de nascer. São as alturas em que ninguém tem tempo de estar a alinhar com a lua. E quando alguém vem com fundamentalismos é bloquear essa pessoa. O futuro não é feminino, é inclusivo, é não binário, é respeitador. O futuro é amor, numa dinâmica de respeito pelas escolhas dos outros. Não há escolhas melhores que outras. A melhor escolha é a que fazes informada.
O problema é que tens as redes sociais a lixar isto tudo, porque há pessoas com não sei quantos followers que dizem: "Não, o melhor é isto, tenho aqui um código de desconto" [risos].
São as millennials quem a procuram?
Sim, principalmente para terapia. São miúdas entre os 23 e os trinta anos que tiveram acesso a muita coisa.
Demasiada coisa?
Elas são filhas da geração que lhes disse: "Tu podes ser aquilo que quiseres", então têm falta de limites. Precisam de alguma orientação, até porque normalmente chegam-me com perturbações de sono, ansiedade, problemas alimentares, perturbações de pânico. A pergunta que as millennials mais me fazem é "Quem é que eu sou", "O que é que eu vou ser". É como se tivessem criado avatares.
Essas pedem ajuda para engravidar ou para evitar uma gravidez?
Tenho de tudo. Mas há algumas que me aparecem grávidas porque, lá está, decidiram que a pílula faz mal e deixaram de tomar, sem terem outros cuidados. E porquê? Porque em Portugal ainda há uma política de desresponsabilização grande da utilização do preservativo nas dinâmicas sexuais.
Ainda?
Totalmente. Se soubesses a quantidade de preservativos que se rompem por ano em Portugal... [risos] Control, Durex, comecem a ter uma pessoa a soprar porque alguma coisa não está a correr bem ao nível do controlo. [risos]
O que é que pode ser feito para que o conhecimento chegue mais cedo?
Temos primeiro que tudo educar as miúdas e deixar de ver a coisa pelo prisma dos privilegiados que têm uma boa educação neste campo. Portugal não é só Lisboa e Porto e não é só classe média. Enquanto tivermos 77% das mulheres a tomar contraceção hormonal e uma taxa de infertilidade com níveis epidémicos alguma coisa está a falhar. É que vemos a taxa de gravidez na adolescência a baixar mas graças a quê? À pílula? É que desde que tenho a página de Instagram que sei que há miúdas que começaram a tomar a pílula ainda antes de menstruar.
Menstruar é essencial?
Completamente. Sabemos agora que o ciclo menstrual faz falta e não é só para ter bebés. A progesterona é como aquele amigo do liceu que ficou com um nickname para sempre. Quando foi descoberta sabia-se que era produzida depois da ovulação e por isso o nome progesterona, porque é pro-gestação. Mas agora sabemos que é também essencial para haver saúde óssea, mamária, cardiovascular. Mas ficou com o tal nickname do liceu, como se fosse só para ter bebés.
No geral, a mulher conhece mal o seu corpo?
Pela minha experiência, as mulheres sabem zero sobre o seu ciclo menstrual. A medicina convencional foca-se no sintoma. Se a mulher tem amenorreia, força-se o sangramento com medicamentos, porque o importante é a mulher sangrar. Mas o ciclo menstrual não é uma doença, há que olhar para ele como um barómetro de saúde. Se calhar, nesse caso, já não é preciso um medicamento, mas sim perceber o porquê do corpo não estar a ovular. O mesmo para a infertilidade e para as perdas gestacionais. É preciso falar sobre estes assuntos e perceber o porquê de isto acontecer. Dá trabalho, não se resolve com comprimidos, mas é a forma mais eficaz.