A polémica festa do Avante! arrancou, devagarinho, na sexta-feira, 4 de setembro. Os corredores de passagem na Quinta da Atalaia são amplos e este ano tem uma particularidade: setas no chão a indicar a circulação. Quem passa por lado vai pela direita, quem passa por outro, vai pela esquerda. O mesmo acontece em todos os pavilhões. Seja em Bragança, no Alentejo ou Leiria, formam-se diferentes filas que fluem para direcções distintas. O objetivo? Evitar os grandes aglomerados que caminham desordenadamente, garantir o distanciamento social e, em última instância, a propagação da COVID-19.
Os dispensadores de álcool gel estão em todo o lado e também os palcos criam uma fotografia diferente das edições anteriores: à sua frente, estão dispostas um sem-número de cadeiras a partir de onde se assiste, sentado, aos espetáculos. Álcool? A partir das 20 horas, só para acompanhar as refeições. Mas há manha: se ao jantar pedir uma garrafa de vinho, nada o impede de poupar para o momento dos concertos.
São estas algumas das regras aplicadas na festa do Partido Comunista Português, no centro de uma grande polémica nos últimos meses, a propósito da decisão de realizar o evento em plena pandemia. O primeiro dia costuma ser o mais calmo, explicam à MAGG Adelaide e Mário, um casal que todos os anos participa na festa e que nota que este ano, até para o dia de arranque, há menos pessoas. Ainda assim, soa a Carvalhesa e toda a gente dança.
A dupla foi uma das que a MAGG entrevistou para conseguir responder à questão: quem são as pessoas que vão ao grande evento do PCP? Falámos com famílias, com funcionários, com militantes do partido. Conhecemos quem fosse pela festa, quem fosse para trabalhar e quem marcasse presença para provar que é possível conviver em segurança, mesmo com a COVD. Neste primeiro dia, em quase todos os casos, há uma forte componente política a justificar a presença.
Assim, dão-nos pormenores sobre as suas vidas pessoais, mas não conseguem deixar de comentar as circunstâncias atuais: falam numa guerra contra o partido e não contra a festa, fazem alusão a grandes eventos que estão a acontecer e que não sofreram o mesmo escrutínio, falam sobre a boatos que foram difundidos e que não são verdadeiros. "Nenhum festival foi proibido", salienta Hugo, 33 anos. E dão-nos ainda os motivos que os levam a identificar-se com o partido: "Eu não conseguia viver bem de comigo mesmo se pensasse só em mim. No fundo, o mundo somos todos nós, que habitamos neste planeta.”
Adelaide Lopes, 62, e Mário Fragata, 58
Adelaide Lopes, 62, e Mário Fragata, 58, são um casal. Vivem em Almada e trabalham numa agência funerária. Festejaram em maio os 30 anos desde que se conheceram numa festa de amigos, mas não puderam celebrar da mesma forma por causa do vírus.
Ele vem pelo lado partidário, ela vem pela festa. “Um comunista trouxe-me há festa do Avante! há 30 anos e eu viciei-me”, conta Adelaide. Não têm receio do vírus, até porque, justificam, para eles não existiu confinamento. “Estivemos na linha da frente, a lidar com familiares de COVID." Sobre as regras, consideram que estão “espetaculares”, por estar “tudo muito bem organizado.” E não se admiram: “Sempre foi assim, sempre foi tudo muito bem coordenado.”
Estão sem máscara, mas trazem-na no bolso para colocar sempre que vão aos espaços em que se reunem mais pessoas. A passear nos grandes corredores não têm esse cuidado. “Não tenho medo do vírus.”
A história com a festa do Avante! já é longa: o pai de Mário Fragata era militante do partido e puxou-o para as andanças, ainda que ele seja um apoiante não inscrito. Ela não vota PCP, mas só tem elogios a dirigir à festa. “Sabe o que é vir a uma festa 30 anos seguidos e nunca ver uma zaragata? Nunca ver desentendimentos, nunca ver uma chatice entre pessoas?, ressalva Adelaide. “É uma festa de tanto convívio, tanta camaradagem, tanto companheirismo e amizade.”
Depois de décadas a marcarem presença, Mário Fragata destaca uma edição especial: “Aquela em que trouxe a minha mulher pela primeira vez. Foi a mais simbólica.”
Entre gargalhadas, contam-nos que são uns “festivaleiros”. “Os nossos amigos dizem-nos que gostavam de ter a nossa pedalada.” Vão a todos: Festival do Crato, Santa Casa Alfama, Super Bock Super Rock. “Tínhamos bilhetes para o Alive, mas já os fui trocar para o ano. Queríamos ver Da Weasel”.
Hugo Gonçalves, 33 anos, Cláudia Varandas, 25 anos, Laura, 3 anos
Hugo Gonçalves já vinha à festa do Avante! antes de se ter tornado militante do PCP. Foi, aliás, no recinto da Quinta da Atalaia que se inscreveu-se na Juventude Comunista Portuguesa (JCP), com um grupo de amigos. “Éramos três, ficámos dois.”
Cláudia Varandas, 25 anos, é namorada de Hugo e também é militante. Natural de Santarém, mas a residir em Vila Franca de Xira, não consegue estar muito tempo à conversa connosco porque Laura, três anos, é uma menina cheia de energia e não para quieta.
Mas ele fica connosco. É eletricista e conta-nos que, com Cláudia, participou na organização da festa. Há vários motivos que o trazem ao evento do PCP e o, primeiro, prende-se, obviamente, com questões políticas. Este ano é especial, porque se trata da 44.º edição e “do primeiro grande evento” de 2020, ressalvando que “nenhum festival foi proibido e que é mentira quando dizem o contrário.”
Não consegue não abordar a polémica que se criou em torno da festa do Avante!. Frisa que há vários eventos grandes a acontecer e que sobre esses ninguém fala: “Quando dizem que toda esta questão sobre as normas e regras da festa do Avante! não é uma questão política não é verdade, porque é uma questão política”, diz. “Não vimos ninguém a exigir que fossem reveladas as normas da Feira do Livro, por exemplo.”
Não é um grande fã de música, mas adora gastronomia. E esse é o segundo ponto que destaca na festa: “Eu gosto de comer. E vir aqui à festa e saber que posso comer uns ovos moles em Aveiro, que posso comer um choco frito em Setúbal, que posso ir a Santarém comer um pampilho, é uma coisa que me agrada muito.”
António, 59 anos, Maria José , 58 anos
“Vimos à festa do Avante há tantos quanto somos casados. Há 38 anos”, contam António e Maria José. “Desde 1983”. São de Vila Nova de Gaia e conheceram-se porque viviam em freguesias próximas. Gostam de tudo na festa. Ele é mais falador e especifica-nos os motivos:“Desde a camaradagem, ao conhecer novas pessoas e, no meu caso, gosto muito de contactar com pessoas mais velhas, apesar de eu já não ser novo. Gosto de ouvir aquelas histórias reais que se passaram antes do 25 de abril.”
Na altura em que o Estado Novo foi derrubado, António tinha 13 anos. Pouco tempo depois, tornou-se militante. “Dois anos depois, em 1976, aderi à juventude do partido. E ainda hoje tenho muito orgulho em ter estado presente como delegado no primeiro congresso da JCP, que decorreu no Pavilhão da Tapadinha, ali no Atlético Clube de Portugal, junto ao Restelo.” Precisa as datas: “Se não estou em erro, foi nos dias 30 de abril, 1 e 2 de maio de 1980.”
Quando pensa nos motivos que o levaram a aderir à causa, diz-nos que seria necessário um jornal para enumerar todos os pontos. Mas resume: “Eu não conseguia viver bem de comigo mesmo se pensasse só em mim. No fundo, o mundo somos todos nós, que habitamos neste planeta”, diz. “Eu não consigo viver sozinho na terra.”
Tem o rosto parcialmente tapado com uma máscara vermelha com a imagem de Che Guevara, revolucionário e guerrilheiro, uma das mais importantes figuras da revolução Cubana. Foi-lhe oferecida por um camarada de Matosinhos. “Sou um fã muito ferrenho. Será talvez o meu ídolo número um, depois de os meus pais, porque sem eles eu não existia”, diz. Explica-nos que a compra reverte para uma campanha de fundos para a comissão concelhia do Partido Comunista daquele município. E remata: “Este país está a necessitar de meia dúzia de Che Cheguevaras.”
Maria José, há 34 anos a trabalhar como auxiliar de serviços sociais no infantário, aderiu à causa há tantos anos quanto ele. “Aliás, eu perdi cinco ou seis aniversários de casamento para colaborar na construção da festa”, conta António, soldador, atualmente desempregado.
Não iam perder o evento por causa do vírus. “De maneira nenhuma”, diz António”. “Mais grave do que este vírus, há um outro que tem atacado este país de há uns anos para cá. Dizem que este este é o novo coronavírus, e eu ao outro chamo o velho vírus, que é o Novo Banco. Já tem vários anos e para esse não há mesmo nenhuma vacina que o elimine.”
André Antunes, 23 anos, Quinta do Conde
André já vem ao Avante! desde os 6 anos e fez-se em 2020 militante do partido. É uma coisa que corre na família. Está acompanhado pelo pai e pela namorada, esta sem filiação.
Explica-nos que participa no Avante! por questões políticas e culturais. Mas este ano a vinda tem um significado especial: “Há uma vontade e teimosia em provar ao nosso país que é possível convivermos e retomarmos a vida em comunidade”, diz. Com isto não quer dizer que não se devam cumprir as regras de segurança, tanto que coloca a máscara assim que nos aproximamos. “As precauções já deviam ter sido implementadas no nosso dia-a-dia antes, como a desinfestação das mãos, utilização das máscaras em alguns locais, porque antes da pandemia já havia pessoas doentes.”
Formado em Ciência Política, integra neste momento um projeto na Segurança Social. “Estou a trabalhar diretamente com o layoff”, conta. Apesar da idade, sobra-lhe pouco tempo para descanso. Tem várias atividades pós-laborais: “Ando no associativismo. Sou presidente de um grupo folclórico, estou também na organização da Feira Festa, a maior festa do concelho de Sesimbra, sou vice-presidente das coletividades do distrito de Setúbal.”
Apela ao ativismo político entre os mais jovens. “É importante estarmos interessados na política, porque a política é a ciência que administra os povos. Se não estivermos preocupados com isto, vamos ser sempre manipulados.”
Háverá tempo para hobbies? “Pratico atletismo federado e sou uma apaixonado pelo futebol. Sou dos Belenenses. O verdadeiro.”
Conceição Correia, 65 anos
É no distrito de Leiria que, por entre uma pequena janela, conversamos com Conceição Correia, 65 anos, empregada doméstica. Está à esquerda nesta fotografia e, apesar de ser natural da Figueira da Foz, veio pelo Bombarral. Está responsável por abrir e fechar esta banca, estando a seu cargo o vinho Quinta do Sanguinhal e a ginja de Óbidos. Vai fazendo ali alguns turnos, que reveza com camaradas, para que todos possam ir descansado e desfrutando da festa.
É militante do partido comunista desde a década de 80 e já vem a festa do Avante! há 35 anos. “É a festa do povo. É o nosso mundo. Somos todos iguais”, começa por dizer. Costuma chegar ao evento na véspera, mas este ano foi diferente, porque o marido está doente. Ainda assim, ele não deixou de vir. "Veio a família toda, incluindo a filha, o genro e a neta de 15 meses."
“Como comunistas que somos, esta festa dá-nos energias para lutarmos contra as dificuldades e desigualdades no resto do ano”, diz. É membro da Assembleia Municipal do Bombarral e não é fácil: só há dois deputados pelo seu partido, tratando-se de um “conselho em que a direita perdura e em que as pessoas de esquerda têm mesmo de reunir forças para combatê-las.” Além disso, há a componente cultural, uma vez que aqui tem a oportunidade para assistir a concertos que, de outra forma, dificilmente poderia ver.
O vírus não a demoveu. “Não digo que não estejamos apreensivos. Mas como é que me pode demover um vírus se todos os dias vou trabalhar? Se eu vejo a Feira do Livro, vejo as Touradas, vejo os transportes e as pessoas nas esplanadas à vontade? Eu confio no meu partido.”
Conceição salienta as regras que foram implementadas. ”Quando entrei na festa disse: ‘Sim, é este o meu partido’. “Está tudo perfeito. Há sinalização para nos movimentarmos, há o distanciamento, há o álcool gel. As pessoas podem vir à festa sem medo, porque as condições estão postas à nossa frente.”
Termina fazendo referência à polémica que se instalou pela realização do evento. “Esta guerra grande não é contra a festa do Avante!. É contra o PCP.”