Nascido em Sambizanga, criado anos mais tarde na Ilha de Luanda e a morar hoje em dia em Portugal, Gilmário Vemba, 38 anos, é o homem que quer ser conhecido como "o comediante da língua portuguesa". A sua trajetória começou pouco tempo depois de se mudar para a Ilha, depois da sua casa de família ter sido assaltada, e a sua carreira fala por si. Conhecido por todos em Angola e em Portugal, Gilmário Vemba fez parte do grupo de enorme sucesso no país africano Os Tuneza, tendo ficado por lá durante 17 anos.

D.A.M.A em entrevista. "Nós não mudámos de estilo, nós somos um estilo"
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No entanto, tudo tem um fim, e a vontade de Gilmário de se posicionar politicamente no seu país fez com que tivesse de abandonar o grupo, e foi Portugal que lhe deu as ferramentas certas para conseguir continuar a crescer, desta vez com uma carreira a solo. Depois dos palcos, o humorista começou a entrar no mundo da televisão e da rádio, e foi conquistando cada vez mais o seu lugar na comédia portuguesa. Agora, depois de vários anos a fazer do humor carreira, Gilmário Vemba pisa a maior sala de espetáculos do País para o penúltimo espetáculo da sua mais recente tour, "Temas".

Em conversa com a MAGG, Gilmário conta a história da sua vida, sem filtros nem desculpas. A insegurança que sentiu enquanto vivia em Sambizanga com a Guerra Civil que se dava em Luanda em 1992, a mudança de vida que o fez entrar nos Tuneza, o assalto seguido de rapto em que estavam presentes duas filhas e todos os projetos que guarda com mais carinho. Pai de quatro filhos, irmão de 15, marido e filho, Gilmário Vemba só quer uma coisa com a sua carreira: fazer as pessoas dar umas boas gargalhadas.

A guerra, as brincadeiras e os valores que ainda hoje permanecem

Conte-nos sobre a criança Gilmário Vemba. Quais são as memórias da sua infância que guarda com mais carinho?
Acho que guardo, acima de tudo, a memória da inocência. A parte de não saber, de não sentir a dor que era viver no tempo em que eu vivi. Tenho boas memórias de infância, de brincar constantemente com os meus amigos, brincadeiras que eu hoje em dia sei que eram bastante perigosas, mas que na altura pareciam muito divertidas, então são essas as memórias que eu guardo do meu tempo. Hoje enquanto mais velho olho para trás e percebo o momento que se vivia em Angola e aquilo que eram as dificuldades dos meus pais, mas naquela altura não sentia absolutamente nada disso. Era viver, era correr, era jogar à bola das 12 horas às 17 horas e por aí fora. Lembro-me que atirávamos uma bala para o meio do fogo e depois corríamos todos, um para cada lado. 

Aquilo quando explodia fazia um barulho do caraças e nenhum de nós tinha coragem de voltar, até porque os mais velhos saíam de casa para ver o que se passava. Tínhamos uma grande capacidade de só pensar em porcaria e brincar com coisas que nos podiam magoar muito, mas foi uma infância muito divertida, apesar dos perigos. Lembro-me de ter sido uma criança bastante feliz, brinquei muito na casa dos meus avós e das minhas tias. O meu corpo fala por mim, estou meio partido.

Como é que caracteriza a sua relação com os seus pais e, inicialmente, com os seus cinco irmãos?
Sim, primeiro criei uma ligação com o meu irmão mais velho, Nélson, e depois o resto veio aparecendo ao longo do caminho. Mas lembro-me de termos uma convivência muito fixe, a minha mãe era obviamente o nosso volante. Nós crescemos naquela época em que os dois pilares da educação estavam muito bem formados, a mãe que dizia o que fazer e como fazer e o pai era a ameaça constante, a surra premium, mas tínhamos uma relação super saudável. 

Com os meus irmãos era aquela relação de crianças do dá e foge. Eu e o meu irmão mais velho lutámos muito, até agora continuamos a ser pessoas que poucas vezes convergem nas ideias, pensamos completamente diferentes. Mas sempre foi aquela coisa em que o meu irmão mais velho era o nosso protetor, no bairro a única pessoa que nos podia tocar era ele, temos mesmo uma relação super saudável. Depois a minha irmã, mal ela aprendeu a falar como deve ser, foi quem começou a cuidar de nós. Com 9 anos cozinhava, tratava das compras, de tudo.

Há pouco falou sobre brincar na casa dos avós, e sei que eles foram muito importantes para si. Que tipo de valores e ensinamentos é que lhe incutiram?
Cada um deles passou-me valores diferentes mas que se encaixam, mas principalmente o valor do conhecimento. Todos eles falavam muito na importância do estudo, de adquirir conhecimento porque só assim é que íamos conseguir, de alguma forma, vencer na vida. Lembro-me de os meus avós lamentarem muito o facto de não terem tido oportunidade de estudar e de se formar, eles viveram na época colonial e o conhecimento era limitado. Acabou por se criar um hábito que era do género “esquece, só podemos ir até aqui e ponto final”, então, com as oportunidades do meu tempo, eles sempre me incutiram isso. 

Também me passaram muito o valor do respeito, independentemente das condições sociais, origens ou crer religioso. O meu avô dizia sempre: “Quando vais por uma rua cumprimenta todo o mundo, porque podes voltar a passar por lá e precisar de ajuda. Se passares com arrogância ninguém te vai ajudar”. A minha avó também nos ensinou a ler em casa, deu-nos o primeiro contacto com os livros e explicou-nos a importância de aprender as palavras, de como se escrevem, como se dizem, porque as pessoas julgam a tua inteligência a partir daí.

Também o valor da justiça tem bastante peso na sua vida.
Sim, esse foi mais a minha mãe. Ela dizia sempre que temos de ser amigos da razão e não da pessoa. Às vezes a pessoa está errada e, ainda que seja nosso amigo, nosso irmão, nosso pai, temos de saber dizer “eu estou aqui contigo, mas tu estás errado”. O valor do que é justo ou não às vezes não é igual ao valor da igualdade. Se calhar há alguém que precisa de mais e se dermos por igual provavelmente aquele que já tem muito vai continuar a ter muito e quem não tem nada vai continuar a não ter nada, então é tentar sempre criar uma base justa para todos, não negligenciando ninguém.

Ainda hoje continuo a utilizar todos esses valores, para me lembrar de que não sou mais nem menos do que ninguém. No final do dia somos todos feitos de carne e osso, vamos todos parar ao mesmo sítio, podemos pensar diferente, mas isso não nos faz inimigos.

Os tiros são os mesmos dos dois lados, bala é bala, e esse período de incerteza em que as pessoas não sabiam o que iam comer porque os mercados fecharam, as lojas fecharam, era muito mau

Ficou-lhe alguma memória dos tempos dos confrontos da Guerra Civil em Luanda em 1992?
Sim, mas só consegui senti-la aos 7 anos. Foi o primeiro confronto em Luanda, não tenho a certeza do tempo que durou, era uma criança, mas lembro-me da sensação de incerteza, do amanhã ser uma coisa completamente distante. Faltou comida, via os meus pais a debater se deviam ou não fugir, as pessoas não sabiam que bandeira levantar quando saíssem à rua, se MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], se UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola]. Os tiros são os mesmos dos dois lados, bala é bala, e esse período de incerteza em que as pessoas não sabiam o que iam comer porque os mercados fecharam, as lojas fecharam, era muito mau. 

Lembro-me de comermos coisas que sabiam mal, sabiam mesmo mesmo mal, lembro-me da minha mãe fazer um funge que sabia amargo, mas era a única coisa que tínhamos para comer. Não desejo a ninguém, foi algo muito mau, principalmente quando olhas para os teus pais e pensas que eles têm filhos para cuidar, filhos que não pediram para nascer e que não percebem nada de política, que têm de comer lixo e de dormir por baixo da mesa com medo de uma bomba cair dentro de casa.

Gilmário Vemba e a mãe
Gilmário Vemba e a mãe, Engracia Pinto créditos: Instagram

Mas tinha noção do que estava a acontecer?
Quer dizer, com 7 anos nós já sabíamos da existência da guerra, era tudo o que se falava nas notícias. A guerra, os ataques. Ligavas o noticiário e passava as notícias da guerra toda, os territórios que foram recuperados, que foram ocupados, o que é que a UNITA fez e por aí fora, e depois passavam os desenhos animados, o contraste completo. Uma criança não percebe exatamente a 100% o que se estava a passar, mas percebe que há um conflito.

Esse terror acabou por chegar bem perto de si, quando a sua casa foi assaltada. Do que é que se lembra?
O ser assaltado em Sambizanga era uma coisa quase que do dia a dia. Todos os dias havia alguém que passava por isso, todos os santos dias havia uma família que tinha sido assaltada. Em 92 a população foi armada por causa da guerra e essas armas não foram recolhidas, e depois de qualquer guerra vem sempre uma crise económica ou uma crise de fome. O ser humano para sobreviver faz de tudo um pouco, e era normal para mim estar a sair da casa de um amigo e ver alguém a ser assaltado. E as pessoas que assaltavam eram pessoas conhecidas, vizinhos.

Numa madrugada entraram uns dez homens, boa parte deles armados, em minha casa e levaram praticamente tudo o que os meus pais tinham conseguido comprar até àquela altura. Durante o assalto um dos assaltantes começou a bater na minha mãe, e ela tentou desarmá-lo, mas ele começou a pontapeá-la. Aí houve um momento em que todos perdemos o medo, começámos todos a gritar, lembro-me de pegar numa cadeira e gritar com um, a minha irmã o mesmo. Mas eles eram muitos, mandaram dois tiros dentro de casa e nós parámos. Foi a primeira vez que o meu pai sentiu que não ia conseguir proteger a família, mas eles acabaram por ir embora.

O seu pai acabou por decidir abandonar o bairro, certo?
Exatamente, o meu pai logo no dia seguinte foi pedir empréstimos e tudo mais para conseguir tirar-nos de lá, alugar uma casa fora do bairro, sair do seu sítio para tentar fugir à criminalidade. Aquilo durante muito tempo foi um trauma para eles, porque sempre que alguém batia à porta de noite eles ficavam com medo, era um pânico, não sabíamos se era outra vez um assalto ou se  era só o vizinho a pedir açúcar.

"Demos por nós a ser o grupo que ia preencher a lacuna que existia"

E foi o facto de mudar de ares que fez com que a sua jornada na comédia começasse.
Sim, eu acabo por mudar de bairro, vou para a Ilha de Luanda, e acabo por seguir os passos do meu irmão e junto-me à companhia de teatro. É lá que eu conheço o Daniel Vilola, o Orlando Rodrigues, o Cesalty Paulo e o José Chieta, e um ano depois, na intenção de promovermos essa mesma companhia, criámos Os Tuneza para fazermos pequenos sketches humorísticos em espetáculos de música. 

As pessoas é que nos criaram praticamente, porque gostaram de nós e fomos convidados cada vez mais. Depois começámos a ser convidados para a televisão e para a rádio, e quando te começam a pagar já é um caminho sem volta. Também apanhámos uma boa onda. A guerra acabou em 2002 e nós começámos praticamente no mesmo ano, por isso havia um sentimento de esperança por todo o país, e a cultura acabou por ser o alimento que trouxe a mensagem de paz.

Foi uma aventura fazer parte de um grupo de comédia?
Foi. Precisámos de ir atrás do conteúdo porque de repente demos por nós a ser o grupo que ia preencher a lacuna que existia. Na altura não havia grupos de humor, tínhamos a noção básica do teatro e foi misturar esses dois pontos, e fomos fazendo o trabalho. Somos responsáveis por criar em Angola um mercado humorístico, fomos o primeiro grupo de grande sucesso que despertou a vontade e a certeza de que era possível ter uma vida com a comédia, e carrego isso com muito orgulho.

Foi nos Tuneza que eu percebi que podia vingar. Em 2004 acabei por descobrir o stand-up graças a um primo meu que veio de Portugal e me trouxe uma cassete do “Levanta-te e Ri”. Sabia que gostava de comédia, mas não tinha ainda muita noção do que era o stand-up, e começo a descobrir um mundo novo. Começo a seguir muitos artistas, Bruno Motta, Danilo Gentili, começo a ver o movimento que se está a criar e a consumir cada vez mais. A primeira vez que vim a Portugal fui atrás do que se fazia cá e acabei por encontrar conteúdos do Bruno Nogueira, Raul Solnado, “Humor na Caneca”, e tantos outros. Em 2010 fui a uma casa de discos e pedi tudo o que tinham sobre comédia e deram-me uma coletânea, conheci ali o Trevor Noah. Desde sempre que acompanhei todo este movimento da comédia e quis ficar cada vez mais mais envolvido.

Foi também graças a esta sua vontade de procurar mais que decidiu deixar Os Tuneza em 2019?
Também, mas também porque senti que estávamos no mesmo sítio, chegou a uma altura em que ficámos estagnados e isso acontece a qualquer artista. Tens o sentimento de que achas que dá para fazer mais e pensei que estava na hora de experimentar coisas novas. Foi isso e também o facto de eu me querer posicionar. Sempre funcionámos muito democraticamente e como eu já não estava muito de acordo com o que era a nossa linha editorial e sentia cada vez mais a necessidade de me conseguir posicionar sobre o que era a realidade do nosso país. 

Mas isso ia acabar por colocar os meus colegas na linha da frente, porque em Angola, quando falas de política, o teu alcance começa a diminuir, as pessoas começam a excluir-te, e claro que eu não queria puxar os outros para aquilo que era uma caminhada minha, então fazia sentido começar uma carreira a solo.

Em Angola, quando falas de política, o teu alcance começa a diminuir, as pessoas começam a excluir-te

Foi difícil fazer tudo outra vez?
Muito. Os Tuneza são uma propriedade do povo. Tu quando ficas durante 17 anos a entrar na casa das pessoas, pela rádio, pela televisão, é diferente. As pessoas não gostaram da minha saída, ficaram chateadas, inventaram coisas para tentar justificar. Eu senti que houve muita gente a trabalhar para me mandar abaixo, todos diziam que eu era ambicioso e ganancioso.

Acho que a vontade de querer crescer, de provar o contrário e de provar que continuava o mesmo Gilmário ajudou-me a começar a carreira a solo. Eu fui disposto, se corresse bem corria, se não corresse pelo menos tinha tentado. Cheguei a fazer espetáculos em Luanda numa sala para 500 pessoas onde só apareceram 10, mas eu ficava feliz porque as pessoas saíam de lá contentes com o que tinham visto. Eu sabia que era preciso voltar a convencer as pessoas, é normal perderes metade do que já tinhas antes quando começar uma nova caminhada.

"Pensei que me iam matar à frente das minhas filhas, e sabe-se lá o que é que podiam fazer com elas"

E como é que se deu a sua vinda a Portugal?
Como tudo na vida, eu sou basicamente empurrado para aquilo que é o meu sonho pessoal. Sempre estive muito focado no meu trabalho e acho que isso de alguma forma atraiu a minha carreira. Eu vim a Portugal em 2018 para fazer algo completamente diferente, e lembro-me do Nilton me ligar, porque eu já o conhecia das vezes que Os Tuneza vieram a Portugal, a dizer que havia um stand up session e perguntou-me se queria ir lá fazer cinco minutos. 

Eu aceitei e foi a primeira vez que atuei para uma plateia portuguesa, e correu tão bem que me convidaram para a sessão a seguir já comigo no cartaz. A partir daí os convites não pararam de aparecer até eu sentir que me conseguia sustentar em Portugal, mas ainda estava muito na dúvida. Sabia que não podia depender do que recebia em Angola para me sustentar aqui, mas o assalto seguido de rapto em que estive envolvido [ocorreu em 2022] clareou-me as ideias e decidi que me ia fixar em Portugal.

Acredito que ainda tem muito esse trauma de ter sido raptado não sozinho, mas com duas das suas filhas.
Sempre me disseram que se me encontrasse com um gatuno era bom que tivesse algo para lhe dar, e nos primeiros minutos do assalto pensei “bem, tenho vários cartões de crédito aqui, os telemóveis, o carro, não tem como correr mal, têm muito para levar e vão sair a ganhar” e eu já tinha percebido que me conheciam e pensei que fosse porreiro, até eles me meterem dentro do carro onde já estavam duas das minhas filhas, me amarrarem as mãos e os pés e me colocarem um capuz. Os meus outros filhos estavam do lado de fora e viram tudo.

Começaram a dizer que eu falava muito, que estava armado em defensor do povo, e quando disseram isso eu pensei que me iam matar à frente das minhas filhas, e sabe-se lá o que é que podiam fazer com elas. Durante essas duas horas o medo era esse, e durante um ano eu estive sempre a sondar os meus filhos para perceber como é que eles estavam mentalmente. O meu filho mais novo não gosta que eu vá para Angola, eu digo “o pai tem de ir trabalhar” e ele diz “tens trabalho cá, em Angola só tem gatunos”. Essa imagem ficou gravada na cabeça dele, e foi preciso um ano para eu conseguir fazer piadas com o assalto e identificar a parte engraçada daquilo.

Tudo na vida tem um lado engraçado?
Sim, tudo na vida tem o seu lado engraçado. Existem coisas que, claro, às vezes é muito mais difícil de perceber, mas a vida é prismática. Ela tem um lado económico, engraçado, trágico, traumático, político, a vida tem esses ângulos todos e um comediante, quando olha para uma situação seja ela qual for, tenta sempre ir buscar o lado engraçado.

E principalmente quando são coisas trágicas que mexem com o mundo todo, com os nossos direitos, com a nossa vida, são essas as coisas que acabam por ser mais engraçadas porque são coisas só estúpidas. A humanidade em si é muito engraçada, cria as suas próprias desgraças, e é essa a ironia que tentamos encontrar nas situações. Imagina, durante o assalto um deles pediu-me o número de uma artista de quem ele era muito fã. Claro que na hora não tinha como me rir, mas depois não me contive. Como é que alguém está, durante um assalto, a pensar “Porra, ainda bem que o gajo está aqui assim posso pedir o numero da fulana”? É só estúpido.

No entanto, chegou a Portugal e nunca mais parou. Acredita que o País lhe deu as ferramentas certas para conseguir vingar na sua carreira a solo na comédia?
Completamente. Estava a desenvolver-se um processo de descredibilização em toda a Angola, e até em Moçambique, não só pelo meu trabalho como pela minha pessoa. As pessoas tentaram mesmo atacar a minha integridade, e em Portugal ninguém queria saber disso. Era um mercado que falava a língua portuguesa onde eu podia começar do zero. Eu era uma boa surpresa, o gajo que entrava no palco e fazia rir.

Então eu fui fazendo isso várias vezes, nos roasts, no “Pi 100 Pé”, no “Especial Fernando Rocha 20 anos”, no “Stand Up Sessions”, fiz até uma mini tour chamada “Hipoteticamente BOM” logo depois de sair do grupo, e foi uma boa surpresa. Portugal começou a dizer aos angolanos do tipo “Não querem isso? Olhem que ele é bom, nós vamos ficar com ele” e aí eles voltaram a acreditar em mim, Portugal vestiu-me e abriu-me portas. Tenho muito a agradecer, especialmente à classe humorística da tuga, porque nunca apresentaram resistência e sempre me convidaram. Comecei a sentir que não era um estranho em Portugal, e depois começaram a aparecer oportunidades como o “Taskmaster”, o “Responder à Letra”, o “Mano a Mano”, e fiquei mesmo a pensar que estava bem neste País.

E como é que foi essa viragem de fazer stand-ups e espetáculos para agora fazer televisão e rádio?
Quando as pessoas te dão uma plataforma ela pode fazer contigo duas coisas: ou ela te catapulta para mais longe em termos de crescimento, ou ela te catapulta para mais longe em termos da degradação daquilo que é o teu trabalho. Ir para a rádio foi um convite do Pedro Ribeiro e do Vasco Palmeirim, e primeiro ainda fui lá dar uma entrevista e sugeriram que eu brincasse um bocadinho com a cena das músicas, mas afinal eu estava em teste para a audiência da Rádio Comercial. 

Quando correu bem disseram “Olha, agora tens de fazer isto de segunda a sexta” e aí obviamente deu aquele medo, estamos a falar da rádio número um do País, tem uma audiência de mais de um milhão de pessoas. Eu aqui podia ou enterrar a minha carreira ou dar um salto muito grande, mas quando está dentro de uma equipa onde todo o mundo quer que corra bem isso também torna o trabalho mais fácil. Senti mesmo que fazia parte da Comercial e até hoje continua a existir esse sentimento. O mesmo aconteceu com a televisão, a fazer o “5 Para a Meia-Noite”. Lembro-me de o Nuno Vaz dizer que eu conseguia porque era “bué carismático”, claro que houve falhas, mas também senti que estavam comigo e que abraçaram o facto de eu ser inexperiente naquilo que concerne a apresentação de um programa de tv, de ser pivot. Senti que o público não me criticava para me mandar embora e sim para me ajudar a melhorar, o que foi muito bom.

O Gilmário também criou um projeto, o “Bar do Gilmário”.
Sim, sim. Assim que saiu a notícia de que eu já não fazia parte dos Tuneza o pessoal começou todo a ligar-me e a dizer para fazermos projetos, claro que precisava de um tempo para meter as ideias no sítio, mas diziam sempre para não me esquecer de que tinham intenções de trabalhar comigo. Daí surgiu o “Bar do Gilmário”, escrito por mim e pelo Henrique Dias, que é um craque da escrita humorística. Foi muito bom fazer esse projeto, foram praticamente quatro temporadas porque para além do bar também tivemos o spin off “After Party” e a pandemia fez com que aquilo fosse um sucesso, mais uma vez é daquelas coisas que vêm até mim.

"Gostava muito que ter essas 12 mil pessoas a fazerem a festa comigo"

Depois de todo esse sucesso, chega a tour “Temas”, a mais recente conquista.
Está a chegar ao fim e estou super ansioso para subir ao palco e mostrar às pessoas tudo o que aprendi durante esta tour. Eu tive a oportunidade de conhecer um Portugal que com certeza muito angolano nunca conheceu, se calhar também muitos portugueses não conheceram. São mais de 83 localidades e 121 espetáculos, e eu tive a oportunidade de ouvir todos os sotaques e mais alguns que existem, de comer todos os pratos, e isto até me deu bastante conteúdo, primeiro para o Altice Arena em Lisboa, e depois para o SuperBock Arena no Porto, que são os últimos dois espetáculos.

E o que as pessoas podem esperar deste espetáculo?
Eu espero que as pessoas se divirtam tanto como eu me divirto, realmente espero isso. Vamos entregar pura diversão, quem já foi a um espetáculo do Gilmário Vemba sabe como é que e , sabe como eu mantenho o ritmo. Enquanto estiveres lá tens de estar só a gargalhar e só quando chegares ao carro é que pensas “por acaso ele disse uma coisa que fez sentido”, e é mais ou menos esse método que eu quero ter. Quero que se sintam não só entretidos como impressionados.

O facto de poder fazer aquilo que mais gostas na maior sala do País assusta-o? Onde inclusive os bilhetes estão quase a esgotar.
Assusta-me. Não que eu não conheça, já tive o prazer de sentir a imensidão do Altice Arena com o “Christmas in the Night” da Rádio Comercial, mas assusta-me um bocadinho. Há sempre aquela dúvida, nos dias de hoje é muito difícil meter uma sala com 100 pessoas todas de acordo, agora vamos imaginar fazer isso com 12 mil, não tem como não estar assustado. Mas também é aquele susto que nos mete em cheque, que nos mete em sítio, que nos diz para nos preparamos bem porque vão estar 12 mil pessoas a ver. E eu sinceramente gostava muito que ter essas 12 mil pessoas a fazerem a festa comigo.

Nunca me passou pela cabeça fazer no Altice Arena, isso era uma coisa quase que impensável. Esse palco é para os músicos, eles é que conseguem esgotar essa sala. Pensei que nunca ia encontrar 12 mil pessoas que queriam ver um espetáculo meu, do género “Quem é que pensas quem és?”. Mas a verdade é que eu gosto de aceitar os desafios, gosto de ir atrás deles. Acredito que de fora as pessoas vêm algo em ti que tu não consegues ver, então eu aceitei o desafio do Altice Arena e vou levá-lo até ao fim e fazer com que valha a pena.

Tem algum humorista ou artista português que o influenciou nesta caminhada, tanto profissional ou pessoal?
Sempre apreciei muito o conteúdo humorístico português. Sempre gostei muito da maneira como o Ricardo Araújo Pereira consegue transformar temas que parecem muito simples numa grande análise humorística e filosófica, e isso sempre me fascinou. Também sempre gostei muito do Bruno Nogueira, da ironia em tom de desagrado, meio que chateado com as coisas do dia a dia. As suas apresentações no “Levanta-te e Ri” eram as que mais me faziam rir, eu podia não perceber certas coisas típicas portuguesas, mas tinham muita piada. Uma vez ele falou que as pessoas querem ir para a Serra da Estrela para se aquecerem quando está a nevar, e eu pensei “Mas o que é que é a Serra da Estrela?”, foi muito bom. E pronto, o Fernando Rocha é aquela pessoa que diz um monte de palavrões e tu em nenhum momento te sentes ofendido, e a coragem que ele tem de levar isso para a televisão, de comunicar isso dessa forma, é pura comédia.

Algum sonho que ainda queira realizar?
Há muitos sonhos que eu estou a realizar que nem sequer sonhei. Vou deixar que o universo faça o seu trabalho e depois me diga  “está aqui mais um, tu não sonhaste, mas podes e vais realizar”.