A cantora irlandesa Sinéad O'Connor morreu esta terça-feira, 25 de julho. Tinha 56 anos, deixando para trás um importante legado no mundo da música, assim como no ativismo, já que dava o rosto por causas como o combate aos abusos sexuais na Igreja Católica, bem como pelos problemas da saúde mental, que experienciava na primeira pessoa.

"É com muita tristeza que anunciamos a morte da nossa amada Sinéad. A sua família e amigos estão devastados e pediram privacidade neste momento tão difícil", diz o comunicado da família, de acordo com a "RTE". A causa da morte da artista não foi revelada, mas acontece pouco mais de um ano depois de um dos momentos mais difíceis da sua vida: a morte de Shane, o filho de 17 anos.

O jovem suicidou-se em janeiro de 2022. Logo após a morte do filho, a cantora foi internada – e isto aconteceu depois de ter feito publicações nas redes sociais onde afirmava sentir-se culpada pelo sucedido.

Filho da cantora Sinead O'Connor foi encontrado morto. Tinha 17 anos
Filho da cantora Sinead O'Connor foi encontrado morto. Tinha 17 anos
Ver artigo

Sinéad O'Connor nasceu a 8 de dezembro de 1966, em Dublin, na Irlanda, e marcou profundamente a indústria musical e a cultura pop com a sua carreira notável, tendo chegado aos holofotes na década de 90, aquando do lançamento de uma das suas canções mais icónicas, "Nothing Compares 2 U".

No que à vida pessoal diz respeito, foi casada quatro vezes. O primeiro casamento aconteceu em 1987, com o produtor musical John Reynolds, com quem teve Jake Reynolds, de 36 anos. Além de Jake, foi mãe mais três vezes. Em 1995, deu à luz Roisin Waters, cujo pai é John Waters, jornalista e escritor irlandês, a quem se seguiu Shane Lunny, em 2004, fruto do seu relacionamento com o músico Donal Lunny. Em 2006, teve o quarto filho, Yeshua Bonadio.

Com a sua voz única como veículo, Sinéad O'Connor quis provar que era mais do que um talento musical – era, por outro lado, uma figura corajosa e disruptiva, comprometendo-se a defender as suas convicções com unhas e dentes. Por isso, a sua carreira é marcada por vários momentos marcantes que, no rescaldo da morte da cantora, lhe mostramos.

O lançamento de "Nothing Compares 2 U"

Desde o momento em que apareceu no panorama musical, em 1987, aquando do lançamento do seu primeiro álbum, "The Lion and the Cobra", Sinéad O'Connor deixou o mundo intrigado. Não só a sua voz era impactante, mas a sua aparência também contribuía para o adensar da curiosidade, já que, por ter o cabelo rapado, desconstruiu a noção de ícones femininos que fomos conhecendo ao longo das décadas.

Mas foi em 1990 que, efetivamente, a sua carreira ascendeu a outro patamar – e tudo graças a uma canção que, originalmente, não era sua. "Nothing Compares 2 U", lançada em 1990, foi um marco dessa década e alavancou a carreira da cantora, tendo sido escrita pelo cantor americano Prince e estando destinada à banda da qual fazia parte, The Family.

A versão da cantora irlandesa, rapidamente, se tornou um sucesso, sendo o videoclipe da mesma, em que é vista a chorar, enquanto a câmara não se desvia do seu rosto, uma das imagens que, frequentemente, associamos à artista. Além disso, a canção foi eleita como o single número um do mundo em 1990, pelos Billboard Music Awards.

O cancelamento do primeiro espetáculo no SNL

Todos sabemos que, quando os artistas atuam no Saturday Night Live (SNL), o programa de comédia americano transmitido aos sábados à noite, é porque estão a fazer sucesso. Contudo, em 1990, Sinéad O'Connor decidiu recusar o primeiro convite que havia recebido para fazer um número musical durante o formato.

Isto porque, aos comandos da apresentação desse episódio, que é diferente todas as semanas, iria estar uma figura com quem a artista não se identificava. Estamos a falar de Andrew Dice Clay, um ator e comediante americano que, durante anos, foi apelidado de misógino e fascista, graças às piadas de cunho machista e homofóbico que fazia, de acordo com a "Vulture".

Na sequência do anúncio que ditou que seria esta figura controversa a protagonizar o episódio, a atriz Nora Dunn, que também iria fazer parte do mesmo, decidiu afastar-se, em jeito de protesto. E foi aí que Sinéad O'Connor seguiu as pegadas da artista, recusando-se a atuar. "Não faria sentido que o Saturday Night Live esperasse que uma mulher cantasse canções sobre a experiência de uma mulher, depois do monólogo do Andrew Dice Clay", disse, citada pelo "Los Angeles Times".

E o regresso controverso ao SNL

sinéad o'connor
créditos: Instagram

Dois anos depois da controversa decisão, em 1992, Sinéad O'Connor voltou ao SNL para fazer aquilo que não fez da primeira vez. E, ainda que tenha atuado, é caso para dizer que a sua passagem por este programa não foi menos controversa – pelo contrário, gerou uma onda de contestação abismal.

Depois de cantar primeira canção, uma versão comovente da música de Loretta Lynn "Success Has Made a Failure of Our Home", a artista voltou ao palco, já com uma mudança de planos em mente. Em vez de "Scarlet Ribbons", o agente da cantora informou o coordenador musical do SNL de que Sinéad O'Connor ia cantar "War", de Bob Marley.

E enquanto os versos do cantor jamaicano saíam da sua boca, empunhou uma fotografia do papa João Paulo II e, sem qualquer pudor, rasgou-a em direto. Este ato contra o então líder do Vaticano serviu para voltar os holofotes para os casos de abuso infantil no seio da Igreja Católica, que eram ignorados, de acordo com a cantora.

E foi um gesto de que nunca se arrependeu, apesar de ter sido ostracizada pelo gesto.

A desavença com Frank Sinatra (e o consequente afastamento da rádio)

Frank Sinatra é um nome que dispensa apresentações. Todos conhecemos hits como "Fly Me To The Moon" ou "New York, New York" pertencentes a este artista, considerado um dos maiores de todos os tempos. Por isso, não é de espantar que muitos cantores o tenham como referência e nunca ousassem insurgir-se contra ele – mas Sinéad O'Connor fê-lo, mais uma vez, motivada por aquilo em que acreditava.

Tudo aconteceu em agosto de 1990, num dos concertos da digressão da cantora, cujo objetivo era promover o seu segundo álbum, "I Do Not Want What I Haven't Got". A irlandesa estava de passagem por Nova Jérsia, Estados Unidos, e ouviu dizer que o recinto onde ia atuar tinha o hábito de tocar o hino do país antes dos concertos, uma política da qual não era adepta, porque "não tinha nada que ver" com a sua música, avança o "Los Angeles Times".

Melindrada com a situação, não tardou muito até afirmar que, se não respeitassem a sua decisão, o concerto seria cancelado. Sim, foi ouvida, deu o concerto, mas acabou por ser banida desse recinto e esta atitude fez muita tinta correr, tendo sido banida da rádio americana.

A peripécia chegou até aos ouvidos de Frank Sinatra, que era de Nova Jérsia. "Gostava de dar-lhe um pontapé no cu", terá exclamado o cantor, segundo a mesma publicação, referindo-se a Sinéad O'Connor, que acabou por responder à letra. "Não posso retaliar contra este homem, ele tem tipo 78 anos e provavelmente matava-o", respondeu a cantora, de acordo com a "Esquire", em jeito de gozo.

O boicote aos Grammys

Em 1989, Sinéad O'Connor foi nomeada para os Grammys, graças ao seu álbum "The Lion and the Cobra", lançado dois anos antes. Acabou a ser derrotada por Tina Turner, mas as nomeações não se ficaram por aí e, na edição de 1991 destes prémios da indústria musical, conquistou uma nomeação na categoria de Melhor Álbum Alternativo – e aí, sim, ganhou.

Ainda que estes prémios sejam um dos pináculos do reconhecimento do panorama musical, há vários artistas que se afastaram da cerimónia por várias razões. Mas Sinéad O'Connor foi a única, até à data, a rejeitar a atribuição da própria estatueta dourada, segundo a "Distractify".

"Eles reconhecem principalmente o lado comercial da arte. Respeitam principalmente os ganhos materiais, porque essa é a principal razão da sua existência", disse ao "Los Angeles Times" , referindo-se ao negócio da música como um todo. Por isso, frisou que, se ganhasse, não aceitaria o prémio – e levou a palavra até ao fim.

De madre a bissexual, passando pela conversão ao Islamismo

Mais do que um percurso invejável no mundo da música, a vida de Sinead O'Connor foi uma autêntica jornada de autodescoberta e expressão pessoal. Ao longo dos anos, a cantora irlandesa foi conhecida pelo seu percurso espiritual transformador, havendo vezes em que terá surpreendido os fãs e até aqueles que não gostavam assim tanto de si.

Apesar de ser uma ávida crítica da religião, em 1991, foi consagrada como sacerdotisa pelo bispo Michael Cox, que pertencia a um grupo católico independente. Na sequência desta decisão, a artista chegou até a anunciar que gostaria de ser conhecida como Madre Bernadette Mary, aludindo para o seu nome próprio, Sinéad Marie Bernadette O'Connor – que quis mudar mais tarde, em 2017, com o objetivo de ver-se "livre dos nomes escravizados pelo patriarcado" e "de maldições parentais".

Morreu Sinéad O'Connor. Cantora de "Nothing Compares 2 U" tinha 56 anos
Morreu Sinéad O'Connor. Cantora de "Nothing Compares 2 U" tinha 56 anos
Ver artigo

Contudo, nove anos depois, em 2000, a irlandesa acabou por assumir a sua homossexualidade. Mas não tardou muito até, em 2005, voltar atrás com a sua palavra. "Sou três quartos hétero e um quarto gay. Estou um pouco mais inclinada para os rapazes peludos", disse, citada pela CNN.

Em 2018, Sinéad O'Connor surpreendeu novamente no que diz respeito à religião. Isto porque, nessa altura, a artista anunciou a sua conversão ao Islamismo, adotando o nome Shuhada' Davitt, que mudou, posteriormente, para Shuhada Sadaqat. No entanto, ela continuou a usar o nome Sinead O'Connor na sua carreira profissional.

Admitiu a Oprah Winfrey sofrer de bipolaridade

oprah
créditos: Oprah Winfrey

A artista foi um livro aberto em relação às suas convicções – e a luta contra perturbações do foro psicológico não foi exceção. Sinéad O'Connor, que defendia esta causa, apelando à atribuição de uma importância maior aos assuntos da saúde mental, queria erradicar o estigma associado a estas questões e encorajar as pessoas a procurarem ajuda.

Foi em 2007, uma altura em que a saúde mental era ainda um tabu, que a irlandesa assumiu que sofria, na primeira pessoa, com uma perturbação mental. Em entrevista à apresentadora americana Oprah Winfrey, a cantora admitiu que teria recebido um diagnóstico de bipolaridade, tendo até tentado suicidar-se no seu 33.º aniversário.

"A melhor forma de conseguir descrever-to é [dizer] que tu estás tão triste, terrivelmente triste, que és como um balde de água com buracos. Todos os teus poros choram e tu nem percebes o porquê", revelou, acrescentando que morreu e nasceu novamente, graças à medicação que tomava e "à oportunidade de construir uma vida".

Lutou contra Madonna e Miley Cyrus

Depois de ter rasgado a foto de João Paulo II no SNL, em 1992, Sinéad O'Connor foi extremamente criticada. Uma das pessoas que se insurgiu contra a cantora foi Madonna, que aproveitou a sua passagem pelo mesmo programa, umas semanas depois da peripécia, para mandar lenha para a fogueira, segundo a "ABC News".

Na apresentação do seu número musical, Madonna terá seguido as pegadas da irlandesa e, em jeito de gozo, aproveitou para rasgar a fotografia de Joey Buttafuoco. Este era um empresário americano que, nesse mesmo ano, foi sido acusado de manter um caso extraconjugal com uma menor de idade, tendo ainda baleado a sua mulher no rosto.

Contudo, as desavenças com a artista americana já remontavam a tempos mais remotos. Isto porque, três anos antes deste episódio, a dupla já se tinha envolvido numa troca de palavras acesa – e Sinéad O'Connor acabou por dizer que se tinha sentido violentada, depois de Madonna ter feito comentários negativos sobre o facto de a cantora ser careca.

"Agora, temos aqui uma americana, que quer ser uma porta-voz das mulheres, a fazer pouco de outra mulher por não ser sexy", disse à "Spin", motivada pelas causas feministas que defendia. Mas Madonna não foi a única pessoa que a irlandesa chamou à atenção.

Anos mais tarde, em entrevista à "Rolling Stone", em 2013, Miley Cyrus disse que o videoclipe de "Wrecking Ball", um dos êxitos mais controversos da cantora, tinha sido inspirado em "Nothing Compares 2 U". E esta que começou por ser uma demonstração de amor acabou com Sinéad O'Connor a publicar uma carta de indignação, de acordo com o "G1".

sinead miley
"Nothing Compares 2 U" e "Wrecking Ball", lado a lado. créditos: Divulgação

"A mensagem que tu continuas a mandar é que, de certa forma, é fixe seres prostituída. Não é fixe, Miley. É perigoso", escreveu a artista, que acrescentou: "Eu encorajava-te a mandares mensagens mais saudáveis aos teus pares, que demonstrassem que tu mereces muito melhor do que aquilo que se está a passar na tua carreira atualmente".

"A indústria não quer saber de ti ou de qualquer uma de nós. Eles vão prostituir-te (...) e facilmente vão fazer-te pensar que isso era o que tu querias", continuou, citada pela mesma publicação, que acrescenta que as mulheres da indústria musical são "modelos" e têm de ser "extremamente cuidadosas com as mensagens" que transmitem.