Em 70.º lugar, José Avillez, chef do Belcanto, foi o único português premiado pelo The Best Chef Awards 2020, mas há outro dado que importa muito. Num grupo de 100 figuras distinguidas no universo da cozinha, apenas seis são mulheres: em 18.º lugar, a eslovena Ana Ros, em 31.º lugar a francesa Anne-Sophie Pic, em 42.º, a peruana Pía León, em 55.º lugar a brasileira Manu Buffara, 82.º lugar, a tailandesa Bee Satongun, e em 86.º a mexicana Daniela Soto-Ines.
No topo da lista, ficaram conhecidos nomes universo dominado pelo masculino: o primeiro lugar foi para o dinamarquês, chef do Noma em Copenhaga, René Redzepi, substituindo o sueco Björn Frantzen, que nesta edição ficou com o segundo lugar. Em terceiro, está o americano Dan Barber.
O Best Chef Awards 2020 incluiu ainda 34 novos chefs de 31 países, destacando-se Espanha, nacionalidade que arrecadou 15 prémios. Distinguiu 94 homens e seis mulheres. Quem são elas? De onde vêm? Que cozinhas dirigem? Conheça-as.
Ana Ros, Eslovénia
Quando era nova, não sabia que iria tornar-se chef, não tivesse o seu percurso misturado ski na selecção juvenil da antiga Jugoslávia, ballet profissional e estudos em relações internacionais. Casou-se, mudou-se para as montanhas, começou a tomar conta do restaurante dos sogros e nessa tarefa introduz a dedicação e disciplina que sempre aplicou nas atividades da sua vida.
Começa aí a jornada no universo da gastronomia, que já valeu vários prémios e reconhecimentos: foi, em 2017, distinguida com o prémio de melhor chef feminina pelo The World's Best 50 Restaurantes; em 2019 a revista Travel + Leisure considerou o restaurante o Hiša Franko, em Kobarid, na Eslovénia, como um dos melhores 30 do mundo — tendo, em 2020, recebido duas estrelas Michelin, as primeiras para a Eslovénia. As práticas sustentáveis foram destacadas pelo reputado guia. Agora, ficou em 18.º lugar no The Best Chef Awards 2020, sendo a primeira das seis mulheres a surgir na lista.
Anne-Sophie Pic, França
Natural de Valence, em França, tem 51 anos e é dona do Maison Pic, o restaurante de família no sudeste francês, detentor de três estrelas Michelin — o que faz de Anne-Sophie a quarta mulher chef a receber tal distinção.
Oriunda de uma família de reputados chefs franceses — o Maison Pic já tinha ganhado três estrelas em 1934 — começou a sua carreira a trabalhar em gestão, tendo trabalhado o Japão e Estados Unidos, como estagiária em empresas como a Cartier ou Moët & Chandon. Mas a cozinha estava-lhe no sangue, portanto regressou às suas raizes e verdadeira paixão: aos 22, volta ao reputado restaurante de família e recebe formação pelo pai, também chef. Três meses depois, em 1992, o pai morre e em 1995 o Pic perde a sua terceira estrela Michelin.
Em 2007, dez anos depois de começar a controlar o restaurante, Anne-Sophie reconquista a estrela, apesar de nunca ter tido nenhuma educação formal na cozinha. Vai abrindo mais restaurantes — o Anne-Sophie Pic, em Lausanne, na Suíça, que já recebeu também duas estrelas Michelin, e o La Dame de Pic, em Paris. Em 2011, foi considerada uma das melhores chefs femininas pelo The World's 50 Best da revista Restaurant.
Ficou em 31.º lugar no ranking do Best Chef Awards 2020.
Pía León, Perú
Foi considerada a melhor chef da América Latina no The World's Best e o Central Lima, restaurante que comanda ao lado do marido Virgílio Martínez (com quem tem um filho), foi distinguido, na mesma atribuição de prémios, como o 21.º Melhor do Mundo.
A dupla abriu também o restaurante Vale Sagrado, em Tambopata, sendo também responsável pelo projeto Mater Iniciativa, laboratório de investigação de alimentos, "mapeia o ecossistema peruano e cataloga as plantas nativas por todo o país como resgate da cultura andina", descreve a edição brasileira da "GQ", que esteve à conversa com a reputada chef peruana, em 55.º lugar no Best Chef Awards 2020.
Manu Buffara, Brasil
Nascida em Maringá, é uma das mais famosas do Brasil, dona do conhecido e descentralizado restaurante Manu, em Curitiba. A sua carreira quase que começa no mundo cozinha: para agradar os pais, a chef começou por tirar o curso de jornalismo, tendo depois seguido para um curso de cozinha e hotelaria em Itália. Com apenas 18 anos, vai para os Estados Unidos, país onde passou um mês num pesqueiro do Alasca.
É a paixão conjugada com a força das circunstâncias que a atira para a gastronomia: começa a trabalhar em cozinha por necessidade ainda neste país. Daqui segue para vários espaços sonantes onde tem a oportunidade para trabalhar com alguns dos chefs mais conhecidos do mundo — trabalhou no Noma, com René Redzepi ou ainda no Alinea, com Grant Achatz.
A trabalhar no programa de hortas urbanas de Curitiba com a Câmara Municipal de Curitibida, tem vários prémios acumulados: recebeu três anos consecutivos o prémio Bom Gourmet, da Gazeta do Povo, foi eleita Chefs 5 Estrelas Hors Concours. No World's 50 best, foi em 2018 considerada chef promissora, com a distinção "One to Watch". Agora, fica em 55.º lugar do The Best Chef Awards 2020.
Bee Satongun, Tailândia
A chef tailandesa é uma das donas do icónico Paste Bangkok, premiado já várias vezes com uma estrela Michelin, que entretanto já existe também no Laos, tendo acabado de inaugurar um terceiro espaço na Austrália.
Com uma carreira de mais de 32 anos como chef, tem criado um reputado nome à volta da gastronomia tailândesa. Entre muitas outras distinções, em 2018 foi destacada pela World's 50 Best como a melhor chef feminina. E em 2020, fica em 82.º lugar no ranking do The Best Chef Awards.
Daniela Soto-Ines, México
Nadadora de competição até aos 20 anos, a mexicana de 30 anos estudou no Le Cordon Bleu, em Austin, no Estado do Texas, estagiou na Europa e Nova Iorque junto de conhecidos cozinheiros, tendo sido, em 2019, a chef mais nova a ser premiada com o prémio de World's Best, na categoria de melhor chef feminina. Em 2017, em parceria com Enrique Olvera, um dos seus mentores, inaugura o restaurante Atla, um famoso mexicano em Nova Iorque. Ficou em 86.º lugar no The Best Chef Awards.
"Tens sorte, ainda não te violei". A misóginia, abuso e sexismo na gastronomia
É notável o aparecimento de cada vez mais mulheres no mundo da alta cozinha, mas os números ainda são altamente díspares. E os tiques das sociedades sexistas e misóginas manifestam-se também aqui, relataram já várias figuras femininas do ramo.
"As mulheres estão a fazer coisas tão incríveis na cozinha — mas ainda estamos a lutar para ser reconhecidas na indústria. Ainda se trata de chefs homens", disse à "BBC" Romy Gill, a primeira chef indiana mulher a abrir um restaurante no Reino Unido, em 2013, que fala ainda em "muito sexismo e racismo" no mundo da cozinha.
Os casos de assédio e abuso estiveram durante muito tempo vedados ao olhar público, mas começam a agora a ganhar mediatismo. Tanto que assim é que, recentemente, centenas de cozinheiras das mais reputadas cozinhas de França divulgaram alguns dos comentários abusivos — não raras vezes de teor sexual — que ouviram no cumprimento das suas funções. Estão na conta de Instagram "Je dis non, chef", incluem frases como “Tens sorte, ainda não te violei” ou “Gostas de puxar as calças para baixo, não gostas?”, tendo o movimento já sido comparado, pelo francês "Le Figaro", ao #MeToo no contexto da gastronomia.
Tal como as situações de assédio sexual e abuso de autoridade, a pouca visibilidade que se dá à mulher tem a ver com motivos históricos, que fazem ignorar as competências e qualidades técnicas. "Chefs mulheres trouxeram uma nova energia para cozinhas profissionais, mas os investidores não parecem tão interessados em investir nas mulheres quanto nos homens. É uma questão financeira", diz ao mesmo canal Sheila Dillon, jornalista de gastronomia, que fala ainda em motivos históricos. "Historicamente, as mulheres foram sempre responsáveis por cozinhar em casa, mas essa função foi sempre encarada como doméstica e não como um trabalho 'real'."