Uma confissão. Quando escrevi o título deste texto pela primeira vez, enganei-me no nome do documentário. Na primeira versão lia-se "Eu Sou Futre". Um lapso perdoável e que tem uma razão de ser: a avalanche de críticas, crónicas, memes, piadas e sátiras que, nas últimas duas semanas, têm sido feitas a outro documentário, "Yo Soy Georgina", sobre a namorada de Cristiano Ronaldo.
"Futre, o Primeiro Português" não podia estar mais nos antípodas de documentários como aquele sobre o glamouroso dia a dia de Georgina Rodríguez ou "Neymar: o Caos Perfeito", também da Netflix, ou ainda o filme de 2015 "Ronaldo", sobre a carreira do craque. O primeiro episódio, que já está disponível na plataforma de streaming OPTO SIC, é elegante, contido e uma prenda para quem gosta de futebol. E de televisão sem os tiques e maneirismos da reality tv.
Há muita bola, muitas imagens de arquivo com as jogadas mais espetaculares do ex-futebolista, atualmente com 55 anos, cuja carreira começou em 1983 no Sporting e terminou em 1998 no Yokohama Flügels, do Japão. Além do protagonista, há os testemunhos dos filhos, Fábio e Paulo Futre Jr., e todo um leque de superestrelas, de atuais e ex-jogadores a dirigentes e treinadores, desde Luís Figo a João Félix, passando por Jorge Nuno Pinto da Costa, José Mourinho, Rui Costa, Fernando Torres ou Jorge Mendes. E o filho mais velho de Diego Maradona que, a determinada altura, vaticina: "Futre foi o Maradona português".
A história do futebol português da década de 1980 está de mãos dadas com o fado e a inglória da alma lusa, quebrada décadas mais tarde com a afirmação internacional, graças a nomes como José Mourinho, Cristiano Ronaldo e, claro, à vitória do Campeonato da Europa pela Seleção Nacional, em 2016. Essa é também a história de Paulo Futre, justamente aqui apelidado de "o primeiro português", qual navegador que desbravou caminhos para os que lhe seguiram.
"Paulo Futre, naquela altura era a bandeira de Portugal", diz o superagente Jorge Mendes. E, mesmo para quem não é fã do desporto rei, encontra aqui um documento histórico para entender, pela lente das quatro linhas, o que era esta coisa de ser português lá fora na década de 80.
Porque antes de Cristiano Ronaldo, houve Paulo Futre. O primeiro português da era pós-25 de abril a levar o nome de Portugal além fronteiras, pela força do futebol e também pela graça de uma personalidade exuberante. "O meu pai era tipo o Messi", diz Paulo Futre Jr., explicando como é que, aos amigos e colegas, compara os feitos do pai com algo que se assemelhe à atualidade. Ou não tivesse sido ele, à época da transferência para o Atlético de Madrid, o segundo negócio mais caro da história do futebol, depois do que firmou a ida de Diego Maradona do Boca Juniors para o Barcelona.
Vemos os golos, as fintas, as corridas desenfreadas de Futre em relvados de cá e de lá, a desilusão pela Bola de Ouro que se lhe escapou em 1987. "Só não ganhou porque era português", vaticina João Bonzinho, diretor de A Bola TV.
No documentário, realizado por César Mourão e Nuno Garcia, e produzido pela 313 Features (produtora que o humorista da SIC fundou em 2021 com Diogo Brito) vemos também o outro lado. Paulo Futre, o pai. E é aqui que se aconselha ter uns Kleenex à mão porque é coisa para emocionar até o mais empedernido dos corações. Com recurso a gravações de vídeo amador, vemos um jovem Futre a mudar fraldas, a dar biberão, a fazer a vida doméstica normal com a mulher na altura, Isabel Pinto.
Mais do que os golos, são estas imagens que nos mostram o contraste do mundo do futebol da altura com o atual. Não há seguranças, mansões milionárias nem frotas de carros de alta cilindrada, nem jatos privados, nem mesas de mármore e rococós dourados. Há Paulo Futre, sentado na mesa de uma cozinha, decorada como qualquer cozinha, a dar biberão a um dos filhos, despenteado, e Isabel, sem maquilhagem nem roupas de griffes, a cuidar de dois bebés que riem muito.
E é neste momento em que, embora estejam a falar em momentos e espaços separados, pai e filhos estão em consenso sobre o que foi aquela fase da vida familiar: normal, feliz.
"Futre, o Primeiro Português" começou a ser filmado em maio de 2021. São, no total, seis episódios, lançados semanalmente, às quintas-feiras, na plataforma de streaming OPTO SIC.