"No próximo episódio vou discorrer chatamente sobre medo", ameaça Ricardo Araújo Pereira no último dos 55 minutos da estreia do seu novo projeto, o podcast "Coisa que não edifica nem destrói". Já estamos avisados de que o segundo episódio vai ser igual ao primeiro. Chato.
Mas chato não é mau, atenção. Chato se calhar é o que precisamos, nestes tempos de shorts, reels, tiktoks e conteúdos que nos excitam os olhos e a mioleira durante 90 segundos, deixando-nos agarrados e sem capacidade para ouvir / ver / entender tudo o que exija uma maior capacidade de concentração.
"Coisa que não edifica nem destrói" podia ser o nome de mais um programa de televisão de Ricardo Araújo Pereira. Podia até ser o tão desejado regresso dos Gato Fedorento, num formato de talk show de análise da atualidade política. Mas é mais um podcast, embora não um qualquer. Trata-se da estreia de RAP neste tipo de formato.
Que Ricardo Araújo Pereira é um apaixonado pelo lado académico do riso, um estudioso do humor, os seus fãs mais atentos já sabiam. O humorista de 49 anos já deu palestras, já escreveu várias vezes sobre o tema, que refere amiúde em entrevistas. O primeiro episódio de "Coisa que não edifica nem destrói" (frase retirada da obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis) chegou às plataformas de streaming de áudio esta quarta-feira, 13 de setembro.
RAP apresenta-se como "chato" o que, em retrospetiva, depois de ouvirmos os 55 minutos do episódio, bate muito certo. Começa como uma análise semântica de humor. Depois passa para etimologia (parte da gramática que trata da origem das palavras). Se, regra geral, os formatos de entretenimento tentam agarrar o público desde o início, RAP parece estar a fazer exatamente o contrário, ao passar 10 minutos a discorrer sobre as várias definições de humor, desde a Idade Média ao Britannica, passando por Voltaire. Há momentos em que sentimos que estamos outra vez numa da cadeira de Teoria do Texto do segundo ano do curso de Ciências da Comunicação. E sentimo-nos ignorantes por não estarmos a adorar. Mas será que temos de adorar para gostar? Se calhar, não.
Percebe-se perfeitamente que RAP não só está a ler, mas também que há pouca espontaneidade. Mas a verdade é que Ricardo Araújo Pereira é um intelectual, podia até ser um académico e dar aulas numa qualquer universidade porque tem os conhecimentos para isso. O que faz em "Isto é Gozar Com Quem Trabalha" está nos antípodas do que está neste novo podcast. Não é galhofeiro, nem imediato, nem provoca gargalhada. "Coisa que não Edifica nem Destrói" não é um podcast para ouvir no carro a caminho do trabalho de manhã, de forma meio distraída, à procura de um ânimo imediato. Implica atenção e até algumas idas ao dicionário.
Após uma longa exposição teórica, Ricardo Araújo Pereira entrevista Abel Barros Baptista, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e conhecedor da obra de Machado de Assis. Devido ao nosso cérebro completamente contaminado pela exposição excessiva a redes sociais, a parte que fixámos foi a capacidade do académico de detetar expressões inúteis, como "aquilo que é" (por exemplo "queremos demonstrar aquilo que é o novo podcast de Ricardo Araújo Pereira"), um "fenómeno estranhíssimo", classifica, a par do uso excessivo de expressões enfáticas como "a maior qualquer coisa de sempre".
Agora entendemos porque é que RAP foge das redes sociais como o Diabo da cruz. É para conseguir ter a capacidade de ler sem se distrair com o zumbido de um mosquito ou com uma dancinha funkeira.
"Coisa que não edifica nem destrói" estreia-se duas semanas depois de "Strike Force Five", o podcast dos cinco apresentadores de talk show norte-americanos que, em hiato devido à greve dos guionistas, se juntaram para uma reunião semanal em que conversam sobre temas vários.
E o que tem uma coisa que ver com a outra? Sem guionistas para lhes potenciar a graça, tanto RAP como Jimmy Kimmel, Jimmy Fallon, John Oliver, Seth Meyers e Stephen Colbert continuam a ser interessantes... mas não hilariantes.