Num olhar mais destreinado de ver novelas todos os dias, "Rua das Flores" é uma espécie de "Festa é Festa" mais urbano e que passa às sete da tarde. A nova novela da TVI, que estreou esta segunda-feira, 18 de abril, é da autoria de Roberto Pereira, o mesmo do formato de ficção que o canal de Queluz de Baixo exibe em prime time (e que já vai na terceira temporada) e as semelhanças não são necessariamente más. Arriscamos até a dizer que são boas, muito boas.
Os diálogos são rápidos, a ação acontece a um ritmo alucinante, embora cada cena seja mais um mini-sketch do que propriamente um momento cheio de narrativa. O humor é popular e acessível mas, em determinados momentos, um bocadinho mais ácido do que "Festa é Festa". Mas chega de teorias e vamos à história.
O genérico de "Rua das Flores", interpretado por Primeira Dama (nome artístico de Manuel Lourenço), é assim uma coisa a atirar para o alternativo, daquelas músicas feitas com sintetizadores da década de 70, mais do género de se ouvir à tarde na Antena 3 ou num palco secundário do NOS Alive do que propriamente numa novela das sete da tarde. Mas vá, desta vez passa.
O primeiro episódio é marcado por um terramoto que abala a Rua das Flores e deixa todos os seus moradores em alvoroço. E pronto, é isso. Beijinhos!
Brincamos. Há mais. Somos logos apresentados a Dona Tília (Ana Bola), a cartomante lá do sítio e, já se percebeu, a manda-chuva da Rua das Flores (flores, chuva... ahaha... perceberam? Baduuuum-tsss). Dona Tília tem uma assistente pessoal, Rosa (Matilde de Mello Breyner), que é assim um cruzamento entre Marie do "Big Brother Famosos" e Barbie da década de 90.
Estamos fãs, e no que toca a looks, também amamos Íris (Julie Sergeant), co-proprietária do Hostel Hotel, toda ela dourados, leggings tigresse e acessórios variados.
"Rua das Flores" não é apenas uma novela. É também um roast à concorrência. Ou talvez não. Se calhar somos nós que temos a mania da perseguição, mas lá que é estranho haver um Sergey (Pedro Diogo), bósnio de Saravejo imigrado há vários anos em Portugal, dono de um restaurante e que aspira a ter uma estrela Michelin, lá isso é.
Mas não é só um certo chef de um país de leste e que trabalha no canal da concorrência que aparenta ter inspirado "Rua das Flores". Na loja Electro das Flores, Dália (Inês Faria) tem um tique bizarro. De cada vez que alguém lhe dirige palavra, a rapariga entra num estupor e desata a descrever eletrodomésticos como se estes estivessem na montra de prémios de um conhecido concurso do primeiro canal da estação pública de televisão.
O momento é tão surreal que já nem sabemos se estamos a ver uma novela a sério ou "Pôr do Sol". O tique acontece uma e outra vez, qual Lenka da Wish, e começamos a achar que Dália sofre de Síndrome de Mendette (que é como Síndrome de Tourette mas com coisas que o Fernando Mendes diria). "São os sismos que me pagam as contas?", diz Dália com uma varinha mágica na mão.
O Senhor Tavares (Almeno Gonçalves) e o Engenheiro Pedrosa (Joaquim Horta, com o capachinho mais 'yuck' da história da Humanidade) vão fazer uma fiscalização pós-sismo, mas só a casa de dona Tília. Porquê? Não percebemos, mas se calhar explicaram no momento em que fomos baixar o lume do arroz que tínhamos a fazer.
Há várias marcas presentes na novela da TVI (entre as quais o McDonald's), mas não a Ucal. Por isso foi altamente bizarro aquele momento Coca-Cola Light, em que um moço (Tiago Carreira) em tronco nu aparece a beber uma garrafa de leite com chocolate que, afinal, é de marca branca. O que foi esta cena metida a martelo? Também não percebemos. Mas apreciámos.
Ao longo de praticamente todo o episódio, Arnaldo (José Pedro Gomes) está, como diz Rosa, "paralítico do medo". Ou seja, paralisado. Consequências do terramoto.
Enquanto a inspeção vai e não vai, aparece Jasmim (Eduardo Madeira) com o saco do pão. "Ó tia, o pão está quente!", grita Jasmim. Até gostamos de Eduardo Madeira, mas começamos a achar que as suas personagens são assim todas um puré instantâneo de todas as que o ator já fez. Com a agravante de parecerem que têm todas ligeiro atraso cognitivo. Não se percebe e chega a ser bizarro.
Não sabemos bem em que momento é que os deuses da ficção televisiva decidiram que Sofia Grillo fazia bem de popularucha, mas foi mais ou menos pela mesma altura em que acharam que Alexandra Lencastre fica credível a fazer de pobrezinha. Mas pronto. A atriz esforça-se e, em "Rua das Flores", dá o litro a fazer de Violeta, a cabeleireira do povão.
E é precisamente Violeta e a filha, Magnólia, que têm o diálogo mais icónico deste primeiro episódio. Enquanto a mãe abre uma caixa de uma encomenda, Magnólia pergunta o que é. "São uns ténis de marca como aqueles que as atrizes usam nas parcerias com a internet". "Sapatilhas", corrige Magnólia. "Ténis. Sapatilhas, não. Sapatilhas usam os pobrezinhos". Rimos muito.
Futre aparece cinco segundos no primeiro episódio a apenas para pedir a Frézia (Paula Neves) para "meter na CNN". Frézia está obcecada com uma Crónica Criminal, mas tem um empregado muito jeitoso e com um avental às bolinhas que aprovamos.
Estamos em tempo de crise e dona Tília tem a tirada que queremos estampar numa t-shirt. "Eu não abro cartas com contas para pagar porque senão, a esta hora, estava a dormir debaixo da ponte". Por falar nisso, a quanto é que está o metro quadrado debaixo da ponte?
Numa livraria Bertrand perto de si, Margarida (Joana Coelho) está a ler esse grande clássico da literatura portuguesa, "Amor de Perdição", de Camilo Castelo Branco, e suspira: "só um amor destes não aparece na minha vida". Fazemos spoiler ou não vale a pena?
Margarida é secretamente apaixonada por Fábio Filipe (David Carreira), que não aparece no primeiro episódio mas que, a avaliar pelos cartazes espalhados na Rua das Flores, entra num filme que íamos jurar que é uma versão qualquer do Titanic. E até somos meninos para apostar que o tal filme se passa num barco de cruzeiro.
Já dissemos que "Rua das Flores" mais podia parecer "Por do Sol" e quem é que nos aparece à frente? Susana Blazer, a icónica Carla da metanovela da RTP1, que sofreu horrores às mãos de Filipa Martins (Gabriela Barros), a diretora da revista "Blaze".
Mas divagamos. Na "Rua das Flores", Susana Blazer dá vida a Flora, a dona de lavandaria mais alucinada de sempre e que nos representa a todos a uma segunda-feira de manhã. "O turco não faz uma mesa muito bonita". Só verdades.
O senhor Arnaldo sai, finalmente, do estado catatónico em que se encontrava, Estrelícia (Patrícia Tavares) regressa para continuar a leitura das cartas e eis que se dá o acontecimento que vai espoletar toda a ação da novela. O desaparecimento do caderno de Tília.
Em suma: "Rua das Flores" até dá ares de "Festa é Festa", mas é menos exagerada. As personagens continuam a falar alto para caraças (os motivos são óbvios: quem está em casa às sete da tarde com a TV ligada ou tem dificuldades auditivas ou está longe do aparelho a preparar o jantar ou a dar banho a crianças), mas não tão alto quanto Tomé (Pedro Teixeira) e Aida (Ana Guiomar), que entraram num exagero de overacting que até nos furam os tímpanos. Resumindo e baralhando, habemus novela para durar muitos e bons anos.