Rodrigo Guedes de Carvalho é um monstro. Mais precisamente Buka, um dos protagonistas do filme de animação "Meu Querido Monstro", que chega às salas de cinema esta quinta-feira, 6 de janeiro. Este conto de fadas animado, que destaca o valor da amizade, do amor e a importância de não julgarmos o outro pela aparência, marca a estreia do jornalista da SIC nas dobragens.

No filme, o jornalista não só empresta a voz a Buka como interpreta duas canções, uma delas com o Coelho e a Princesa (cuja voz é emprestada pela atriz Mariana Pacheco).

Veja o trailer

A MAGG conversou com Rodrigo Guedes de Carvalho sobre "Meu Querido Monstro", que marca a estreia do pivô em dobragens de desenhos animados. O jornalista de 58 anos refletiu ainda sobre a vontade de se expressar artisticamente sem medo do julgamento dos outros e também sobre a forma como a pandemia, em particular os primeiros meses de confinamento, ainda em 2020, o fizeram mudar a sua postura enquanto pivô do "Jornal da Noite".

A sua voz enquanto monstro Buka está muito diferente da que estamos habituados a ouvir. Como foi criar e, no fundo, representar esta personagem?
Sim, no fundo é uma representação, com uma dificuldade acrescida. Neste caso, e como na maioria dos casos da animação dobrada, as personagens já têm imagem, já estão a movimentar-se, a movimentar a boca e tem de ser a voz a adaptar-se a isso. É um desafio suplementar, não podemos fazer de qualquer forma, temos que respeitar o movimento da personagem. Depois, tenho que respeitar vários guionistas: o guionista original, neste caso russo, depois a tradução em inglês e depois uma que é feita para português. E é sobre essa tradução para português que eu sigo. Depois, com uma direção de atores, neste caso do Paulo Oom, que me indica como é que quer que eu faça aquela fala.

Rodrigo Guedes de Carvalho dá voz ao monstro Buka
Rodrigo Guedes de Carvalho dá voz ao monstro Buka créditos: DR

Tentei saber que tipo de monstro é. Há os monstros horríveis e há os monstros bonzinhos. Percebi logo que era um monstro tímido, mas com bom coração. Isso foi importante. E, depois, seguir à risca as informações que o realizador pretendia que eu fizesse. Nesse sentido, não havia muito espaço para eu fazer qualquer tipo de criação, nem era isso que eu pretendia. A grande dificuldade foi, de facto, a questão da voz.

Quando me convidaram, parti do princípio que era para usar a minha voz, que é, pelo que sei, muito percetível para as pessoas. Mas não. Foi-me pedido que lhe acrescentasse uma grossura e um grão de monstro. E assim tive de fazer, durante o filme inteiro, quase. A única exceção, porque aí seria muito complicado fazê-lo, é que há duas canções e eu, aí, tive de ir buscar a minha voz normal, porque seria impensável fazer uma voz de monstro durante as canções. Foi um processo engraçado.

O que é que o motivou a aceitar este filme de animação? Imagino que não seja a primeira vez que lhe fazem um convite destes.
Curiosamente foi a primeira vez que me convidaram. Foi curiosidade e divertimento. Eu já tinha comentado com muitos amigos, alguns até ligados à representação e ao teatro, que era uma experiência que eu gostaria de fazer. Mas, de facto, numa tinha sido desafiado ou convidado. Quis saber só que filme era, pedi o trailer, uma explicação mínima e, a partir daí, vim com todo o entusiasmo. Até porque percebi que era uma coisa que me iria levar... estive aqui dois dias, no total. Não foi um processo muito moroso e tinha, de facto, curiosidade. Fiquei com uma curiosidade suplementar agora. Gostaria, um dia, de fazer uma personagem onde, de facto, pudesse utilizar a minha voz. Acho que cumpri o que me era pedido mas, no fundo, acho que as vozes de monstro, a certa altura, é um pouco irrelevante quem faz o monstro ou não.

Se lhe fosse dada carta branca, que personagem gostaria de dobrar?
Talvez qualquer um dos dois heróis do "Toy Story" [Buzz Lightyear e Woody]. Acho um filme muito engraçado, muito bonito, muito bem feito. O "Toy Story" permite ao ator, ou àquele que vai ser a voz da personagens, ter uma paleta de emoções e de intensidades durante o filme muito engraçada. Passa por momentos de humor, passa por momentos mais dramáticos, por vozes mais sussurradas e, nesse sentido, é de facto quase uma representação a tempo inteiro. E, para a representação, é muito importante usarmos a nossa própria voz. Foi só esse pormenor que ficou a faltar aqui para eu não ficar completamente feliz. Mas foi uma boa primeira experiência.

Quais foram os desenhos animados que mais marcaram a sua infância?
São desenhos animados que guardo até hoje e que, são, hoje, profundamente politicamente incorretos. O Piu Piu e o gato Silvestre, o Bip Bip, que fugia do Coiote, o Tom & Jerry, o Bugs Bunny, o Daffy Duck. Em todos esses desenhos animados havia explosões e enormes violências. Caíam rochas em cima das personagens que, depois, obviamente, também havia essa coisa muito infantil e muito saudável, em que o Coiote, depois de levar com um penedo, levantava-se e seguia. Não me parece que fosse assim tão grave que as crianças fossem confrontadas com isso.

Felizmente, apanhei uma infância que é imediatamente antes do PREC, quando em Portugal começaram a ser difundidos os filmes mais politicamente corretos e ideologicamente colocados. Que são bem feitos e que são importantes, como as primeiras aprendizagens do civismo, do saber estar em sociedade. Os primeiros alertas ecológicos vêm desse tipo de animação de leste. Mas confesso que não era muito divertido para as crianças.

"Há uma extraordinária normalidade das pessoas nos momentos em que eu canto e isso para mim é a maior recompensa"

Por falar em divertido: ter uma experiência como esta e o facto de ter regressado à estrada com o projeto Ruge* [espetáculo ao vivo com Rúben Alves e Daniela Onis, onde são interpretadas canções e declamados poemas] são formas de ter um equilíbrio, tanto emocional como artístico, nestes quase dois anos que foram pesados para toda a gente e, acredito, para si também?
Isso é uma coincidência. Quando nós íamos lançar o projeto Ruge fomos apanhados pela pandemia e tivemos que adiar a estreia, que estava prevista para aqueles que vieram a ser os primeiros meses da pandemia. O que se passa com o Ruge, uma vez que a literatura já está completamente enraizada na minha carreira — aliás, no próximo ano [2022] vou celebrar 30 anos do meu primeiro livro —, em que eu tenho esta coisa de ir a palco, de me expor com material meu, de cantar, faz parte de um processo em que uma pessoa já perto dos 60 se está um pouco a marimbar para o que seja o julgamento dos outros e quer cumprir-se. Se eu tenho esta capacidade, ou esta vontade de me expressar artisticamente de várias formas... O que, de resto, acontece com quem tem um espírito artístico.

Rodrigo Guedes de Carvalho
Rodrigo Guedes de Carvalho créditos: MAGG

Não faltam escritores que foram também músicos. O Filipe Melo, que é um extraordinário pianista, também é um escritor de banda desenhada e, agora realizador... Portanto, a expressão artística, quando se tem essa vontade artística, tendemos a expressar-nos de várias formas. E eu decidi, sempre com o cuidado de nada disso pisar, ou ser terreno comum com a minha atividade de jornalista, que é — e bem — muito vigiada, decidi que havia de me cumprir, assim haja pessoas interessadas em ver-me e ouvir-me. Faz parte desse processo em que não me inibirei de absolutamente nada.

Qual é a reação das pessoas que o vão ver no contexto do projeto Ruge? Falam consigo como Rodrigo Guedes de Carvalho, o pivô que veem na televisão, ou como o artista?
Para já, eu não tenho contacto com o público porque, aí sim, a pandemia foi determinante, e não são permitidos grandes contactos a seguir ao espetáculo. Somos uma estrutura muito pequena e, assim que termina o espectáculo, temos que arrumar as coisas, normalmente para ir embora dos sítios. Não tenho tido contacto com o público, com exceção de três ou quatro pessoas que, nos vários locais, fazem questão de ficar até ao fim e dizer-me um adeus de longe e o que acharam do espetáculo. Essa tem sido, para mim, das experiências mais gratificantes deste último ano. Por uma razão simples. As pessoas que eu tenho apanhado no público encaram o projeto Ruge como ele é: é um projeto de palco e, a partir do momento em que aquilo começa, eu sou um elemento daquele projeto e não o Rodrigo Guedes de Carvalho, o jornalista, ou mesmo o Rodrigo Guedes de Carvalho, escritor. Não são esses que estão ali. Está ali uma outra pessoa.

Todo o material do Ruge é original e penso que há uma primeira surpresa das pessoas precisamente por isso. Quando se anuncia um espetáculo de poemas e canções, as pessoas podem pensar: 'ah, é uma espécie de um sarau em que ele vai lá e, como ele tem boa voz, lê Fernando Pessoa, e lê Cesário Verde, e lê Jorge de Sena. E, se calhar, a miúda canta umas canções do Frank Sinatra ou da Ella Fitzgerald'.

Podia-se fazer isso, perfeitamente. Entreter as pessoas com êxitos garantidos. Mas a nossa ideia nunca foi essa. A nossa ideia é mostrar material original. Todo o texto e todas as canções são originais. E essa é, para nós, a força do nosso projeto. E é engraçado porque, desde o início, as pessoas começam a perceber 'ok, isto que ele está a dizer eu nunca ouvi'. E as pessoas estão naquilo que eu chamo um respeitoso silêncio durante todo o espectáculo. Encaram o espectáculo com a maior normalidade.

Há uma extraordinária normalidade das pessoas nos momentos em que eu canto ou em que faço dois duetos com a Daniela, e isso para mim é a maior recompensa. É as pessoas encararem aquilo com a maior naturalidade. Obviamente que as pessoas sabem que eu não sou um cantor, não pretendo ser um cantor. O que faço é interpretar algumas canções, dentro de uma zona de tonalidade que seja confortável para mim, um pouco à semelhança do Lou Reed, do Nick Cave, do Leonard Cohen, que andavam sempre naquela dança entre a palavra cantada e falada. As que vão têm gostado muito, as reações no final parecem muito genuínas. São ovações em pé, já ouvimos 'bravo!'. E temos tido algum feedback, não muito, nas redes sociais, de pessoas que dizem 'que agradável surpresa, que carrossel de emoções'. Ou seja, tudo o que nós pretendemos com um espectáculo destes.

"O projeto Ruge faz parte de um processo em que uma pessoa já perto dos 60 se está um pouco a marimbar para o que seja o julgamento dos outros e quer cumprir-se"

Em retrospectiva, qual é que foi a importância da sua voz, da voz dos outros pivôs, das pessoas da informação televisiva, como referência durante os meses mais difíceis do início da pandemia?
Eu não sou a melhor pessoa para falar disso porque estava do lado de lá. Em retrospectiva, a única coisa que posso dizer é que tudo o que aconteceu — e provavelmente eu fui um dos primeiros motores disso — foi absolutamente genuíno porque também eu vivi ali uma dupla condição terrível: sou um cidadão do mundo que também foi apanhado pela pandemia. Estava a sofrer a pandemia na pele, com as restrições, os cuidados, os medos, na minha vida de todos os dias. E, depois, às oito, tinha de ir representar um papel, que é o meu papel habitual. O que é que se passou? A ideia de representar um papel caiu um pouco, essa máscara. Decidi ficar mais próximo das pessoas, porque acho que as pessoas, de alguma forma, precisariam disso. Ou seja, eu gostaria, como espectador que, de repente, a pessoa que está na televisão, que é uma pessoa como eu, um cidadão do meu País, eu precisava naquele momento que ela fosse uma pessoa como eu. Que tivesse as mesmas sensações e os mesmos medos.

E o que fiz, de alguma forma, foi "despir-me", tirar um pouco a gravata e dizer às pessoas, 'atenção, eu partilho do que você está a passar. O que nós estamos a passar não é normal, é assustador, mas vamos sair disto'. Uma espécie de, quando estamos numa certa escuridão, haver uma luzinha qualquer que se acende e diz 'pode ser por aqui. Vais ver que, por aqui, há uma saída'. Não me sinto importante por ter sido eu. Acho é que uma pessoa que ocupa o meu lugar e que tem naquele momento acesso a todos os portugueses pode ser essa voz. E foi isso que eu, na altura, decidi.

*Esta entrevista foi realizada em setembro de 2021, mas só é publicada agora devido ao adiamento da estreia do filme de animação "Meu Querido Monstro". Para manter a integridade das respostas, assumimos o desfasamento temporal e alguma perda de atualidade das questões. 

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